A louca alegria dos moradores
Muito bem. Talvez eu não tenha tido sucesso ao tentar inventar o título deste conto. E talvez não tenha a mesma simplicidade, ou imaginação apresentada em "O velho Romeu". No entanto, quando mais velhos, gostamos de lembrar de certos fatos de nossa infância.
E este conto é uma daquelas lembranças de um novo personagem.
É uma criança. Arthur, nove anos de idade. Ano de 2002.
Era no inverno.
Em certas lugares, atrasados em desenvolvimento, seja por preguiça ou por corrupção, é jogada uma visão de preconceito por parte de quem vive numa área mais organizada.
E muitas vezes o preconceito é apenas uma maneira de dizer: "Não sei de nada sobre o mundo e a humanidade. Apenas fui colhendo pensamentos fragmentados sobre diversos assuntos, nunca quis me aprofundar. E, por não enxergar nada além do meu mundinho, deixei a ilusão me influenciar."
A classe dos exploradores e explorados prospera por séculos e séculos, milênios e milênios. Não sei se é por vontade divina, ou se é pela vontade dos explorados, que deixam a balança pesar mais de um lado e não equilibram as coisas.
Mas naqueles dias de inverno Arthur notara uma coisa inusitada.
Sim, tudo é muito novo para uma criança, mesmo os acontecimentos mais corriqueiros. É claro que também depende da criança,todas observam os fatos de um jeito diferente.
Entretanto sempre há a intensidade, mesmo que exagerada.
Era de manhã, ele estava se preparando para mais um dia de aula.
Morava num desses lugares mal vistos pelos perfeccionistas.
Não, não era nenhuma zona leste de alguma cidade.
Era na zona rural. E o ponto de referência mais relevante é a BR-364.
Durante a aula correu tudo bem, tudo normal. Mas quando voltou, viu no acostamento uma multidão. Caminhou a passos curtos, enquanto voltava para casa e viu também uma carreta. Era dessas carretas que transportam óleo de soja. Há relatos de que naquela estrada ainda não havia faixa de pedestres, além do fato de que naquele trecho tinha um buraco. O motorista não estava muito ciente do local por onde trafegava e ao ver o buraco a certa distância, desviou bruscamente do buraco e como a carreta estava carregada com latas de óleo de soja, muitas cargas, a carreta virou e com ela caíram também centenas de latas.
O motorista estava atordoado, mas não sofreu nenhum dano físico.
Porém isso não chegou aos ouvidos de Arthur tão cedo. Naquele momento só notou a multidão correndo desesperada, mas não estava desesperada pelo acidente do motorista, a maioria nem se preocupou se ele estava bem.
"Nossa... eles estão levando um monte de latas de óleo pra casa! E ninguém se preocupa com o emprego daquele moço?! Como pode isso?
Tá certo que ainda sou só uma criança, mas me ensinaram que se deve respeitar o trabalho dos outros. O que está acontecendo? Como podem ensinar uma coisa e fazerem outra? Além disso aquele moço tem que levar essa carga completa. E estão correndo, gritando:-Deixa um pouco pra mim!Também sou filho de Deus! E o que acontecerá com ele depois?
Vai levar uma bronca e tanto!"- Dizia ele consigo mesmo.
De um lado estava uma turba abandonada por quem devia olhar para suas necessidades. A maioria eram mulheres. Havia também alguns homens e crianças. Todos passavam necessidades. A maioria trabalhava nas hortas, alguns na roça. Eram poucos os cidadãos que labutavam na zona urbana daquela cidade que está à margem direita do Madeira.
Do outro lado estava um trabalhador, como eles. Muitos discutem que trabalho vale mais, ou menos. Mas o certo é que todos são necessários.
Um trabalho não deveria ser pesado pela sua remuneração, nem pela classe social do trabalhador, seja empresário, seja doutor, seja um pedreiro. O trabalho de um homem é tão importante quanto o do outro.
No entanto uma classe é privilegiada por fazer pouca coisa, e a outra merece viver como gado, segundo a visão da primeira.
Arthur teve sua ilusão de um mundo feliz e hospitaleiro impactada naquele instante. Notou a ferocidade de quem não vive privilegiado. É o medo, e também o desejo pela vida sendo manifestado por todos. Corriam a longos passos com muitas latas protegidas pelo tecido das camisas, alguns colaboravam entre si para pegar uma caixa, e se cumprimentavam, alegres. Mas poucos ajudaram a levantar a carreta.
Apesar de tudo isso, há uma força adormecida nas massas. E quando tal força surge sem controle, tais massas apenas atrasam sua evolução.
E o que fazer quando não resta nenhuma esperança de dias melhores?
A vida não é como um filme em que os protagonistas são felizes no final e têm suas trilhas sonoras. Enquanto vivemos não há um som de fundo, um tema triste, ou um tema alegre exteriorizado por violinistas, ou pianistas, ou outros artistas.
A vida é semelhante a um filme em muitos aspectos. No entanto nos filmes a vida dos personagens já está toda planejada e definida pelo autor. Com o nosso filme (vida) é diferente. Nós projetamos nosso personagem. Podemos escrever um roteiro, ou alterá-lo a qualquer hora. Somos os autores, atores, personagens, roteiristas, cinegrafistas e expectadores de nossos próprios filmes. Enquanto houver espaço e tempo, sempre haverá um filme em que atuar. Livre-se do espaço-tempo e se livrará das ilusões dele. mas dificilmente você aprenderá algo novo.
Assim aconteceu com Arthur. Essa lembrança veio à sua mente junto com muitas outras. A ilusão de mundo feliz foi dissipada, com efeito.
No entanto, também lembrou-se que querer mudar o mundo a seu bel-prazer é impossível. A única coisa que a vida exige é que você seja fiel consigo mesmo. E assim foi com aqueles moradores: eles tinham o poder de não serem vítimas de um sistema prioritário aos grandes.
Podiam mudar tudo se quisessem. Mas o fato é que eles estavam escrevendo seus próprios filmes e acreditando nas ilusões apresentadas.
Com o motorista deu-se da mesma maneira. Talvez ele não gostasse do trabalho, afinal dirigir carreta por horas a fio é certamente cansativo, além do risco de sofrer um acidente por dormir ao volante.
No entanto o que se nos revela é que cada um escolhe a maneira de viver. Muitos se veem como vítimas, e acreditam nisso, de modo que tornam-se vítimas. Muitos exploram, acreditando que são os reis do mundo, que são superiores. Mas já que tudo tem um porquê, pelo menos no mundo do espaço-tempo, então quem se apega demais às ilusões corre o sério risco de ser acordado bruscamente ao cair num buraco profundo cavado por si próprio. O choque é terrível.
Arthur aprendeu muito naquele dia.
E começou a escrever seu próprio filme.