196 - VERANICO DE NATAL

Pela segunda vez passo o Natal longe de minha família. Como decidi por trabalhar no Banco do Brasil e como não há agência em minha cidade, devo ir me acostumando com a idéia de passar muitas datas importantes (Natal, aniversário, etc.) longe dos meus queridos.

Estou em Tapes, pequena cidade do Rio Grande do Sul, distante 58 quilômetros de Porto Alegre. Situada às margens da Lagoa dos Patos, é nova e sua existência está diretamente ligada à produção de arroz do município. Um pequeno porto, chamado de trapiche da Tapesarroz, serve de acostamento para os pequenos navios que levam o arroz para Porto Alegre ou para o Rio Grande, importante porto bem ao sul do estado.

Cheguei em fins de outubro. Fiquei hospedado por alguns dias no único hotel da cidade, modesto e caro. Logo me transferi para a pensão de dona Rosa e seu Apolinário, que nada mais é que a grande casa de morada dos dois velhos e sua filha Cilene, com 3 grandes quartos alugados para pensionistas. No caso: eu, o casal Elmo e Terezinha e a professora Marina. Elmo é funcionário do Banco do Brasil, como eu, adido, isto é, funcionário de agência do Rio, trabalhando temporariamente em Tapes, mediante uma gratificação mensal equivalente ao salário normal. É meio biriba, usa óculos de fundo de garrafa e a mulher é uma boba-alegre. Já Marina é professora estadual, muito magra e estrábica.

Dona Rosa e sua filha cuidam de manter a casa limpa e das refeições aos pensionistas. O marido é um velho albino de mais de oitenta anos, cabelos branquíssimos, barba amarelada. Vive sentado ao sol, tem idade demais e ânimo de menos, não ajuda em nada.

Todas as manhãs, Cilene chega pelas oito horas, para limpar o quarto.

— Já vou sair, pra você limpar tudo sem pressa.

— Carece não, António (ela pronuncia meu nome o “o” aberto). Posso arreglar tudo, basta você arredar a cadeira para o canto, enquanto limpo sua mesa.

Eu permanecia no quarto. Olhando sua atividade. Fingindo que lia a Bíblia ou estudava inglês. Ela se aproximava, muito loira e clara, o corpo gorducho de menina-moça. A saia pelos joelhos revelava as coxas grossas quando se abaixava para varrer debaixo da cama ou levantava-se nas pontas dos pés, a fim de passar o pano, tirando o pó do frontão do guarda-roupas. A tentação de bolinar aquelas pernas roliças era grande. Contenho-me, pois a garota está noiva noiva.

Na véspera do Natal trabalhamos na agência até meio dia. Os funcionários casados dirigem-se apressados às suas casas quando as tarefas terminam. Nós, os solteiros, reunimo-nos no único estabelecimento aberto ao publico, um café na esquina da praça principal. Um café no estrito sentido da palavra, pois SÓ SERVE CAFEZINHOS! Não tem um salgadinho, uma quitanda, nem leite par misturar ao café. Apenas e exclusivamente cafezinhos, em xícaras encardidas.

A tarde está quente. É o veranico de dezembro que se abate sobre o sul. Gervásio (que é casado, mas se mistura aos solteiros) trouxe uma garrafa de grappa, que bebericamos. Surge um litro de conhaque e outro de vinho feito por polacos moradores da região. “Vinho da colônia”, suave, mas que, misturado às outras bebidas, eleva ainda mais a temperatura do ambiente.

Dalcy e Irapuã, cariocas, acostumados com praia, tiram as camisas, pondo-se mais à vontade. Os freqüentadores locais (pelo menos uns dez homens, só homens, porque as mulheres não freqüentam a espelunca) parecem se incomodar. Logo vem a garçonete, uma das proprietárias, avisar;

— Sabe, aqui no bar não pode ficar sem camisa.

Nosso grupo fica estranhado. Alguém sugere:

— Vamos cantar noutra freguesia.

Pagamos a conta e saímos. Numa combinação tácita,dirigimo-nos para a pequena faixa de areia que é a praia do lugar. Passamos defronte a birosca do Ataulfo, uma venda imunda, cujo chão é de terra batida. Compramos mais garrafas de grappa e algumas Pepsi-Colas. A intenção dos cinco colegas era emborrachar por completo.

Na minúscula praia, de pouco mais de cinqüenta metros de extensão, pouco freqüentada devido à sujeira trazida pelas marolas, ficamos à vontade. Os cariocas, sempre avançadinhos, entraram na lagoa. Mais porque já estavam tontos do que por respeito à moral recatada dos habitantes, entraram vestidos, molhando completamente as calças. Quem não se refrescou dessa forma, ficou na areia quente, curtindo as bebidas em goles curtos, a principio, e que iam se alongando à medida que a zoeira aumentava.

Não me lembro de como voltei para casa. Lembro-me, sim, já me preparando para a ceia do Natal, oferecida pela dona da pensão. A ceia, na verdade, nada mais era do que o jantar propriamente dito, servido às dez da noite. Comida simples, um assado engordurado e algumas castanhas, nozes, etc. Uma garrafa de vinho “da colônia” é aberta.

— A gente ceia e depois vai pra Missa do Galo. — A sugestão é de Dona Terezinha.

Como muito. Bebo só um copinho de vinho, pois já estou meio de ressaca pela bebedeira da tarde.

Apronto-me para ir à missa da meia-noite. Visto o melhor (único) terno, gravata, passo um pano úmido nos sapatos pretos e sento-me no alpendre da casa, para esperar Elmo e Terezinha. Havíamos combinado ir juntos.

O calor aumentava, não importando o adiantado da noite. No conforto da espreguiçadeira, cochilei, ou melhor, ferrei no sono.Acordei com o tropel de pessoas passando na calçada. Olho, assustado, para o pequeno Tissot no pulso. Quase uma da madrugada. O pessoal já estava voltando da Missa do Galo.

Antonio Roque Gobbo =

Belo Horizonte, 27 de dezembro de 2002

CONTO # 196 DA SÉRIE MILISTÓRIAS .

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/05/2014
Reeditado em 08/05/2014
Código do texto: T4793865
Classificação de conteúdo: seguro