A SORTE
- Mãe! – indagou Dilma, chateada – Quando é que a gente vai sair daqui, mãe?
- Quando Deus permitir, minha filha! – Falou Clarice, resignada.
- Mãe, eu já disse pra senhora que sonho sempre em morar um dia numa casa modesta, mas em melhores condições do que esse barraco, quase caindo por cima da gente. Eu não aguento mais respirar o cheiro nojento desse lixo todo dia. A minha dor de cabeça é constante. Acho que é por causa do cheiro do lixo.
- Tenha paciência, minha filha. A gente não tem pra onde ir. Não tem parente aqui. Lembre-se que a gente veio pra tentar a sorte. Se ela ainda não bateu na porta da gente, a gente tem que esperar, com paciência e esperança. Até agora, a gente não melhorou a nossa condição de viver. Assim, mais dia, menos dia, Deus mostra um melhor caminho pra gente viver.
- Está bem, mãe! – Concordou Dilma, mais calma e com um certa pena da mãe, que fazia o que podia pra não deixar nem ela nem a filha passarem fome.
Antonio, marido de Clarice, trabalhador rural, foi tentar a sorte no Pará e não mais voltou pra buscar a família. Dilma estava com seis anos e Clarice, que só realizava tarefas domésticas, teve que trabalhar duro na fazenda onde moravam, pra sobreviver com a filha.
Não tendo jeito pros serviços de campo, resolveu vir pra cidade e tentar outra atividade. Dilma crescia e precisava estudar. Estudando, o seu futuro seria mais promissor. Teria mais condição de viver. Matriculava a filha numa escola pública e conduzia a vida à medida que a vida fosse lhe proporcionando novas oportunidades.
Quando Clarice chegou à cidade, ficou sem saber pra onde ir e sem saber o que fazer. Dormia com a filha sob marquises, pontes e viadutos. Perambulavam pelas ruas pedindo auxílio aqui, outro ali, pra não morrerem de fome. Um dia, Clarice e a filha andando distraídas pelas ruas da cidade, se encontraram com uma mulher que morava num barraco próximo ao lixão e era catadora de lixo. Clarice não tendo outra opção de sobrevivência, aceitou o convite da mulher que lhe pareceu à primeira vista, ser uma boa pessoa.
Logo ela fez o seu barraco e resolveu também aderir aquela atividade um tanto inadequada, mas necessária naquele momento, à sobrevivência dela e da filha. Catava papelão, garrafas plásticas, alumínio, metais, vidros, etc, e os vendia às pessoas que trabalhavam com reciclagem desses materiais.
Era pouco o dinheiro que arrecadava, porém, o suficiente pra ela e a filha sobreviverem. Como não podia comprar móveis novos pra mobiliar o barraco, comprava-os usados, ou recebia-os de alguém que pudesse doá-los. Clarice era uma mulher de boa índole. Não gostava de se envolver com ações nem com pessoas que depreciassem o seu caráter. Era uma mulher sozinha. O marido a largou e nunca mais tinha mandado notícia. Se aquela atividade lhe dava o pão de cada dia, teria que se contentar com aquela forma humilde de ganhar a vida.
Jovem, bonita e íntegra. Nem o trabalho árduo, nem a vida difícil que levava, anulava a sua beleza física, que, junto com a sua personalidade digna, lhe realçavam mais ainda os belos atributos femininos. Vários homens quiseram se aproximar dela, tentando seduzi-la. Prometiam-lhe uma vida melhor do que aquela que estava levando, e não entendiam por que uma mulher com a sua beleza física, se sujeitava àquele tipo ordinário de atividade, morando praticamente dentro do lixo.
Clarice sempre recusava os assédios masculinos. Tinha medo. Não se casou, nem no civil nem no religioso com o marido. Apenas tinha se amasiado com ele. Com dois anos de convivência, Dilma nasceu. A relação não era de muita paixão, de muito amor, mas havia respeito e fidelidade; e essas qualidades sustentavam o relacionamento, fazendo com que eles vivessem relativamente bem.
Antonio há algum tempo, vinha lhe falando sobre umas terras que o irmão tinha adquirido no Pará através da Reforma Agrária, e havia separado uma gleba pra ele. Dissera a ela, que assim que conseguisse juntar o dinheiro da passagem, iria fazer a viagem para ficar uns tempos por lá. Conforme as coisas fossem dando certo, voltaria pra levá-las em definitivo.
Não foi o que aconteceu. Seis anos se passaram e nenhuma notícia de Antonio. Nem de que estava vivo, nem morto. Clarice ficou preocupada com o silêncio do marido. Com o tempo, foi se acostumando com a sua ausência, e só pensava nele de vez em quando. “O que teria acontecido com ele?” Era a pergunta que sempre fazia a si mesma.
O tempo foi passando e a vida pra Clarice e Dilma seguia na rotina de sempre. Dilma, uma moça meiga, ajuizada e inteligente, com quinze anos, já estava cursando o primeiro ano do segundo grau. Tinha as suas amigas, o seu namorado, se divertia quando podia, mas sempre dentro dos limites, e em nada se excedia. A mãe ficava contente com o comportamento da filha, que jamais a desapontava.
Numa manhã, Clarice acordou cedo e decidiu que antes de fazer a entrega de alguns materiais já catados, cataria um pouco mais no lixão, aproveitando a fresca das primeiras horas da manhã. Por intuição feminina, algo a fazia pensar que alguma coisa estava pra acontecer, que poderia mudar pra melhor a sua vida e a de sua filha.
Clarice, distraída em seu ofício, ia catando, catando, catando, até que, de repente, se deparou com uma garrafa plástica em cujo rótulo estava colado um bilhete da megasena. A princípio, ela não deu importância aquilo. Depois, resolveu tirá-lo do rótulo com cuidado pra não rasgá-lo.
Suspendeu o serviço. Guardou o bilhete em sua bolsa e foi fazer a entrega dos materiais. Quando retornou, Dilma já havia chegado da escola. Então, ela abriu a bolsa e retirou o bilhete mostrando à filha:
- Dilma, minha filha, dê uma olhada nesse bilhete que eu achei no lixão hoje de manhã. Você que é mais esclarecida do que eu.
- É da megasena, mãe! O resultado do concurso desse bilhete saiu à semana passada. Alguém o conferiu, e, não tendo acertado, jogou-o fora. Mas se esse bilhete fosse premiado, a senhora ainda poderia receber o prêmio, pois está dentro do prazo de validade.
Clarice ficou pensativa por alguns instantes, depois indagou a filha:
- Dilma, minha filha, uma voz lá dentro está me dizendo que eu devo conferir esse bilhete de novo. Será que você pode ir comigo hoje à tarde na Casa Lotérica?
- Claro, mãe! A gente almoça, descansa um pouco, e depois vamos tirar a dúvida da senhora.
Eram duas horas da tarde, quando as duas mulheres, que moravam há vários anos, próximo ao lixão da cidade, saíam pra resolver uma atividade surpreendente em suas vidas. Clarice nunca tinha jogado em nada. Agora, estava ali, com aquele bilhete nas mãos, ou melhor, guardado dentro da bolsa, achado no lixo, colado a uma garrafa plástica... “ Será que tinha sentido, conferir de novo aquele bilhete?” Uma voz dentro dela dizia que sim!
Quando chegaram na Casa Lotérica, poucas pessoas apostavam. Quando chegou a vez de Clarice, deu o bilhete a Dilma e pediu-lhe pra conferir. A filha, então, dirigiu-se à funcionária e pediu-lhe que conferisse aquele bilhete da megasena. Esta verificou o número do concurso e devolveu-o junto com o comprovante do resultado. Dilma ali mesmo conferiu sem esperança, só pra tirar a dúvida da mãe. De repente, arregalou os olhos , extasiada! Depois, tentou se acalmar, e chamando a mãe pra sair do meio das pessoas, falou-lhe baixinho:
- Mãe! A senhora não vai acreditar!
- O que foi, minha filha? Você conferiu o bilhete?
- Conferi sim, mãe, e parece que está premiado.
- Será, minha filha? Não é possível! Será que minha intuição estava certa? Louvado seja, meu Deus!
Alguns instantes se passaram. As duas mulheres, refeitas da agradável surpresa, dirigiram-se de novo à funcionária e Dilma lhe indagou:
- Moça, por gentileza, você pode conferir esse bilhete da megasena de minha mãe? Parece que está premiado, moça!
A funcionária recebeu de novo o bilhete de Dilma. Um tanto desconfiada e ao mesmo tempo surpresa, conferiu novamente, verificando se estava igual com o resultado do concurso. Em seguida, abiu um largo sorriso às duas mulheres aflitas, dizendo-lhes:
- Sim! O bilhete está premiado! A sua mãe, moça, é a mais nova milionária da megasena! Ela ganhou cinco milhões de reais!