Tempo
Metade do tempo ele pensava em desistir. Na outra metade sua mente vagava em silêncio sondando os labirintos de seus pensamentos. O infrutífero andar dos ponteiros nada fazia para amenizar o inevitável. Tão logo chegasse o fim ele sentiria-se aliviado, estava certo disso. Aliviado da carga pesada dos sonhos que não realizou, dos projetos abandonados, da dor do tempo perdido, da perca dos amores e amados, da falta dos sorrisos e gracejos. Mas os ponteiros tomavam seu tempo, sem pressa, sempre adiante no lento passar dos segundos.
Seus pensamentos levaram-no ao depósito de suas lembranças e fizeram-no recordar de um tempo jovem e livre, povoado de sonhos e independência. Certa vez sonhara ser piloto, noutra queria escrever um livro. Quisera rodar o mundo com uma mochila nas costas e namorar toda moça bonita com que conversara. Podia sentir o vento no rosto sem barba, a maresia, a areia em torno dos dedos. Podia se ressentir das lembranças que atormentavam seus sentidos.
Abriu os olhos para parar de lembrar e focou seus pensamentos no relógio, contando os segundos, segurando sua mente no presente. Mas de um a sessenta, sua vida passou como segundos. Mal houvera tempo para viver, estivera todo o tempo planejando, adolescente planejara fazer todo tipo de viagens quando houvesse dinheiro para tal, adulto planejara toda sua carreira para poder viajar e descansar quando se aposentasse.
Ninguém lhe disse que não haveria tempo. Tempo para voltar e resgatar sonhos, tempo para ter uma mente aventureira e um corpo cheio de energia. Tempo para ter dinheiro, sucesso e carreira. Tempo para ter amores, família e filhos. Tempo para ver o tempo passar devagar no mesmo compasso de seus planos. Não, o tempo não permitia tempo.
Uma memória recente teimava em ocupar seus pensamentos, pela primeira vez prestou atenção nela. Um homem velho, beirando oitenta anos, conversava com toda a calma do mundo com um menino agitado de dez, que mal conseguia ficar parado para escutar. O assunto lhe fugiu a memória. O garoto pega a bicicleta e chama o velho. Um sorriso surge de seus lábios quando vê o velho subir na velha bicicleta vermelha e pedalar, o vento bagunçando seus poucos fios de cabelo branco.
A risada do garoto e do velho se misturam conforme viajam pelas ruas perigosas da cidade, ouvindo os carros zunirem e buzinarem, os motoristas estressados a xingar, o sol fritando o asfalto. Mas o velho não presta mais atenção, uma de suas mãos sobre o peito que arde e grita, os pulmões berram e a cabeça gira. O menino surge em sua visão, bloquendo o céu azul.
O tempo não permite tempo. Soubesse ele em sua juventude que cada coisa tem seu tempo, teria tido todas as imprudências de uma criança sem medos, todos os amores e sonhos de um jovem apaixonado pela vida, todos os prazeres de um adulto sem ressentimentos e sonhos perdidos. Então quem sabe agora ele seria um velho com um coração forte e uma mente viva, com lembranças corajosas e histórias de aventuras para contar.
Não deveria se queixar, havia tido saúde, conforto, segurança e uma família. Um casa cheia de comida e sorrisos.E isso era muito mais que muita gente poderia sonhar em ter.
(Publicado originalmente no Jornal Notícias do Dia - Joinville 22 e 23/02/2014)