213 - CANTEIROS E TUMBAS

Tomou o café saboreando-o devagar. Café forte, torrado e moído em casa pela sobrinha. A manteiga manchava de amarelo vivo a fatia grossa de pão, em contraste com o negro líquido que fumegava na xícara. Não tinha pressa, pois as horas não lhe importavam mais. Desde que fechara — ou melhor, não abrira mais — sua loja, não tinha mais horário para nada. Continuava no esquema rígido de levantar cedo, apresentar-se para as refeições como sempre o fizera, mas agora com a sensação de liberdade, de despreocupação. Ainda usava o relógio de bolso, o inestimável Philip-Patek, que trouxera da Itália, em sua viagem no final dos anos vinte. Mas não se dava mais ao trabalho de consultá-lo.

— Aveia, aveia, barriga cheia, pé na areia. — Repetia o refrão sempre que terminava a refeição, pondo-se de pé e preparando-se para sair.

— Tio, não esquece o chapéu. — Ela recomendava, retirando as xícaras da mesa, batendo a toalha à porta da cozinha, jogando no quintal os farelos de pão.

— Ma si, claro, já estou de chapéu.

O diálogo repetia-se diariamente. Naquela manhã, porém, ao passar pelo telheiro, simples meia-água onde o marido de Marcionília tinha a oficina de marceneiro:

— Onde está o Felício?

— Já saiu. Foi trabalhar fora.

— Onde?

— Foi consertar a porta da Igreja de Santa Bárbara.

O tio passou o corpanzil de quase dois metros e cento e vinte quilos pela porta escancarada da cozinha. Desceu os degraus de cimento e dirigiu-se para o fundo do quintal.

Ali, antes de iniciar jornada do dia, admira a extensão do quintal ocupada pelos canteiros: as verduras brilham na manhã fresca. Os pés de alface são tufos de folhas repicadas e debruadas. Almeirão, chicória, couve, cada espécie apresenta o verde especial, todas tenras e viçosas. Os tomateiros, amparados pelas armações de bambu, medram a mais de metro de altura, lançando brotos empencados de flores amarelas, pequenas, tímidas, escondidas entre as folhas. No fundo do extenso quintal, as parreiras estendidas sobre caramanchões vestem-se com as últimas folhas, de um verde escuro, esperando pela ocasião da poda. Na manhã de céu límpido e sol claro, as cores têm um brilho excepcional.

— Preciso preparar um canteiro para semear cenoura. E outro para transplantar a cebolinha. — No pensamento já delineava os novos canteiros: a massa de terra revolvida elevando-se vinte centímetros acima do solo, bem estercada, de dois a três metros de comprimento, não muito largos, para facilitar os cuidados de plantar, capinar, regar e colher. A terra negra respondia bem ao trato do velho.

Felício e os dois filhos haviam saído cedo. O trabalho de restauração da enorme porta de madeira, com apliques entalhados, já levava mais de uma semana e o marceneiro queria acabar naquela manhã. Antes do almoço. À noite deveria estar com o verniz seco, para a primeira novena da festa de Santa Bárbara.

Os filhos Carlos Alberto e Zé Luiz acompanhavam o pai, ajudando-o no que fosse possível e aprendendo o ofício. Os três carregavam malas de madeira, com ferramentas, algumas peças de madeira, pregos e material para envernizar a porta, no arremate do serviço.

Trabalhando por conta própria em sua pequena oficina de fundo de quintal, Felício quer que os meninos sigam a mesma profissão.

— Quem for mais aplicado vai aprender a entalhar. — Tinha orgulho de ser marceneiro. Aprendera a entalhar madeira, fazer frontões e molduras para móveis, em artísticas esculturas em baixo relevo quando era rapazinho, com o grande artista Francisco Elias. Infelizmente, não podia aplicar entalhes em todas as peças que fazia, apenas nos móveis mais caros, ou em trabalhos finos, como esta restauração de diversas partes do altar e da porta da igreja de Santa Bárbara.

— Vamos, gente! Carlinhos, vai lixando essa almofada, que já tá pronta. Zé Luiz, vai preparando o verniz. Capricha, hein? Quero um verniz bem forte, é para tomar chuva e sol.

Marcionília cuida da casa. É grande, construída pelo Tio Gordo para abrigar a família da mãe, quando ficara viúva. Os oito filhos ainda por criar, o mais velho com apenas doze anos, e a mãe, foram acolhidos pelo tio, comerciante solteirão, bem sucedido na sua loja de secos e molhados, ferragens, armarinhos e tecidos. Ajudou a irmã viúva a criar a família. A cada um dos sobrinhos deu um dote, uma casa de morada, como se filhos fossem. Conhecido por Tio Chico, quando engordou passou a ser tratado pelos filhos de seus sobrinhos por Tio Gordo. A prosperidade era visível na alegria de viver e na amizade sincera para com todos os conhecidos, principalmente os patrícios: os velhos italianos se reuniam diariamente na loja para conversas sem fim, aos quais ajudava sempre que solicitado.

Marcionília preocupa-se com o velho tio. Anda meio estranho, cansa-se com facilidade e esquece das coisas. Vou falar com Felício pra levar o Tio ao consultório do Dr. Jeremias. Da janela de um dos quartos, observa-o na sua lide de todas as manhãs: andando de um lado para o outro, ajoelhando-se a fim de arrancar o mato entre as verduras, ou para podar os tomateiros.

Do quarto passa para a despensa, onde apanha um monte de roupas que leva até o tanque, um barril cortado ao meio, onde as coloca de molho para lavar à tarde. Volta à cozinha e começa a preparar o almoço.

O velho, após duas horas de intenso trabalho, dirige-se à sombra das parreiras, encosta-se num mourão, tira o lenço verde do bolso e passa pela testa e pela careca. A vista treme e se sente cansado. Tem uma visão da tarefa realizada: vê, numa visão ampla e total, todos os canteiros, que se estendem até encontrar-se com o muro, bem no fundo do imenso quintal. A luz da manhã é forte, ilumina o quintal com intensidade quase insuportável. Tio Gordo semicerra os olhos. Os canteiros alinhados se estendem, agora, além dos muros, numa perspectiva infinita, os montículos mais parecem tumbas e o quintal se apresenta como um imenso cemitério. Sobre cada canteiro ou tumba, uma cruzinha de metal com a plaqueta numerada. A brisa da manhã agita as pequenas placas de metais, que retinem — tim-tim-tim... — suavemente. Não mais canteiros, as tumbas se estendem infinitamente até o horizonte. O som vai se intensificando — blem! Blém! BLEM! — e enche o ar, penetrando-lhe na cabeça, ensurdecendo-o. Leva as mãos aos ouvidos, na vã tentativa de impedir o martírio do som. Fecha os olhos, não quer ver seu quintal, seu jardim de verduras, transformando-o num cemitério. Por momentos, consegue. Mas agora, o som está dentro de si, é o pulsar de seu coração que se avoluma, e os sinos perdem a sonoridade: uma cadência surda, um tã-tã / tã-tã / tã-tã intenso, a tomar conta de todo seu ser, como se fora um grande tambor. Tenta gritar, o som morre-lhe na garganta, num gorgolejo. Mesmo de olhos fechados, vê os canteiros girarem ao seu redor. Enjoa, vai vomitar. Antes que o faça, cai pesadamente ao chão, e um negrume final, toma conta de sua consciência.

Felício chega com os garotos à hora do almoço. São pouco mais das onze horas. Marcionília já os espera, a mesa posta. Enquanto o marido lava as mãos e o rosto na pia do banheiro, manda Zé Luiz chamar o Tio. O garoto vai num pé e volta noutro:

— Mãe, o Tio Gordo tá estendido em cima dum canteiro. Pensei que tava descansando, chamei, mas ele não atende. Tá de boca aberta, que nem morto.

ANTONIO ROQUE GOBBO —

BELO HORIZONTE, 27 DE MARÇO DE 2003.

CONTO # 213 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/05/2014
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