195 - NATAL DE LUTO

Foi um Natal de luto em minha casa. Estou com quinze anos, completados em novembro. Vovó Beatriz e Tio Gordo haviam falecido em junho e julho, após longos anos de doenças. Na grande casa de Tio Gordo morávamos: papai, mamãe, eu, meu irmão menor, tio Armando, vovó Beatriz, Tio Gordo (irmão de vovó, portanto, meu tio-avô) e Carolina, irmã de mamãe, que todos os sobrinhos tratavam por Madrinha.

Vovó sofreu com um câncer no lado direito da testa, durante anos. Tio Gordo foi vítima de um derrame cerebral no dia de Santa Cruz (3 de maio) de 1949, e ficou inválido por mais de ano. Era um homem alto e, dignificando o apelido, muito gordo. Morando debaixo de um mesmo teto, nenhum dos dois irmãos ficou sabendo da doença do outro, pois eram mantidos em quartos opostos. Tio Gordo trocou o dia pela noite, que passava em vigília, falando e gritando ordens militares, reminiscências dos tempos de bersagliere¸ soldado que fora do exército imperial italiano. Vovô gemia dia e noite. Nos últimos meses de sua vida, nem a morfina fazia mais efeito contra as dores: eram quatro, cinco injeções por dia.

Estando de luto a família, nada foi preparado para a ceia de Natal nem mesmo para irmos à Missa do Galo. Nem os canarites molhados no mel, nem o doce de figo, que, noutros natais, mamãe preparava com semanas de antecedência. Iria ser o natal mais borocoxô da minha vida.

Tendo terminado o curso ginasial, trabalhava como caixeiro no empório do seu Júlio Lamaro. O movimento de final de ano exigia que também Dona Francisquinha ajudasse no atendimento do balcão, enquanto supervisionava duas empregadas na cozinha, que faziam doces de leite e de côco e um vinho branco, adocicado, preferido por nove entre dez dos fregueses. Movimento intenso entrando pelas sete, oito horas da noite. E eu lá, com o patrão e a patroa, esfalfando-nos para atender até o último freguês. Quando isso aconteceu, já me despedia de seu Júlio e de Dona Francisquinha, quase nove horas, quando ela me convidou:

— Vem cear com a gente. As empregadas tão preparando uma porção de coisas.

— Uai, mas dá tempo?

— Claro, vai ser lá pelas dez.

Fui, claro. Depois de tomar banho, alisar o cabelo com Glostora, trajando meu terninho de formatura, cheguei. O patrão conversava com os parentes na sala de visitas. Mandou-me entrar para a copa.

— Pode ir ajudando a Terezinha a colocar a mesa.

Terezinha é a filha (adotiva). Magra, elegante, morena escura, cabelos crespos muito pretos e olhos malemolentes. Ela não aparecia na venda e a gente pouco se falava. Tinha também quinze anos e não gostava de estudar. Falava que queria namorar um doutor, pra casar. Nessa noite de Natal trajava um vestido cor-de-rosa, de rendas, muito rodado. Os cabelos soltos faziam-na mais coquete. Deslumbrei-me ao vê-la sob a luz das muitas lâmpadas do candelabro da grande sala de jantar. Colocando os pratos e pequenas etiquetas de papelão, com os nomes dos convidados, marcando os lugares. Foi ajuntando fulano com sicrano, maridos e mulheres juntos, e por fim, sobraram dois lugares. Em um, colocou a etiqueta com meu nome e no outro, a etiqueta com o seu próprio nome.

Fiquei contente em permanecer ao seu lado durante o jantar. Embora falássemos pouco, a gente se entendia. Pelo meio da ceia, uma tia de Terezinha, após alguns copos de vinho, chamou a atenção de todos para a nossa proximidade. Houve um zunzum geral, Fiquei vermelho de vergonha e timidez, mas Terezinha gostou da brincadeira.

— Já que eles estão dizendo que somos namorados...— A mocinha falou baixinho, só eu ouvi.

Terminada a ceia, já se anunciava a hora de ir à Missa do Galo. Fui com Terezinha, seu Júlio e dona Francisquinha. Naquele momento teve início um namorico fugaz. Foi apenas o tempo em que trabalhei no empório, cerca de um mês. No final de janeiro, saí do empório e fui admitido no Banco de Crédito Real. Em fevereiro comecei a estudar à noite na Escola de Comércio. Terezinha não se importou muito com nossa separação.

Antonio Roque Gobbo =

Belo Horizonte, 27 de dezembro de 2002

CONTO # 195 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/05/2014
Reeditado em 08/05/2014
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