O Lérias

Uma gargalhada estridente fez calar clientes habituais e os forasteiros que tinham vindo à feira semanal. Num ambiente em que o vozeio dificilmente deixava alguém entender-se, se não falasse num tom mais alto. Discutiam-se os negócios entre os feirantes, como se ao fim do dia a feira se prolongasse na taberna, entre copos de vinho e febras assadas. Os rapazes contavam vantagens sobre os namoricos, os mais humildes encostados ao balcão, bebericavam do lote comum, sempre à espera que algum lavrador conhecido pagasse uma rodada. As raparigas contratadas, não tinham mãos a medir a servir os mais endinheirados, que comiam sarrabulho na sala ao fundo. Zé do porco gritava ordens na cozinha, num misto de cansaço e contentamento ao ver a correria do seu pessoal, a servir e o barulho da campainha da gaveta do dinheiro, abrir e fechar. Era um dia feliz a quinta-feira, dia em que fazia mais dinheiro do que no resto da semana. Com o troco do freguês na mão, também o Zé do porco é surpreendido pela sonoridade e tom esganiçado da gargalhada ininterrupta soltada pelo Lérias, que teve o condão de contagiar todos os presentes. Primeiro, olharam para o local do som e sem darem por isso, contagiados pela sonoridade do momento, primeiro, sorriram, pouco depois riam a bom rir, sem saber o porquê ou que alguém comentasse o motivo de tanta alegria.

Aurora, atrás do balcão, agarrava a barriga com ambas as mãos, tentando dessa forma diminuir as convulsões do ventre, devido a tanto gargalhar. Era a única que sabia do motivo da alegria do Lérias e no entanto sempre que este soltava este fun fun sonoro, não conseguia conter-se.

O Lérias, tamanqueiro de profissão, vivia mesmo ao lado da taberna, havendo más-línguas que diziam que passava mais tempo na taberna do que na oficina. Homem de estatura meã e seco de carnes, na casa dos sessenta, era muito amigo da família do Zé do porco. Por mais do que uma vez ajudara os filhos mais velhos do amigo, na achincalha constante dos rapazes, que ao passarem por eles gritavam; Zé do porco e porco Maria, são todos filhos da mesma porcaria. Perante tal ofensa, choviam logo pedradas por tudo quanto era canto e o Lérias também dava uma ajuda, pois quando os provocadores se escondiam na esquina e tentavam ripostar, nas costas choviam mais pedras, mandadas pelo Lérias, que escondido na oficina, tal qual um garoto, todo se pelava por mandar uma saraivada de pedras naqueles fedelhos, desencorajando-os de ripostar, porém sempre escondido para que não soubessem que era ele, porque o negócio não permitia criar inimigos entre os pais da garotada.

Homem brincalhão - era conhecido por toda a gente pela sua boa disposição. Num dia mais nostálgico, confessou à Aurora que o motivo das gargalhadas mais destemperadas era quando não tinha um tostão no bolso e com isso disfarçava a sua penúria.

A casa do Lérias para além de paredes-meias com a taverna, também o era com a da Júlia, uma velhota conhecida de todos como a bruxa, passava todos os dias em rezas e defumações. Como a varanda da Júlia ficava defronte da tamancaria, o Lérias era o alvo predileto.

- Aurora dá aí meio copito, para ganhar forças e enfrentar a bruxa!

- Ó ti Lérias não me diga que já começou?

- Ainda não, mas não tarda, já tem a vassoura pendurada na varanda.

Aurora sorriu divertida, antevendo o espectáculo que volta e meia a velha proporcionava; começava por pendurar a vassoura na varanda e com um crucifixo numa mão e um molho de ervas na outra, apontava para a oficina do Lérias enquanto dizia:

- Vai-te embora Belzebu, p´rás profundezas do Inferno, maldito sejas tu, meu espécime de bode velho. – E com o ramo de ervas empurrava o fumo de alecrim que queimava numa braseira, na direcção da casa do Lérias.

O Lérias sorria divertido como se não fosse ele o alvo, enquanto pegava num punhado de sal que atirava para a braseira, atiçando as chamas espirrando sal e fagulhas por tudo que era sítio enquanto dizia: - «arreda, arreda, velha maluca, se não queimas o traseiro, pena é não seres mais nova que eu tratava-te desse braseiro».

- A velha recuava para casa aos gritos. – «Cruzes, canhoto, ta arrenego Satanás, alma perdida, maldito, mil vezes maldito, hás-de arder no inferno, ta renego…ta renego». – E perante o riso dos mirones, fechava a porta com estrondo e durante o santo dia era um sossego como se não houvesse ninguém a morar na casa.

O Lérias virando-se para Aurora diz: - Vamos embora pequena, anda aviar-me meio copito, que o raio da velha não atenta hoje mais ninguém.

- Ó ti Lérias eu não compreendo esta raiva da velha por si!

- Já lá vai muito ano, tu ainda não eras nascida, o teu pai e eu fizemos-lhe uma partida e nunca me perdoou por isso.

- Mas conte ti Lérias, conte que eu ofereço-lhe o meio copito.

- Então cá vai! Numa ocasião encontrei uns vinténs no fundo de uma gaveta e após verificar que não tinham qualquer valor monetário, engendrei uma brincadeira com as moedas. Sem saber ainda quem seria o incauto, fiz constar que havia um tesouro nos terrenos da nossa terra, só não se sabia em qual. Depois de combinar com o teu pai que seria a Júlia a nossa vítima, o teu pai emprestou-me duas libras em ouro, para concretizar o nosso plano. No dia seguinte apercebo-me que ela se dirigia para fazer compras na taberna. Com as mãos sujas de terra como se estivesse a esgadanhar, juntei as duas libras à meia dúzia de vinténs e rompo pela taberna dentro com ar bastante alterado. Mostro as moedas ao teu pai, que na altura aviava meio quartilho de vinho à Júlia, enquanto grito.

- Ó Zé! Olha o que eu encontrei no meu quintal na cava das videiras!

Pelo canto do olho vejo o interesse da Júlia.

- Ó homem, o que tens aqui, vale uma fortuna! Estas aqui são de ouro e do melhor. - Diz o teu pai mostrando as Libras.

– Isto é uma pequena amostra do tesouro que tanto se tem falado. Mas se fosse a ti não contava nada a ninguém, não vá gente para lá de noite à busca.

- Está descansado Zé, que eu amanhã vou para lá esburacar, mas para comemorar mete aí uma rodada e serve também um pirolito à Júlia.

Depois de a Júlia sair, nós os dois rimos como uns perdidos antevendo a figura que ela iria fazer.

Eram cerca das três da manhã, quando pé ante pé, fomos espreitar o quintal. Fazia luar podendo-se ver perfeitamente a Júlia com lampião tapado dos lados, de modo que se não visse a luz fora do muro, com um pequeno sacho a virar a terra debaixo da ramada. Volta e meia dava um pequeno grunhido, presumo que de satisfação sempre que encontrava uma moeda que eu previamente semeara, aqui e além em volta do terreno. Foi com alguma dificuldade que eu consegui retirar o teu pai que estava com vontade de a envergonhar. Com cuidado, retirámos sem que ela desse pela nossa presença.

Continua na 2ª parte

Lorde
Enviado por Lorde em 26/04/2014
Reeditado em 26/04/2014
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