Os degraus do engenho...

Sentei-me no degrau mais alto da entrada do casario. As cigarras cantavam na altura da sintonia do canto. Verão anunciado, já do meio para o fim. O sol alto preludiava o caminho da noite. Lado a lado viam-se sol e lua enchendo o céu. A essa hora o calor tornava-se mais suportável. Podíamos esquecer o tempo engendrando reflexões e deixando de lado o cansaço físico de um dia inteiro de trabalho.

Os degraus da fachada tinham o formato de círculos, um sacando sobre o outro, como bocas a engolir um-a-um. As paredes já se mostravam descascadas. Fazia tempo que não eram pintadas. Senti um cheiro forte de café torrando. Vinha pelos alpendres, como que saindo da cozinha.

- Amarra esse bode, João! O diacho tá comendo as pranta! Coronel chega e vê essa desgraça!Cuida, fio duma égua. Vai logo, corre, amarra esse infeliz.

Vi quando João correu ladeira abaixo e o animal, como já soubesse que ia ser preso, desembestou sem qualquer freio. Saltava, entronchava os quartos, levantava a cauda, soltava berros estridentes. João, suado e cansado, demorava, mas sempre chegava com as mãos atoladas nos cabelos lisos do pescoço do bicho, trazendo-o à força.Chamava-se Futuca!

Retirei as botinas, puxei as meias mal cheirosas dos pés, espreguicei-me e, deitado com o dorso no chão, fiquei admirando o sol ir-se e a lua avolumar-se como uma imensa roldana amarelo-alaranjada. Lua dos poetas, pensei!

Do cafezal, voltavam todos cabisbaixos, como se carregassem, além do cansaço, a tristeza da miséria. Davam-me boa-tarde e seguiam para suas casas. Eu apenas levantava um dos braços. Queria mesmo é que não me incomodassem admirando o firmamento. Era tudo o que desejava naquele instante.E quando já estava escuro o tempo, ouvi as patadas do alazão chegando, trazendo vovô. A marcha picada do manga-larga era conhecida dos meus ouvidos. Subindo ou descendo a ladeira grande de chegada do engenho, o cavalo não alterava seu ritmo forte da andadura. O animal mal parava, sincronicamente vovô Chico descia, amarrava o cabrito no pau-de-descanso e gritava por João...

- João, já pegou Futuca?

Levantei-me do chão, olhei-o com satisfação e disse:

- Já, vô. O que quer o senhor?

- Ernesto?

- Sua bênção, vô.

- Deus, te abençoe, meu neto querido.

- Cansado?

- Estou não, meu filho. Todos os dias faço isso. Acostumado já com essa mesmice responsável...E você veio com quem?

- Tia Amélia!

- Faz tempo que chegou?

- Umas duas horas.

- Sua mãe, seus irmãos, seu pai...

- Todos bem, vô.

- Suas férias, quando terminarão?

- Posso ficar por aqui por uns trinta dias ainda.

- Eita..., dá pra se divertir muito nos cafezais e no barracão...

-É!

Desde que enviuvou que ele mudou um tanto seu modo de viver. Caseiro antes, andador nas noites escuras do engenho hoje. Às cinco costumava estar em casa, quando o sol ainda brilhava. Agora era o último a chegar e já à noitinha. Namorador..., sabiam de suas artes amorosas com as caboclinhas colhedoras de café. Ninguém ousava indagar-lhe sobre essas coisas, esses romances arquitetados às escondidas. A um senhor de engenho, as palavras a ele dirigidas tinham que ser pensadas antes, comedidas e, ainda com toda essa precaução, havia o que podia ou não dizer-se.

Na terça-feira, ele mandou selar seu cavalo e um para mim.Íamos ao campo vistoriar os animais e os serviços. Antes, fomos encantar a gula na mesa fartíssima do desjejum. O cuscuz cheirava fumaçando. Minha boca salivava ao sentir o cheiro bom do charque assando nas brasas do fogão de lenha. Muito leite na leiteira grande colocada no meio da mesa redonda.João já havia trazido os pães fresquinhos da padaria do engenho. Mas vovô sempre reclamava do que não faltava.Tudo estava de boa monta, mas ouviam-se seus reclames.

- Maria, cadê o bolo de massa puba, mulher?

- Já levo, seu Chico!

Lembrei-me hoje de escrever tudo isso, antes de vê-lo enchendo o féretro. Agora, vivendo na cidade grande, vitimado por um derrame cerebral, passa o dia inteiro entre cochilos e olhadas vãs ao horizonte que lhe dá a janela da sala de um dos pequenos cômodos da casa onde passou a morar depois da doença. Às quintas costumo visitá-lo. Casou-se e, graças ao seu segundo casamento, pode ser tratado a pão-de-ló até seus últimos dias de vida. Sua companheira cuida-lhe do corpo e da alma. Escolha acertada fez, como costumava acertar em quase tudo o que abraçava. Teve outros filhos, todos educados com o rigor de seus conselhos. Lembrei-me hoje de retirar da gaveta da escrivaninha este conto inacabado e resolvi findá-lo. Vovô morreu faz quase dez anos. Nunca o presenciei mal vestido ou mal cheiroso. Vovó, como minha mãe costumava exigir de nós que assim a chamássemos, inclusive pedir-lhe a bênção, cuidava dele com invejável esmero. Uma dedicação incomum, um amor verdadeiro.Uma mulher de fibra!

No dia em que o féretro saiu de sua casa, ouvi-a gritar.

- Chico, não me deixe só, meu amor...

Quem estava presente e ouviu, lacrimejou. Foi uma despedida de amores muito fortes. Ele se foi com o silêncio dos mortos que nos presenteiam com a dor e o choro, quase sempre inconsolável. Hoje o mundo é outro. As pessoas se afastam umas das outras, as famílias se diluem, os valores se invertem, mas nem tudo acaba. De meus tios, apenas uma, tia Bile, costumava encontrar-se comigo, lembrar as coisas boas dos velhos tempos e abraçar-me fortemente como me fazia meu avô querido, em todas as vezes que o visitava. Seus abraços apertados nunca os esquecerei, Como os seus cheiros pesados, afundando-nos a cabeça com a força de seus carinhos.

Ao abraçá-la, sinto o cheiro saudoso de vovô. É como se um perfume de saudade ousar-se trazer-nos o que o tempo roubou e nos permitiu viver outra vez, tudo já vivido antes. Adoro-a. Mãezona, conselheira , cobradora da retidão de nossas caracteres. Uma mulher como poucas.

Uma dor forte reveste-me um sentimento de ausência: primeiro vovô, depois papai, depois mamãe...; minha vó biológica morreu quando mamãe tinha apenas quatro anos.

Minha segunda vó, pequenina e cheirosa, vive e sobrevive a uma história de vida forte, acho que de tanta fé em Deus e Santa Rita de Cássia, de quem é tão devota.O Engenho Santo Antônio continua lá, no mesmo cantinho de sempre, agora com outro dono e sofrendo do descuido e do deszelo. Ah se o tempo voltasse e a gente pudesse viver novamente! Juro que teria visitado mais vezes o engenho e amado bem mais a todos. Mas ele passa, deixa marcas-serenas cicatrizes inapagáveis-, mas não é cúmplice de qualquer desunião. O que não recriamos é culpa nossa. Há perdões custosos de chegarem mas que precisam chegar, antes que esse mesmo tempo nos roube outras alegrias...

Ó engenho gemedor, cadê tuas canas, teu mel, teus cafezais pensos de tantos frutos? Cadê tua alegria colorida que enchia nossas férias encantadas? Tudo ficou apenas na saudade e na pupila dos olhos de meus sonhos. Vou cuidar em entregar à tia Bile este conto que acabei de tecer. Acho que ele não pode ser lido apenas por mim. Outras almas deverão fazê-lo, reavivando conceitos, quem sabe, no caminho de algum perdão?