Ossos do meu pai
                Carlos sentiu um aperto no peito, mas ele sabia que não era nada, ou poderia ser um ataque cardíaco? A tontura, suor que corria de sua fronte, a dor que esmagava  o seu peito, a respiração cheia de suspiros e chiados, dava ao seu jeito desengonçado de ser um aspecto cômico de palhaço em fanfarra.
                 Seu tipo físico era comum: cabelos ralos na cabeça, penteados para trás de fios longos, a moda dos anos setenta, mãos finas de relojoeiro, de quem nunca pegou no pesado, óculos velhos e fora de moda, grandes demais para a cabeça redonda de  Carlos, que escorriam para frente e eram colocados de volta com o dedo indicador em um tique nervoso irritante para o interlocutor daquele advogado. Além do mais, qualquer pessoa olhava aquele tique com repugnância, diria que algo de estranho havia naquele rapaz, porém a mãe falava:” bunda mole, coloca uma lente de contato, parece o professor Pascal”, ele não ligava, vestia uma camiseta de basquete americano, uma bermuda surrada jeans, tinha um ar preocupado e uma vontade gigante de estar em qualquer lugar do mundo.
                 O tempo sombrio daquele dia, maio à espera de junho, nem chuva nem sol, coisa que o só o meio do ano tem. O que havia de fora do comum era somente aquela chuva apertada contra um vento forte que batia na vidraça do apartamento do centro da cidade emprestado pela sua mãe, onde vivia a sua vida com a mulher Laura e o filho Cláudio, quase normal, porém infelizmente gago como o imperador, uma vez Carlos pensou: ”como o nome atrai as coisas”.
                -Minha mãe, vai ver Laura - ele disse levantando e continuou -  tem um sentimento aqui dentro, mãe não faz isso com um filho - ele respirou fundo antes de completar - vou passar em um concurso público algum dia e largar essa merda toda, não vou querer saber de inventário nenhum, tudo que eu faço é desprezado, agora isso de levar os restos mortais do papai para sepultura nova, ela sabe que tenho pavor de cemitério, pânico, ontem ela chegou com essa caixa colocou ai e ainda disse:” leva os ossos do teu pai para a sepultura nova, faz alguma coisa que preste”– disse sem olhar para mulher Laura estava sentada ao seu lado apontando para a caixa.
                -Meu amor, você vai passar no concurso e ter uma vida estável, você merece, você consegue é inteligente - porra nenhuma, pensou Laura, puta homem chorão que dependente da mãe, Laura ficava vulnerável na presença da filha da puta da sogra. A mulher de Carlos respirou fundo, em situações como essa a conversa já havia passado do ponto, porém  quase nada ficava na sua cabeça, só pensava  no cigarro de maconha escondido debaixo da jarra de nossa Senhora Aparecida, assim que Carlos saísse para cumprir a ordem da mãe ela ia fumar uns dois, muita gente não sabe o quanto a vida pode ser miserável ao lado de um homem que mija sentado.
                -Eu fiz o inventário, eu acabei de tirar a porra da OAB - Carlos gesticulava - meu pai acreditou em mim, ele sabia que apesar do meu problema com ansiedade eu conseguiria, agora sou o advogado da família e – ele sentiu novamente a falta de ar – caralho parece que vou morrer sem ar! – Laura se aproximou e deu a ele um copo de água ele se recuperou e continuou - Você  sabe o que ela disse pra mim quando entreguei mil e quinhentas paginas da porra do inventário do papai, todas lidas e refeitas.
                Laura olhou para nossa senhora Aparecida.
                -Disse que estava um lixo. – Ele balançou a cabe – por causa dessa merda estou tendo esse problema do coração, essas palpitações.
                -Marquei um cardiologista – Laura olhou para a testa elástica e grande do marido e pensou “será que esse cara é veado?" Ele fala batendo a língua nos dentes.
                A caixa preta e decorada estava sobre a mesa, Laura teve vontade de vomitar quando soube o que tinha dentro, os ossos do velho Magal, puto tarado que teve tanto problema na próstata que arrancaram o ovo dele, levou dez anos para morrer em uma cama, apodreceu lentamente  e a velha Narcisa não fazia nenhuma questão de dizer que ele defecava e mijava na roupa, fedia a podre.
                -Carlos faz o que ela está pedindo - disse apontando a caixa – leva os ossos do seu pai para o novo cemitério e pronto, nem pensa no que tem ai dentro, finge que é roupa suja, bolinhos, finge que não são ossos...
                Laura estava exausta, vinha lidando com uma coceira na parte ginecológica, um dos seus dentes estava dolorido e seu remédio de dormir tinha acabado, não tinha muita paciência para ouvir Carlos se lamentar. Olhou a chuva, pensou no Dório o vizinho dono da oficina mecânica, teve um ato de desatino com ele, deve ter sido ele que passou a coceira para ela, foi em junho e ainda coçava. Suas mãos estavam trêmulas, uma  vontade de fumar maconha e deitar na grama esquecer da vida, mas tinha dias que Carlos não saia da cola dela.
                Carlos foi até a janela, o único filho do casal estava na escola eles estavam sozinhos, Carlos tinha certeza do amor de Laura e sentia o mesmo por ela, apesar de se considerar um intelectual, homem de religião afastado do sexo, entendia que o casamento servia também a outros propósitos que não a carne, Laura era meiga, fazia um macarrão sensacional, porém ela o sufocava, parecia amar demais, tão cuidadosa, dedicada, uma mulher exemplar, sua mãe nunca foi uma mulher assim como Laura. Carlos nem queria ver mais aquela caixa, odiava cemitérios não queria fazer a vontade de sua mãe e levar os ossos do pai, não que tivesse medo, era um sentimento mais nobre que o medo, um certo afastamento de lugares que tratavam da morte.
                -Bem que ele poderia estar vivo, ele sim era meu amigo, meu pai, você sabe que o velho Magal me ensinou a ler os clássicos, ele dizia que a leitura me tornaria um grande homem – disse Carlos.
                Porra nenhuma, pensou Laura, o velho desconfiava que Carlos nem fosse filho dele, uma vez tentou agarrar Laura no quarto, safado, passou a língua no pescoço dela e disse “você é gostosa demais e meu filho não é homem para você”, calhorda, velho tarado. Para Laura demorou a morrer .
ela se lembrou dos dias em que aos quinze anos começou a namorar o menino Carlos de família rica, acabou casando e depois virou uma espécie de esposa profissional de um sujeito que fazia sexo “papai-mamãe” uma vez por semana e demorava os incríveis três minutos para acabar com tudo, nessa hora dizia “ufa, foi demais”, e ligar a TV em um programa de comédia.
                -Meu pai foi um grande cara – disse Carlos – foi por causa dele que fiz direito, ele me inspirou, agora minha mãe, ela só me diminui, me persegue, quer o fracasso do nosso casamento para que eu volte para casa pra cuidar dela.
                -Leva os ossos, essa caixa me mete medo, faz a última vontade dela e leva essa caixa – disse Laura.
                Carlos pegou a caixa, abraçou e beijou e depois saiu, antes disse: ”vou por você, porque te amo, mais saiba que estou passando muito mal”. Então Laura foi até nossa senhora e pegou o cigarro de maconha.
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 08/05/2014
Reeditado em 08/05/2014
Código do texto: T4799175
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.