O GOSTO AMARGO DA VINGANÇA

Os gemidos chegavam abafados até à cozinha. Na noite quente de novembro a casa toda fechada não deixava que os sons, vindos do quarto, chegassem até à rua. O que não tinha importância, pois o isolamento da casa modesta, minúscula, situada no final da rua, não denunciaria o que se passava em seu interior. Ainda mais àquela hora avançada da madrugada.

O calor da madrugada era intensificado, dentro da casa, pelas chamas do fogão de lenha. Das duas panelas, cheias d´água, sobre a chapa de ferro do fogão, o vapor subia até o teto sem forro. O homem, magro, baixo, permanecia de pé, encostado à mesa. Fumava sem parar, O maço de cigarros Fulgor, o sol dourado sobre um fundo azul, estava pela metade. As beiradas rasgadas, o papel alumínio amassado. A cada tragada, o ar ficava mais denso, a fumaça demorava-se a desaparecer.

Do quarto chega a cunhada, baixota e gordinha, esperta e determinada.

— Pedro, põe o tacho de cobre no fogão, enche d´água. Vamos precisar de muita água quente.

— Como ela está passando?

— Está indo. Agora, não deve demorar. Me ajuda a levar essa panela pro quarto. Cuidado pra não se queimar.

Sem mais falar, ela enrola panos no cabo da vasilha, que ambos levam ao quarto. Na grande cama de casal, a mulher, deitada, está suada. Quando ele entra, ela lhe dirige um esgar, como se sorrisse.

— Ai, gente! Não agüento mais. — Uma nova contração arranca-lhe outro gemido de insuportável dor.

— Calma, dona Maria. Já tá chegando, É só mais um pouco. Faz força. — A parteira procura tranqüilizar, ao mesmo tempo em que massageia e aperta a enorme barriga. É uma negra imensa, o branco dos olhos e o alvor dos dentes destacando-se na semi-escuridão do quarto. Pedro observa que as palmas das suas mãos são cor-de-rosa, quase brancas. Ao lado da porta, uma pilha de lençóis e toalhas dobradas, para serem usadas a qualquer momento. No chão, perto dos pés da cama, espalham-se alguns panos já usados, manchados de sangue.

— Vamos, Pedro, volta pra cozinha. — Empurrando o cunhado, Carolina fecha a porta do quarto.

Na cozinha novamente, acende outro cigarro. Permanece de pé. Nervoso, não consegue se sentar. Novos gemidos, agora mais fortes, indicam que o parto está chegando ao final.

Não é a primeira vez que ele passa por esta experiência. A angústia que lhe toma conta o remetem a um tempo não muito distante, quando sua primeira mulher passou pelo mesmo transe. As mãos tremem-lhe e o suor de pavor brota-lhe na testa. A lembrança daquela tarde de angústia, dor, sofrimento e desespero mina a sua resistência. Os gemidos eram os mesmos, a mesma nota aguda originando-se no quarto, espalhando-se pela casa, enchendo sua cabeça de desespero.

Não fora por falta de ajuda que a tragédia se abatera sobre Lurdinha e a filhinha, apesar de toda a assistência proporcionada pelo doutor Leandro. Aliás, tudo ocorrera por causa mesmo dessa assistência, que escondia a incompetência do médico, só revelada na hora do parto.

Aquele desgraçado matou Lurdinha e a nenê. Foi ele o culpado. — Tal certeza ficou indelével em seu pensamento, a ponto de se tomar uma obsessão.

— Não foi culpa de ninguém, Pedro. Essas coisas acontecem.

Explicações de gente entendida, conselhos de amigos, nada conseguia apagar de sua cabeça a certeza de que fora o médico o culpado pela dupla morte. Obcecado pela idéia, desvairado pela dor, tramou a sua vingança. Dos amigos sabia que não encontraria ajuda para a execução do terrível plano. Foi direto ao Pepe Jimenez, relojoeiro de fama e que consertava também armas de fogo. Na sua oficina havia sempre uma arma disponível.

— Para que desea una arma, senhor? — Sem esperar resposta, o espanhol vai lhe mostrando seu pequeno estoque.— Mira, hombre, esse revólver es seguro e leviano.

— Quero essa garrucha pequena, aí no lado esquerdo do relógio.

— Bueno! Es una arma chica e mui precisa.

Negócio feito, passou a espreitar o objeto de sua raiva. O médico era metódico. Tinha horário. A rotina diária era quebrada aleatoriamente por atendimentos de urgência ou casos de parto em casa, como o de Lurdinha. Pedro dedicou algum tempo a vigiar o causador da sua desgraça. Passava algumas horas da noite, entre oito e onze horas, jogando com amigos no Clube Elite. Quando ele voltar para casa,depois do jogo. Essa é a melhor hora.

O local da tocaia foi fácil. Entre o clube e sua residência, o médico passava invariavelmente pelo Largo Santa Inez, mal iluminado e com frondosas árvores. À sombra do arvoredo, escondido entre os troncos limosos das árvores centenárias, Pedro passou a vigiar o homem que causara a desgraça em sua vida.

Jamais tinha manuseado uma arma. Jamais tinha praticado qualquer violência. Pacato empregado do escritório da firma Moreira, Alves & Cia., Pedro sempre fora ordeiro, tranqüilo. A dor profunda que sofrera na dupla perda da esposa e da filha alterou profundamente a psique do tranqüilo escriturário. E ali estava ele, escondido, a arma no bolso do paletó, tocaiando o médico causador da tragédia que abatera sobre sua vida.

Uma, duas três noites...No princípio, pensou que tudo se resolveria de imediato. Nas primeiras espreitas, contentou-se em acompanhar, furtivamente, os passos do doutor. Na quarta tocaia, uma sexta-feira, o doutor veio acompanhado, conversando com alguém, frustrando o desiderato do vingador. Aos sábados e domingos, o doutor não ia ao Clube. Metodicamente. Na segunda, pego esse desgraçado.Ah! Da segunda ele não passa.

Na segunda-feira, Pedro se coloca no lugar de costume. Muito apropriadamente, atrás de um tronco encorpado, onde uma forquilha lhe proporciona suporte para a mão, afinando a pontaria. Espera inútil. O homem não apareceu. Na noite seguinte, malogrou de novo a espera. Na quarta-feira, com muita discrição procurou saber porque seu homem não aparecia. Com o porteiro do clube, que sabia tudo o que acontecia com os sócios do clube, teve a notícia.

— O doutor Lameirão? Viajou no domingo, saiu de férias. Foi pra Salvador, a mulher dele é de lá. Parece que vai ficar por lá mais de mês.

Um grito agudo acordou Pedro de suas recordações. Depois, o silêncio. Profundo e sinistro. Pedro joga o cigarro no fogão, e corre para o quarto. Bate na porta fechada.

— Abre a porta, me deixa entrar.

— Espera só um pouco, seu Pedro. Tá tudo bem. — A voz da parteira, firme, vibrante, inspira confiança. A porta se abre, é Carolina quem aparece.

— Depressa, traz a outra panela d´água quente.

O homem obedece, um autômato. Quando entrega a vasilha, entrevê, pela porta que a mulher parece descansada. No chão, duas bacias com água. A parteira, de costas, remexe com panos e...com a criança? Ele pensa sempre no pior. Começa a rezar. Tomara que tudo dê certo. Ave Maria, cheia de Graça, me ajude, ajude Maria, ajude a criança.Bendito é o fruto do vosso ventre. Bendito é o fruto de Maria.

Fica de ouvido pregado à porta. Ouve apenas murmúrios de vozes abafadas. Tem confiança na velha parteira. Mas o que está acontecendo? Agora,com essa parteira, tudo vai dar certo. Não será como foi com o desgraçado doutor Lameirão. Bandido. Assassino!.

A viagem de Lameirão em visita aos parentes da esposa durou mais de mês. Tempo suficiente para dissipar o amargor da vingança que impregnava Pedro. Viagem providencial: teria Lameirão pressentido que estava sendo tocaiado? Será que o ódio de Pedro era tão intenso a ponto de afugentar a vítima, colocando-a a salvo do que seria outra tragédia?

A raiva de Pedro foi abrandando. Guardou a garrucha em cima do guarda-roupa e dedicou-se com afinco aos livros de escrituração da firma. Sequer soube quando o Dr. Lameirão voltou à cidade. O tempo, lenitivo final de todas as mágoas, dores e paixões, trabalhou em benefício de Pedro, o vingador, e do doutor Lameirão.

Alguns anos, entretanto, foram necessários para que Pedro voltasse à normalidade. Conheceu Maria, namoraram, noivaram e se casaram. A gravidez aconteceu naturalmente. Combinaram com dona Sinhana o atendimento no parto. A preta tinha mais de quarenta anos de experiência, era famosa na cidade. Pedro não queria nem saber de médico para as consultas da segunda esposa.

O choro esganiçado da criança penetrou fundo nos ouvidos atilados de Pedro. Mesmo sem ver o que acontecia no quarto, teve a certeza de que, desta vez, tudo estava bem. A porta se abriu e Carolina passou, carregando uma bacia com água. Atrás se assomou o imenso corpo de dona Sinhana, olhos e dentes brancos brilhando na penumbra.

— Pode entrar, seu Pedro. Já nasceu. Vem ver, é um menino.

Antonio Roque Gobbo –

Belo Horizonte, 6 de outubro de 2002 –

Conto # 182 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/04/2014
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