215 - O SUSTO

Lembrando Mia Couto

Quieto, o corpo curvado para frente, sentado à beira da ponte, Luizinho permanece olhando os colegas que brincam embaixo, nas areias da margem do rio ou no poço formado ao pé da ponte. Está invariavelmente agasalhado, usa sempre camisas de mangas compridas e um gorro de tricô a proteger a cabeça. Não pode brincar com os outros, pois qualquer umidade ou borrifo de água ou esforço maior causam-lhe terríveis ataques de asma. Por isso se queda ali, olhando, com uma vontade doida e doída de estar no meio da turma que se diverte refrescando-se nas águas ou secando-se ao sol.

Ele sofre de asma, desde a mais tenra infância. A origem do mal pode ter sido no seu nascimento: devido à dificuldade em respirar, foi submetido a uma série de banhos frios e quentes, alternados, por mais de uma hora. Única maneira de a parteira fazer sobreviver o recém-nascido. Suas memórias mais antigas estão aliadas aos ataques de asma e aos tratamentos empíricos e caseiros. As aplicações de cataplasmas de angu quentíssimo e de ventosas em suas costas. O angu de fubá que a mãe, Dona Clementina, preparava e aplicava na temperatura que saía da grande panela de ferro queimava a pele, ocasionava bolhas e deixava as costas ardendo por muitos dias. Já as ventosas eram piores: em um copo metia-se um pedaço grande de algodão embebido em álcool. Inflamado o algodão, o copo era aplicado sobre as costas, as bordas comprimida em diversos pontos. O fogo extinguia-se, causando um vácuo dentro do copo. As dores atrozes eram suportadas com gemidos e choros de cortar o coração. As marcas das ventosas e das cataplasmas perduravam por semanas.

Luizinho sente vergonha de expor o corpo manchado e queimado.É um motivo a mais a se juntar à proibição da mãe, para que ele fique observando de longe os meninos brincando na beira do rio que corta a cidade, pulando da ponte ou simplesmente entrando na água, para se refrescar, nas tardes quentes. Sua mãe jamais permitiu que ele tomasse banho no rio, com os amiguinhos. O que não impedia de Luizinho ficar por ali, de atalaia.

— Deixa de ser bobo, vem nadar.

— Luizinho é maricas! Num sabe nadar. Tem medo d’água?

Ainda que sendo alvo de chacotas, permanece quieto. Gosta de se sentar na amurada da ponte com os pés balançando no ar. Observando o movimento das águas, quatro ou cinco metros abaixo, agitadas pelas braçadas dos nadadores. Os mais corajosos pulam do alto da ponte, em mergulhos audaciosos que ele acompanha com inveja.

Ah, se eu pudesse, ficava só mergulhando. Um dia ainda vou aprender a nadar. Vou ser melhor do que qualquer um deles. — Pensava, enquanto balançava as pernas e os pés.

O rio corta a cidade, dividindo-a ao meio. Largo, lento, raso nas margens mas com uma profundidade de cinco metros ou mais no meio da correnteza. Águas escuras de sujeira, porque recebem os detritos da cidade. As margens são de areia fina, nas quais os garotos brincam. As roupas ficam amontoadas em pequenas trouxas. A maioria já chega de casa em calções e vão entrando na água sem mais delongas. Rio manso e apreciado pelos garotos, detestado pelos pais, que vêem sempre enorme perigo naquela farra de garotos. Vez por outra um fiscal da prefeitura aparece por ali e põe todo mundo pra correr. Prende a roupa dos garotos, que têm de ir resgatá-las na Prefeitura, um vexame.

Mané Tiziu, experto mergulhador, sobe correndo pela rampa escorregadia e chega até a ponte. Na pressa de atingir o parapeito, o colega dá um esbarrão em Luiz. Completamente desprevenido, absorto nas atividades lá embaixo, ele é empurrado para fora da ponte. Os meninos vêem os dois corpos despencando-se do alto: Mané em ágil mergulho, numa queda orientada, os braços esticados acima da cabeça, o corpo é um torpedo que mergulha na água, mergulho perfeito. Luizinho gritando e esperneando, o corpo pequeno e franzino revoluteando-se sobre si mesmo, caindo com estrondo, espadanando água e desaparecendo sob a superfície.

A água é escura e fria. Luizinho engole água desde o primeiro momento. Entrando pela boca aberta, faze cessar o grito agudo do garoto. Agitando os braços, desaparece sob as águas. Os véus negros de água e sujeira envolvem-no. Aparece por duas vezes, mais abaixo, levado pela correnteza. Não grita mais. Os movimentos são instintivos. Sente um frio imenso envolvendo-o. Câimbras paralisam, dolorosamente, suas pernas curtas. Os pulmões estouram, inundados pela água. Uma abençoada inconsciência o leva para o fundo.

Tiziu, ao emergir de seu mergulho, ouve o berreiro dos outros garotos, apontando para o centro da correnteza. Vê os braços agitando, desaparecendo em seguida. Num átimo, se dá conta do acontecido. E sem mais pensar, parte para o meio do rio. Braçadas espertas. As pernas também se movimentam com agilidade. Em dois tempos está onde viu Luiz. Mergulha. Escuridão total. Volta à tona.

— Mais pra baixo. Mais pra baixo! — Os garotos gritam da margem, que já está um pouco distante.

Tiziu mergulha de novo, deixando-se levar pela correnteza. No meio do rio, a água é mais clara, o sol penetra e revela sombras. O pretinho vê o corpo de Luizinho virando e revirando, tal qual uma folha. Com um impulso vigoroso, chega por debaixo e, elevando-se num solavanco, joga o corpinho inerte para cima. Em seguida, após emergir cabeça e respirar em fortes haustos, agarra-o e o arrasta para a beira do rio. Consegue colocar-se de pé, sempre arrastando Luizinho. Os amigos todos já estão na pequena praia de areia e ajudam Tiziu, que tomba, cansado, na areia, ao lado do corpo inerte do afogado.

Alguns adultos chegam, curiosos, alarmados. Apalermados. Um homem se destaca da turma, furando o círculo de curiosos: seu Roberto, o fiscal da prefeitura, figura temida pelos garotos.

— Que foi? Que aconteceu?

Mesmo sem obter respostas, ajoelha-se ao lado de Luizinho, completamente inerte, e começa a massagear-lhe o peito. Aplica sua boca à boca do afogado e principia uma respiração artificial. Nada de reação. Faz mais massagens no peito, de novo uma respiração boba-a-boca. Nisto já se vão alguns minutos de luta para salvar o garoto. Chega mais gente. Muitos palpites.

— Vira ele de bruços!

— Quem é o garoto?

— É o Luizinho do Zé Martinho.

— Manda chamar o pai!

Tiziu continua deitado, respirando fundo, exausto. Seu Roberto continua a tentativa de salvar o garoto, que não dá mostras de recuperação. Alguns dos garotos, temerosos, saem por entre a multidão que já se formou ao redor de Tiziu, seu Roberto e Luizinho.

Seu Roberto não desanima, tenta desesperadamente obter de volta a vida do garotinho. Está também cansado, pois há muitos anos deixou a prática de exercícios físicos. Ao aplicar mais uma vez as massagens peitorais, um filete de água começa a escorrer da boca de Luizinho, que, em seguida, tosse, uma tosse pequena, curta, que revela o sucesso do esforço do salvador.

Agora, todo o corpo do garoto estremece. Abre os olhos. Tosse desesperadamente, parece engasgado. Seu Roberto o coloca deitado de lado. Mais água escorre pela boca, e até pelo nariz. Com o esforço, vêm lágrimas nos olhos do garotinho. A multidão se emociona.

— Tá vivo! O garotinho tá vivo!

— Seu Roberto salvou o menino!

Tiziu se põe de joelhos, ao lado de Luiz.

— Viche Maria! Ele escapou vivo!

Seu Roberto, suado, cansado, pega o frágil corpo e levanta-se.

— Onde é que ele mora?

— Pode deixar, o pai dele já tá chegando.

Um homem de aparência ameaçadora vem furando a multidão.

— Meu filhinho! Que foi que aconteceu?

— Caiu da ponte, afogou-se. Mas já está salvo.

— Quem foi que fez isso com ele?

— Calma, seu Martinho. Não foi culpa de ninguém, não senhor.

Seu Zé Martinho pega o filhinho no colo. Abraça-o com ternura. Tiziu aproxima-se e tenta esclarecer.

— Eu esbarrei nele, quando pulei da ponte.

O rosto de seu Martinho treme todo. O grosso bigode torna suas feições mais horríveis.

— Eu sabia que esses moleques ainda iam aprontar. Ocê, Tiziu, é o pior de todos, o mais endiabrado. Não é de hoje que tou prevenindo. Cadê o fiscal da prefeitura? Nunca vê o que se passa por aqui!

Alguém tenta apaziguar o pai. Luzinho já está respirando normalmente.

— Foi o Tiziu que tirou ele de dentro do rio. E foi o seu Roberto que salvou ele, fazendo massagem e respiração artificial.

Sem se voltar para ver quem tentava explicar o ocorrido, Zé Martinho se afasta, o filho deitado em seus ombros, olhando serenamente para trás.

Em casa, o alvoroço é total. Dona Clementina, assustada, preocupa-se ainda mais.Luizinho sempre foi asmático, agora então é que vai piorar mais ainda. Pede ao marido para levar o menino ao consultório do Dr. Alencastro.

— Não se preocupem. — O médico acalma os pais. — Por ora, nada há a fazer. Ele está bem, não apresenta nada de anormal. Vamos aguardar, ver como ele vai reagir.

Passados alguns meses, a mãe nota que a respiração do garoto melhorou, já não tem mais aquela chiadeira característica do respirar difícil. Precavida, Dona Clementina levou Luizinho consigo, numa visita a Nhá Mizena. A preta velha é, a um só tempo, benzedeira, raizeira e curandeira, mulher de mil e um expedientes para curas, costuras de “mau jeito” e fabricante de poções de amor. Quando explicou o afogamento e, depois do qual o menino não teve mais ataques de asma, a enrugada feiticeira comentou, entre que perguntando e esclarecendo:

— Intão voismicê num sabe? Asma é qui nem soluço. Pra curar, nada melhor do que um bom susto.

ANTONIO ROQUE GOBBO —

Belo Horizonte, 8 de abril de 2003

Conto # 215 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 12/05/2014
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