CAXULETA
— Caxuleta! Passa pra frente!
— Assim num vale! Tou de licença!
— Vale sim! Me deve cinco!
Entre as muitas brincadeiras entre crianças, a caxuleta estava na moda, naquele suave outono de 46. Consistia em bater palma da mão na bunda do amiguinho ou colega, cobrando as vezes em que batia sem ser revidado com outra caxuleta. Na hora do recreio, intervalo entre as aulas para o lanche, havia uma turba que passava correndo, dando caxuletas em todo mundo. Quem não quisesse participar da brincadeira tinha de avisar, bem alto, para que todos ouvissem:
— Estou de licença de caxuleta!
As meninas esqueciam-se desta forma de se livrar das palmadas e ficavam expostas aos ataques dos garotos. Aliás, tinha menino que aproveitava da brincadeira para passar as mãos nos traseiros das colegas.
— Caxuleta!
— Num amola, Chumbinho! Vou contar pra professora!
— Tava de licença?
— Pára com isso, Zé Luiz. — A voz autoritária do seu Geraldo, que tomava conta do pátio na hora do recreio fazia-se ouvir. Inutilmente. Quando zangava com um pela esquerda, acontecia outra caxuletada no fundo, ou pela direita, debaixo da grande mangueira.
A brincadeira tomava conta de todos os lugares em que estivessem garotos. Na fila da matinê do cinema era um inferno. Ninguém sossegava com as palmadas e a ordem de passar pra frente. Algumas vezes a fila se desorganizava completamente.
Na chácara do Tio Álvaro reúnem-se todos os domingos os parentes mais chegados, e alguns amigos. Levam as crianças, que, liberadas das vistas dos pais, se esbaldam pelo extenso gramado defronte à casa, sobem pelas árvores do pomar ou vão nadar no pequeno córrego que passa no meio da propriedade.
Por enquanto, a meninada — uns dez ou doze, contando também as meninas — está alvoroçada, correndo na grama. Caxuletas por todos os lados. As meninas são espertas, não se deixam tocar, ou quando sofrem uma caxuletada, revidam na hora, correndo atrás dos meninos. Até que intervém o Zé Pina:
— Pára com isso, cambada de moleques. Se ocêis num parar, vou contar pra Tia Hermínia.
Zé Pina é da família. Filho de Tio Hermengáudio, que mora em Itacoatí, é meio retardado, tem uma cabeça enorme, e fiscaliza os primos. Por ser bem mais velho, já é um rapaz de seus vinte anos, não se mistura nas brincadeiras, mas gosta de implicar com os primos. Foi adotado por Tia Hermínia, que já tem quatro filhos e todo ano espera mais um.
— Coitado do Zé Pina, se ficar morando com o Hermengáudio lá em Itacoatí, vai ficar mais zureta que o pai. Por isso, é melhor ficar por aqui, me ajudando.
Zé Pina, que ajudava a tia nas lides da casa, entendia que vigiar os primos para não fazerem artes era também sua obrigação.
Os garotos se espalham com a primeira ameaça do primo. Vão para o pomar. Um bando que sobe pelas laranjeiras, abacateiros, jabuticabeiras. Onde houver fruta, lá vai a tropa, tal qual uma nuvem de gafanhotos, acabando com tudo. E na medida em que descem pelo pomar, aproximam-se do córrego.
A tarde ensolarada e mormacenta e a água correndo mansa no leito raso são um convite ao refresco de pés mergulhados na água. Chegam juntos ao bambual, cuja sombra se projeta sobre o remanso. Os meninos, mais afoitos, correm paro riacho, espadanando, de propósito, a água, que atinge a todos, até as meninas, que estacam na beirada.
— Vem, gente, tá uma gostosura!
Carlos Alberto chuta a água, na direção das meninas.
— Pára com isso, Carlinhos, tá molhando a gente!
Protestando e indecisas a principio, elas entram em seguida na brincadeira. As roupas já estão molhadas pelas beiradas. Não demora muito, e todos estarão molhados da cabeça aos pés.
Livres da fiscalização do Zé Pina, que deve estar tratando dos porcos ou fazendo qualquer tarefa por perto da casa, os garotos se animam.
— Gente, sei dum pocinho legal pra gente nadar. — Claudionor, filho de Tio Álvaro, conhece toda a redondeza e os segredos da região. — Vamos pra lá?
— As meninas num vão, elas não gostam de nadar. — Interpõe Marquinhos.
— Quem falou? Deixa de ser besta, Marquim. — Zélia é atirada, topa tudo. — A gente vai, sim.
— Então, sigam o mestre! — Decidido, Claudionor toma a dianteira.
Subindo o barranco do outro lado da grande touceira de bambu, a fileira de meninos e meninas acompanha Claudionor. Zélia e Anita, afoitas, estão junto do primo.
— Fica muito longe? — Perguntam, em uníssono.
— Que nada! É só passar pelo matinho.
Lá vai a turma. Atravessam o pequeno cerrado de árvores ralas por um caminho bastante usado. À saída da trilha, vêem, ao longe, a casinha de taipa, mais parecendo ruína de habitação.
— Tá abandonada?
— Não. Lá mora a Maria Cachucha.
— A gente tem que passar perto?
— Claro. Cê num tá vendo o trilho? Passa bem defronte.
— Acho que num vou não. Ela é doida, pode correr atrás da gente.
— Que medroso! É só a gente não mexer com ela. É doida-mansa.
Seguem pela trilha. Silenciosos, temerosos. Quando passaram pela cancela, próxima à porta do casebre, Paulinho, irmão de Claudionor, começa uma cantoria, as mãos em concha sobre a boca, para direcionar o som da voz na direção da tapera:
— Maria Cachucha, com quem dorme tu ?
— Pára com isso, Paulinho. Tá ficando doido? — Claudionor zanga com o irmão.
Uma carantonha aparece na janela. Os meninos caminham depressa. Paulinho fica pra trás e termina a cantoria:
— Eu durmo sozinha com o dedo no cu!
Nem bem termina a cantoria, dispara na retaguarda dos primos. A figura de uma preta velha pula para fora da casa. Uma pedra passa zunindo por entre os garotos.
— Corre, gente!
Correndo, chegam ao poço. Os meninos vão chegando e vão pulando, com roupa e tudo. As meninas estacam na beirada. O poço é raso, talvez um metro na profundidade máxima.
— Como é, Zélia, vem ou não vem.
— É fundo. Não vou molhar o vestido, não!
Paulinho, que é o último a chegar, atropela Zélia e Anita, ao pular. Caem os três, espadanando a água, que molha as outras três meninas, agrupadas na margem.
— Desgraçado! Cê me paga. — Zélia emerge da queda no poço, procurando por Paulinho a fim de lhe bater. Ele foge como pode, indo para o centro do poço.
As garotas que estão no barranco, molhadas, são incitadas pelos primos.
— Entra, gente! Ceis já tão mesmo molhadas.
Aninha consulta Dina e Bia:
— Vamos entrar?
— Vamos! — E saltam as três, de mãos dadas, ajuntando-se aos que já estão dentro do pocinho.
A alegria é total e geral. As roupas molhadas grudam-se ao corpos, Os meninos tiram as camisas, jogando-as na margem. Os vestidos das meninas grudam-se aos seus corpos, delineando pequenos seios e traseiros redondos. Já estão na brincadeira há algum tempo quando Cristina levanta a questão:
— Xíííí! Como é que vamos fazer pra secar a roupa?
— Temos de sair do poço e ficar no sol.
As meninas saem e se sentam no capim, expondo-se ao sol.
— Assim não vai dar. Vamos estender as roupas.
— Só se for longe dos meninos.
— Vamos ali detrás daquelas moitas.
As meninas se afastam. Ao abrigo de um renque de capim alto, tiram as saias, as combinações e as estendem. Ficam apenas de calcinha. Conversando.
— Fiquem de olho, se eles vierem pra cá, nós corremos.
Os meninos decidem que será bom secar as roupas. Ficam completamente nus, espalham calças e camisas sobre o capim, e voltam à algazarra, dentro d'água.
Zé Pina termina a tarefa de levar farelo e lavagem para os porcos. De volta, recebe outra incumbência de tia Hermínia:
— Zé, vai ver onde estão as crianças.
Expedito, ele vai. Entra no pomar, não escuta movimento algum. Estão no corgo. Eles gostam de ir pro bambual. Nos arredores do bambual, também não vê viva alma. Diacho! Será que foram bulir com a Maria Cachucha? Pula o riacho, sobe pelo pasto, passa pela capoeira e chega até a tapera da negra velha. Tudo fechado. Silêncio. Onde será que se meteram? Quem sabe no pocinho, lá na frente?
Nem precisa chegar até o poço para saber que os garotos lá estão: a gritaria é audível de longe. Há! Cambada! Agora vou pegar vocês de surpresa! Aperta o passo, quase corre, na ânsia de flagrar os primos. De repente, dá com as garotas seminuas, secando-se ao sol.
— Mas o que é isso? — A surpresa não é só do Zé Pina. As meninas se assustam com seu aparecimento. Gritos, correria. Pegam as roupas aos trambolhões. Correm na direção do poço. Anita chega primeiro, gritando pros meninos:
— É o Zé Pina! — E pula para a água, as roupas na mão.
É o pânico. Ninguém sabe o que fazer. Logo após os pulos de Zélia e Dina, vem o Zé Pina. Estaca no barranco. Todos estão dentro do poço.
— Aí, cambada de sem-vergonhas! Nadando pelado tudo junto! Vou já-já chamar o Tio Álvaro. — E , ato contínuo, volta-se correndo, sem esperar nem querer explicações.
Os meninos têm mais sorte: suas roupas estão secas. As meninas, no desespero, lançaram-se dentro do poço com as roupas nas mãos, molhando-as novamente.
— Vamos embora, gente! — Alguém comanda.
Saem, vestem as calças, as camisas, e abandonam as meninas. Só quando o último desaparece na trilha, é que Zélia consegue falar:
— Eles já foram. Vamos sair e vestir nossas roupas.
— Tá tudo molhado.
— Num tem importância. A gente não pode esperar o Tio Álvaro chegar.
Vestem-se e seguem pela trilha, com pressa. Não demora, alcançam os meninos. Ao chegarem em casa, não têm como negar que estavam nadando. Os adultos estão em polvorosa. Cada pai quer reservar um castigo exemplar para seu filho. Tia Hermínia, porém, com a grande compreensão que lhe era peculiar, a tolerância em pessoa, botou água na fervura.
— Deixem as crianças, elas só querem é se divertir. Não fazem nada por mal.
Depois de serenados os ânimos, tratou de servir um café na grande mesa da cozinha, com quitandas, das quais era especialista.
Depois do café, ainda sobrou tempo para os meninos organizarem a sua vingança.
— Vamos dar caxuletas nele. Cada um dá o quanto puder.
— E se ele se zangar? Olha que ele é meio pirado.
— É de brincadeira, sô. Se ele for enredar pra Tia, a gente diz que é de brincadeira.
Dito e feito. No primeiro momento em que Zé Pina apareceu no gramado fronteiro à casa, ainda com ar de vencedor, foi cercado por seis meninos zangados, que lhe aplicaram formidáveis tapas na bunda. Uma roda viva: para onde quer que Zé Pina se virasse, não se livrava de receber fortes caxuletadas por trás. Pulando em círculo, fechando a roda cada vez mais, os meninos eram verdadeiros diabinhos, dando palmadas enquanto gritavam:
— Caxuleta! Caxuleta!
— Caxuleta! Me deve três!
— Caxuleta! Me deve oito!
Antonio Roque Gobbo –
Belo Horizonte, 15 de outubro de 2002-
CONTO # 185 DA SÉRIE Milistórias