197 - NATAL DE TERROR NA RODOVIA
Em 1968, mudei-me, com a família, para Jales, pequena cidade no noroeste do estado de S. Paulo. No mês de dezembro, terminadas as aulas, levei Enny para S.Sebastião do Paraíso logo em seguida, aí pelo dia 10. Voltei ao trabalho e fiquei no batente até meio-dia de 24, véspera de Natal. Almocei, preparei a mala e botei o pé na estrada. Dirigi minha Vemaguete na direção de São José do Rio Preto, passagem obrigatória no roteiro de ida à minha cidade. Era por volta das quatro da tarde e eu poderia viajar tranqüilamente, pois em sete horas faria o percurso de 600 quilômetros.
O veículo era valente: uma station wagon fabricado pela Vemag, a segunda fábrica de veículos instalada no Brasil até então. Ano de fabricação: 1964. Havia pertencido ao Ronaldo Fróes, cuidadoso, e estava comigo há pouco mais de um ano.
Os quilômetros e as cidades se sucediam, ao longo do asfalto: Fernandópolis, Votuporanga, São José do Rio Preto, Monte Azul Paulista, Taquaritinga. Em São José do Rio Preto, parei em algumas lojas, para comprar presentes para os filhos, para Enny e alguns parentes.
Entre Taquaritinga e Ribeirão Preto existe um longo trecho de estrada sem curvas, uma reta de mais de vinte quilômetros, quando a viagem rende, pois era uma estrada de pouco movimento. Os postos de gasolina distantes entre si, anunciam a necessidade de abastecimento antes de ser percorrida.
Estava na metade desse percurso pelas nove da noite. Diminuíra a velocidade desde que anoitecera, pois nunca fui bom motorista à noite. Olho para o painel para confirmar as horas e a luz me parece fraca. Os faróis altos com a luz alta também diminuem a intensidade. Droga, tem alguma coisa acontecendo com as luzes. Num pequeno trecho de cem metros, as luzes vão arrefecendo e só tenho tempo de encostar o carro no acostamento antes que elas se apaguem completamente.
Assustei-me. Nunca me vira em tal situação. Com o veículo parado numa rodovia deserta, à noite. Nada entendia de motores, sistemas elétricos, e outras partes mecânicas. Mal e mal sabia trocar pneus. Sem uma lanterna ou sequer fósforos, que não fumo. A noite estrelada mas sem lua, não ajudava em nada. Puta merda! Vou ter que passar a noite aqui. Ainda mais na véspera de Natal, tá todo mundo em suas casas, a essa hora ninguém mais tá viajando.
Preparava-me para as longas horas de espera, o amanhecer, quem sabe? Pensei na família, esperando-me e eu sem meios de me comunicar com Enny. Foi quando surgiu lá longe a luz de faróis, dirigindo-se também para Ribeirão Preto. De um salto, saí do carro, coloquei-me ao lado da estrada, fazendo sinais frenéticos assim que os faróis se aproximavam.
Era uma camioneta Ford F-100, que parou no acostamento, poucos metros à frente.
— E aí, companheiro, que aconteceu?
— Sei lá. De repente acabou a luz, o motor morreu.
O motorista desceu, e seu companheiro o seguiu. No escuro, me pareceram sinistros. Senti medo. Sentando-se com desenvoltura no carro, girou a chave da ignição, que não deu sinal de vida.
— Tem gasolina?
— Abasteci em Taquaritinga, há uns 20 quilômetros. O tanque tá quase cheio.
— Tentou pegar no tranco?
— Não. Sem luz, não posso fazer nada.
— Tião, vamos ver se ela pega em ponto morto.
Eu e Tião empurramos a Vemaguete para a estrada, enquanto que o motorista manobrava a direção e engatava a primeira.
— Pegou! — gritou o Tião, assim que o motor começou a pipocar.
O motorista colocou a Vemaguete, com o motor funcionando, defronte à sua camioneta, e me explicou:
— É problema do sistema elétrico. Mas ela funciona. Se fosse de dia, o senhor ainda ia viajar muito sem notar o defeito.
— Mas nessa escuridão... — comecei argumentando.
— Se o senhor quiser, vai na minha frente, eu vou com a luz alta. Assim senhor poderá chegar até Ribeirão. No primeiro posto de gasolina, nós encostamos e vamos ver no que dá.
Entrei no carro e eles na camioneta. Quando acendeu os faróis, pude ver que as potentes luzes iluminavam numa distância suficiente para que eu pudesse dirigir. O que me surpreendeu foi a potência da camioneta que vinha atrás e a pressa do motorista. Por mais que eu afundasse o pé, e atingisse 80, 90 quilômetros, a camioneta estava sempre colada na minha traseira. Não sabia dizer se era ele que me fazia pressão, ou se eu é que o puxava para a proximidade, no afã de iluminar a estrada. Foram trinta minutos de pavor e medo: quanto mais velocidade eu imprimia, mais perto chegava a camioneta. À noite. Sob precária visibilidade. Meu Deus, tá parecendo filme de terror. Esse cara vai me atropelar, passar por cima da Vemaguete!. E pisava no acelerador. Foram momentos do mais puro terror.
Apareceu o posto de gasolina. Diminuí a velocidade e dirigi a Vemaguete para o pátio iluminado.
— Pronto, doutor! Chegamos. Agora, vamos ver o que aconteceu. — O motorista (que não tinha sequer falado seu nome) mergulhou a cabeça sob o capô do motor, tão logo eu puxei a trava interna. — É o sistema elétrico. Vamos ver se achamos um eletricista. — O seu otimismo era contagiante. Olhando o Tissot no pulso, vi as horas: quase dez da noite.
— A essa hora, na noite de Natal? Vai ser difícil.
— Que nada, doutor. Se não tiver aqui, conheço um eletricista na cidade que trabalha até de madrugada.
Não tinha eletricista disponível no posto. Usando a mesma técnica, lá fomos em busca do eletricista da madrugada. Desta vez, Tião foi comigo, na Vemaguete, para me orientar no trajeto até à pequena oficina, que encontramos, sim, aberta.
— Graças a Deus! — exclamei. Agradecendo a ajuda dos dois,escorreguei uma nota boa. — Tomem umas cervejas bem geladas. E Feliz Natal. Obrigado, amigos!.
O conserto foi rápido: apenas a substituição de uns pequenos pedaços de carvões que captam a energia gerada. Coisa de quinze minutos e alguns poucos cruzeiros.
Quando voltei à estrada, eram dez e meia. Com mais 50 minutos de direção, cheguei ao destino, em tempo de tomar um banho e apresentar-me na festa de Natal na casa de meu sogro. Distribuindo presentes e cantando músicas natalinas. Já me esquecendo das horas de terror e angustia que vivi naquela noite de Natal.
Antonio Roque Gobbo –
Belo Horizonte (MG), 28 de dezembro de 2002. —
CONTO # 197 DA SÉRIE MILISTÓRIAS