UM MAGRO NA PISCINA DO SPA
Lá estava eu novamente, voltando para aquele SPA. Era a enésima vez que eu passava por aquele portão eletrônico, feito de chapa de aço e alto. O meu retorno já tinha se tornado uma rotina, mas, era um dos únicos lugares que eu me sentia bem. Havia uma paz naquele lugar, que fazia com que eu retornasse sempre.
Como já sou um assíduo cliente ou paciente, sei lá como me tratam, era dispensado de algumas burocracias. Entrei pelo portão e já fui direto para o meu apartamento, que tinha uma visão privilegiada. Algumas plantas, com suas flores expostas, davam um ar de uma casa no campo. Alguns pássaros entoavam seu canto. Não sei se era em minha homenagem, pelo meu retorno, ou se eles cantavam como se fosse parte do pacote de permanência no SPA.
Joguei as malas no chão e cai de uma só vez na cama, com os braços abertos, querendo abraçar todo o colchão. Sentia-me em casa realmente. O perfume que havia nos lençóis, dava-me uma segurança infantil. A maciez do travesseiro, que eles diziam que era recheado com penas de ganso do Canadá, era como se estivesse colocando a cabeça num floco de nuvem. Apesar de que não sei se nuvem é macia. Pelo menos é a impressão que nos dá. Quando o avião passa através delas, não sentimos nenhum tipo de impacto. Elas se desmancham, o avião rasga, abre caminho.
Como estava muito quente àquela hora do dia, apenas tirei os sapatos e mergulhei num sono rápido e restaurador. Era a hora da siesta que estava me faltando.
Dormi mais ou menos por uma hora. Levantei-me, coloquei uma bermuda, fiquei descalço e pendurei minhas roupas no armário. Fiz um exercício leve pra espantar a inhaca e resolvi dar umas voltas pelo jardim. Não sei se era pra conferir o terreno, observar as pessoas. Umas estavam sentadas debaixo de arvores. Com chapéus, óculos escuros, pouca roupa, lendo um livro ou uma revista. Talvez até usassem o truque do livro na mão para não serem importunadas, pois na verdade estavam tirando um cochilo.
Passava por todas elas e ria por dentro, querendo imaginar o que poderiam estar pensando naquele momento, o que poderiam estar lendo. Olhava-as só com o canto dos olhos. Também estava usando óculos escuros e isso me facilitava a observação, como também elas poderiam estar fazendo a mesma coisa, com relação a minha passagem por elas.
Algumas me reconheciam e acenavam discretamente. Eram assíduos freqüentadores daquele local, assim como eu. Era como se fossemos vizinhos de longa data.
02
A maioria das pessoas que ali freqüentavam, estavam em busca de uma redução de peso. Umas apresentavam já um começo de obesidade, outras apenas uma leve barriguinha. E eu, na minha singela magreza, desfilava sem o peso extra. Acho que isso me tornava diferente dos demais, pois percebia que alguns faziam uma cara de deboche. Acho ate que se perguntavam: - O que esse magrelo quer mostrar, desfilando dessa maneira, com esse ar de rei da cocada preta? Mas tudo era mera suposição, apenas querendo saber o pensamento de cada um. Era uma mania minha, preciso aprender a me corrigir.
E assim fui andando, discretamente, olhando para os lados, para cima, os pássaros a me acompanhar pelas trilhas. Como estava muito calor, resolvi brincar um pouco na piscina. Cheguei e estava completamente vazia. – Ótimo, pensei. A piscina é toda minha. Tirei o óculos, o chinelo, coloquei um dos pés na água. Perfeita! Quando me preparava para dar meu mergulho, ouço uma voz feminina, que dizia: - Todos para a piscina, avante! Não demorou um minuto. Na frente vinha a instrutora de educação física e seus “ alunos “ . Havia uns 30. Dividiram-se em 2 filas e ficaram como soldados postados e olhando para mim. Estava na posição de salto e assim permaneci. As pernas um pouco arcadas, a cabeça levemente abaixada, os braços estirados para a frente. Só faltava o tiro de partida, para me jogar na água. Só os olhos levantaram e percorri as duas laterais da piscina. Sentia o “ peso “ daqueles olhares. E ninguém dava o tiro inicial. Na verdade nem sei se queria ouvir o tiro. Meus pés grudaram no chão. Comecei a me sentir ridículo naquela posição, mas não conseguia sair, mudar.
Senti-me invadido na minha privacidade, no meu mergulho solitário, na minha vontade de ficar brincando sozinho na piscina. Tinha a impressão que haviam esvaziada toda a água. Podia ate ver o redemoinho que o movimento da água faz quando esta sendo escoada pelo fundo. Tudo foi para o fundo, para o redemoinho que engolia todo liquido, que eu julgava que era todo meu. Meu calor, meu mergulho, minhas brincadeiras, meu sonho de consumo naquele momento.
Pelo amor de Deus! Quem poderia me tirar daquela posição de mergulhador profissional? Quero a minha privacidade, minha água, meus 50 metros de nado livre.
Sentia toneladas de peso nos olhares. E isso dificultava ainda mais, a minha vontade de sair correndo daquele lugar. Já era uma posição ridícula, que fazia com que eu me sentisse mais ridículo ainda. Era como levar um tapa no rosto no meio do salão e todos os olhares fossem dirigidos para você. Correr pra que lado. Nem conseguia me mexer.
Notei que todos já esboçavam um ar de insatisfação. Acho que o pensamento era comum a todos eles. – Esse cara esquisito, não vai pular na piscina? O que ele esta esperando? Não temos o dia todo pra ficarmos admirando-o. Ou será que era outro pensamento. – Esse magrelo vai ficar se exibindo por mais tempo? Devia ser proibida a entrada desse tipo de gente aqui no SPA.
O suor escorria por todo meu corpo. Meus braços, pernas, pescoço já iniciavam uma dormência natural, pela posição em que me encontrava.
03
Quem primeiro tomou a iniciativa de algum movimento, na beira da piscina, foi a instrutora de educação física. Gentilmente chegou do meu lado e falou bem devagar: - Boa tarde senhor! Fique a vontade para dar o seu mergulho. Estamos todos esperando para vê-lo nadar. Nem virei o rosto para ouvi-la. Meus olhos estavam fixos nas pessoas em volta da piscina. O convite que ela me fez, não combinava com a expressão do rosto dos demais. Ela só estava sendo simpática comigo. Era uma funcionaria, tinha que ter bom relacionamento com todos.
Percebi que todos já demonstravam impaciência. Já sentia que todos estavam era com o saco cheio de ficar esperando uma decisão minha. Aquele sol, estava nos massacrando. Era uma bola de fogo que completava o inferno em que eu me encontrava. Tentei me acalmar. Fazer um mantra. Respirar fundo. Dar um peido bem alto. Um sinal de vida. Precisava só de uma virgula para me sentir vivo novamente.
Os comentários foram elevando-se. Gestos tornaram-se obscenos. Acho que o calor excessivo estava me deixando fora da realidade. Agora eu via cada um deles com algum objeto na mão. Havia metralhadora, arco e flexa, machado, facão, vassoura, gancho de açougueiro, espada e mais coisas que eu nem conseguia saber o que era. Aos poucos fui associando aqueles objetos as pessoas e a alguns personagens de filmes, vilões conhecidos, desenhos animados. Ate um com cara de pica-pau apareceu, com aquele olhar de sacanagem, de que vai aprontar alguma. Quem poderia me salvar naquele momento, já que eu estava impotente. Acho que nem mesmo CHAPOLIN teria condições para isso. Era uma gangue completa. Eu via, o CORINGA, MADAME MIM, MAGA PATALOGICA, IRMAÕS METRALHA, O MASKARA, FRED KRUGUER, MONICA COM SEU COELHINHO, SARGENTO GARCIA, AL CAPONE, HITLER, SADAM HOUSSEM, BIN LADEM e ate o LULA. Aquela alucinação me deixou mais arrasado. Havia chegado ao fundo do poço da consciência, mas a beira da piscina. Que mais parecia a beira de um grande abismo.
Os mais exaltados agora já estavam me ameaçando com suas armas. Nem conseguia decifrar o que falavam. Na verdade nem havia necessidade para isso.
Não sei há quanto tempo já estava naquela posição, naquela situação, naquele filme de horror, naquela novela mexicana. Foi quando percebi que todos olharam para a mesma direção, para trás de mim.
O que estariam vendo, o que estava acontecendo, seria um avião aterrizando num pouso forçado, um tanque de guerra, um dinossauro prestes a me engolir? Não conseguia imaginar nada que não fosse grande, enorme, poderoso. Senti um impacto forte nas costas e cai pra dentro da piscina. Mergulhei como se fosse uma estatua. Na mesma posição de nadador profissional. Estava embalsamado, mumificado, cimentado, concretado. Como demorei para atingir a água. Parecia que estava a dezenas de metros de altura. Nunca tinha pulado de um trampolim. Era mais alto que paredão de barragem. Quando finalmente cheguei a tocar a água. De certa forma me senti molhado ate por dentro, mas senti um alivio com relação ao calor. Mas não conseguia chegar ao fundo da piscina. Parecia ser outro precipício a ser vencido. Não era uma piscina. Era um oceano de profundidade, porem de águas claras.
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Agora só faltava aparecer um tubarão para me devorar.
Quando finalmente toquei o fundo, fiquei de costas para o chão e via todos os personagens na beira a olharem para o fundo. Uns riam, gargalhavam, falavam alto. Todos vestido a caráter de acordo com o tipo. Não sei se estava me afogando ou não. Já me sentia ali, há algum tempo. De repente todos pararam de rir, de falar. Agora me olhavam de maneira curiosa. Foi nesse momento que percebi que a instrutora mergulhou na piscina. Aquilo foi um balsamo para os meus olhos. Parecia uma sereia. Com seus movimentos graciosos, seus cabelos compridos. Chegou ate perto de mim e me puxou pela mão. Fui lentamente voltando a superfície. Agora todos estavam num bloco só, uma pequena multidão.
Fui colocado na beira da piscina. A instrutora colocou seu rosto junto ao meu. Ela segurava meu pulso na tentativa de sentir minha pulsação. Iniciou uma massagem cardíaca. E eu me perguntava: - Porque esta fazendo isso, eu estou bem? Apenas não consigo me mexer e nem falar. A posição de nadador profissional havia se desmanchado. Estava estirado. Parecia um morto. Sentia-me um anão, com todos a minha volta de pé. Foi quando ouvi a instrutora dizer: - Não tem jeito, ele não reage! Precisamos fazer uma respiração boca a boca. Eu fico na massagem peitoral e alguém precisa me ajudar na respiração. Não e não. Faça você a respiração boca a boca, pensei.
- Eu sou medico. Ouvi alguém dizer. E na minha frente, em cima de mim, apareceu um trator, uma motoniveladora, com aquela pá enorme, cheia de capim pendurado, molhado a pingar. Acho que ele pesava uns 200 kg, tinha uma boca enorme com um bigode meio avermelhado, que parecia um escovão. Aquilo me deu um pavor enorme, nojo. Sua enorme cara gorda aproximou-se de mim, conseguiu ate tapar o sol. Senti sua boca grande, molhada, aquele bigode me espetando. Ele abriu a minha boca e mergulhou dentro dela. Aquele bafo quente entrava dentro de mim como uma locomotiva. Queimava minha garganta, meus pulmões, chegava até o meu estomago. Era uma inundação de ar quente, era baba que se misturava com fios de bigode. Devo ter ficado inflável com a quantidade de ar que entrava dentro de mim. Eu parecia um balão de ar quente prestes a subir. Subir, sumir. Era o que eu mais queria naquele momento. Foi quando senti que litros de água saíram de dentro de mim, numa velocidade louca. Comecei a tossir finalmente. Estava voltando. Já me sentia dono dos meus movimentos, dono de mim, dono da situação. Agora só faltava romper aquela muralha de gente e ir descansar no meu apartamento. Fiquei sentado. Respirava profundamente.
Agora já havia mais pessoas da administração, médicos, enfermeiras. Todos a minha volta. Agora eu parecia um rei, um sultão. Gestos de carinho, mãos que me afagavam, tapinha nas costas. Um sentimento de culpa alojou-se no meu coração. Todos aqueles personagens que estavam a beira da piscina, agora eles se pareciam como anjinhos barrocos. Com sua pele alva, seus cabelos encaracolados, faces vermelhas, sorrisos de felicidade e aqueles olhares singelos, ternos. Eles haviam salvo a minha vida. A vida de um magro. Esqueceram-se da diferença que nos fazem diferentes quanto ao tamanho da roupa que vestimos, do ponteiro da balança que insiste em ir mais alem.
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Como retribuir a minha gratidão a eles. Não era permitido um churrasco de confraternização, uma macarronada bem vermelha, uma maionese bem amarelinha, um queijo coalho no espetinho. – Meu Deus, como sou cruel. Eles me salvam e eu tento mata-los. Por falar em matar. Quem havia me empurrado pra dentro da piscina? Tinha até medo de perguntar, seria um deles. Será que um mais afoito tinha ficado puto em me ver naquela posição de nadador profissional. Querendo exibir o que? Um corpo mais definido, uma barriguinha pouco volumosa, as condições físicas em dia, para ter facilidades de vencer os 50 metros de nado livre? Como sou presunçoso. Pensar tudo aquilo, naquele momento. Estava sendo um momento de alivio para todos. Uma vida tinha sido salva. Uma alma a menos a caminho sabe lá pra onde.
Foi nesse instante que apareceu o meu secretario, bem mais magro que eu, com uma cara de culpado, sorriso amarelo e forçando um tipo de arrependimento.
- Fui eu que te empurrei. Achei que você precisava de um incentivo pra pular, e como todos estavam esperando pelo seu mergulho, dei uma mãozinha. He, he, he !
Não disse nada. Apenas olhei para os meus amigos do SPA. Eles entenderam o meu pedido. Seguraram o meu secretario. Levantaram-no e, com roupa, celular na cintura, óculos de sol, carteira no bolso. Foi jogado na piscina. O mais alto possível, para que sentisse a queda.
Um magro na beira da piscina do SPA, nunca mais. Mergulhar na cama de lençóis perfumados e travesseiros com enchimento de penas de ganso do Canadá, era o meu território, a minha piscina particular e absoluta.
FIM