188 - A PRIMEIRA COMUNHÃO DE LALÁ

— Deixa esse padre pra lá. — Foi o conselho simples e incisivo do pai, quando a mãe contou o vexame pelo qual passara na Igreja Matriz. — É um sacripanta. Interesseiro, só quer saber de dinheiro.

Vinha de longe o menosprezo de Teodomiro pelo vigário. Conheciam-se desde os tempos de estudantes. Há mais de vinte anos, ambos freqüentaram os mesmos bancos desconfortáveis das salas de aula do velho Seminário Diocesano. Deoclides Ranzine era gorducho, pouco afeito às aulas de teologia, de moral católica, gostava mais de ajudar nos serviços da cozinha e jardinagem. Teodomiro dedicava-se com afinco aos estudos bíblicos, apreciava discutir as questões religiosas, se bem que não desse muita atenção aos rituais. A antipatia entre ambos superava em muito o amor cristão que deveria existir entre todos. Perdurou até mesmo após a saída prematura de Teodomiro, que desistiu da promissora carreira sacerdotal no último ano dos estudos. Antes de receber os votos. Já Deoclides seguiu rampante e recebeu as ordens. Apesar de caminhos de vida diferentes, os dois mantinham viva a surda antipatia. Teodomiro no modesto ofício de marceneiro, Deoclides alçando-se à posição de vigário da desimportante paróquia da cidade de S. Roque da Serra.

O comentário pouco respeitoso era a resposta à vergonha que a mulher passara na Igreja Matriz, juntamente com a filha Lalá. Tendo procurado o padre para pedir que Lalá fizesse a primeira comunhão no dia de seu aniversário, obteve uma recusa inimaginável.

— Primeira comunhão é na semana do Natal. Ponha sua menina no catecismo da paróquia, que no tempo devido ela fará a primeira comunhão. — O sacerdote foi incisivo.

— Mas é que fiz uma promessa. — Explicou Rosamaria, a mãe.

— Que promessa?

— Que Lalá fará a primeira comunhão no dia do seu aniversário. Amanhã. Quinze de novembro.

— Besteira. Essas promessas são bobagens. E quem preparou a menina?

— A Irmã Constância.

— A freira da Santa Casa? Ela não está autorizada a instruir crianças para a primeira comunhão.

— Mas a Lalá sabe de tudo, está bem preparada.

— Então que faça a primeira comunhão na capela da Santa Casa. Vá resolver seu problema com a Irmã Constância. — Curto e grosso, o padre deu a entrevista por encerrada.

A figura alta e corpulenta do sacerdote, metido em sua batina totalmente preta, de pé, na ala lateral da Igreja, no lusco-fusco da tarde, assomou-se ameaçadora tanto a Lalá quanto à sua mãe. Rosamaria estremeceu. Santo Deus, que custava pra ele deixar a menina receber a comunhão na missa do dia seguinte? Ficou aturdida com a recusa. Desajeitamente, fez a genuflexão, no que foi seguida pela menina, e deixou o templo.

— Puxa vida, eu já tinha preparado tudo. O vestido, os sapatos.

— Pois então? Levamos Lalá à Capela da Santa Casa amanhã cedo. Que importância tem? Tanto faz comungar na igreja matriz quanto na pequena capela.

Lalá entra pela primeira vez na conversa:

— Mas lá na capela da Santa Casa eles não têm o diploma da primeira comunhão. Eu quero receber o diploma. — Referia-se ao documento, espécie de certificado, que todos os neófitos recebem por ocasião da primeira comunhão.

— Quem te falou isso?

— Foi a Irmã Constância. E eu quero ganhar o diploma da primeira comunhão.

A mãe entra no quarto da menina. Olha para o enxoval, preparado com tanto carinho. Sobre a cama está o vestido branco, de seda, enfeitada com lantejoulas. Uma faixa para ser passada em volta da cintura, e o laço que será colocado atrás. Um pequeno buquê de flores artificiais, brancas. Os sapatinhos brancos estão ao lado da cama, com as meias. Sente um aperto no coração. Sua promessa não poderá ser cumprida. Era, sim, algo importante para ela. Não a “besteira” que o padre proferira em tom de blasfêmia. Lágrimas vêm-lhe aos olhos. Mas não desanima. Volta à sala.

— Então vamos amanhã cedo à Capela da Santa Casa. — Determina a mãe.

— E o diploma? Indaga a menina.

— Isso a gente vê depois. — Arremata o pai. — Agora, vai se deitar, vai

Teodomiro não se envolvia muito com os problemas relacionados à educação de Lalá. Deixava por conta de Rosamaria. Mas agora, com a recusa de seu antigo colega, estava cercado de brios e tomou a negativa como uma ofensa pessoal. Tanto que se prontificou a acompanhar Rosamaria e Lalá à missa e à cerimônia, na capela da Santa Casa, no dia seguinte.

Assim que Lalá dormiu, vestiu o paletó e explicou à mulher a sua saída noturna:

— Tenho de tratar de assunto importante com o Lindolfo, da serraria.

— Agora de noite? Não dá pra ser amanhã?

— Não, Rosa, tem de ser agora. Mas não demoro.

No dia seguinte, acorda antes da cinco. Dormira pouco aquela noite, pois chegara bem tarde em casa. A manhã estava fria. Limpou o par de sapatos “de ir à missa”. Retirou o terno do casamento, usado apenas em circunstâncias muito especiais e uma camisa de colarinho. A gravata bordô, de crochê, feita pela esposa, era ponto alto de sua elegância. Vestiu-se demoradamente, enquanto Rosamaria ajudava Lalá a se aprontar. Tomaram o café apressadamente.

— Vamos gente! A Santa Casa é longe, e não devemos nos atrasar.

Caminharam rápido. Logo não sentiam mais a friagem da manhã. A neblina da madrugada já se levantava, quando chegaram ao Espraiado. Por entre a névoa, já era visível a mole do hospital e seus anexos, cercado por extenso muro de alvenaria.

Um verdadeiro castelo, era assim que a grande construção da Santa Casa apresentava-se aos olhos de Lalá. Erguia-se a meia légua da cidade, isolada no centro de um campo plano, terreno doado pelo Coronel Peixoto, para os lados do Espraiado, onde o rio Liso corria em remansos preguiçosos. Nos altos muros caiados a menina via muralhas que defendiam o castelo. No campo, nada de árvores, mas dentro dos muros, o verde de altos eucaliptos, pinheiros-do-paraná e chorões quebram a monotonia das paredes, muito alvas, das edificações. Um riacho sussurra sob a ponte, que os três atravessaram, na direção do portão largo, cerrado. Enquanto Teodomiro puxava o cordão fazendo badalar um pequeno sino, anunciando a chegada, a mãe limpa a barra do vestido de Lalá.

— Puxa, menina, a barra tá cheia de carrapichos. Vamos limpar antes de entrar.

Um preto alto e macérrimo vem atender ao chamado. Entreabre o portão, que dá acesso ao estabelecimento. Lalá já estivera diversas vezes ali, para as aulas de catecismo da Irmã Constância. Mas sempre se maravilha com o interior do “castelo”. Corre os olhos por entre as árvores. Sombras misteriosas ainda persistem, resistem ao albor da manhã. Dirigem-se à capela, uma edificação simples erguida à direita do edifício principal, quase encostada ao muro.

São recebidos à porta pela Irmã Constância, toda sorrisos. Estranhamente, parece saber de tudo. Cumprimenta Teodomiro, Rosamaria e abraça Lalá com carinho. Encaminha-os a um banco especial. As outras irmãs, piedosamente ajoelhadas ou assentadas, voltam-se para admirar a menina.

Minutos após, exatamente no horário, o padre entra por uma porta lateral ao altar e inicia a celebração da missa. Por ser dia de semana, uma quarta-feira, apenas as irmãs e algumas enfermeiras estão presentes. O padre parece dispensar atenção especial à família ali presente. O sermão, curto porém bem claro, é todo dedicado à Lalá e à importância de sua primeira comunhão. A mãe se surpreende, e chega a cochichar ao marido:

— Parece que ele já estava esperando a gente.

Teodomiro sorri-lhe e põe o dedo sobre os lábios. Sinal de silêncio.

No momento da comunhão, Irmã Constância vem convidar Lalá, levndo-a, pela mão, ao altar. Rosamaria segue a filha, também irá comungar. Teodomiro se emociona às lágrimas com a singeleza da cerimônia.

Em menos de meia hora, a missa é realizada. Ao final, quando se preparavam para sair, Irmã Constância se aproxima.

— Vocês aceitam tomar o café conosco? É a Madre Superiora quem convida.

Lá se vão todos pelo corredor, em direção ao refeitório das irmãs, lugar de acesso restrito, quase proibido a leigos e estranhos, quando são alcançados pelo padre. Vem com um canudo de papel nas mãos. Irmã Constância põe todos à vontade, enquanto as outras irmãs cercam a família de carinho.

— É um prazer muito grande ter todos vocês aqui. E, principalmente você, Laís. Não é todo o dia que temos uma criança fazendo a primeira comunhão na nossa capela.

Quando estão terminando o café, o padre desamarra o canudo e põe-se a escrever. Depois de assinar o papel, passa-o às mãos da garota.

— E aqui está, Laís, o seu “diploma” da primeira comunhão. — entrega-lhe uma linda estampa na qual se vê o Anjo da Guarda abençoando uma menina ajoelhada defronte o sacrário.

— O diploma! Mas eu pensava que a gente só recebia o diploma na igreja matriz! — Cheia de felicidade, abraça irmã Constância, que olha para Teodomiro, que, por sua vez, olha para a Madre Superiora, em olhares de santa cumplicidade.

ANTONIO ROQUE GOBBO —

Belo Horizonte – 27 de novembro de 2002

Conto # 188 da SERIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/05/2014
Reeditado em 08/05/2014
Código do texto: T4790189
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