Um certo alguém

O pai foi um dos muitos que abusaram e trataram sua mãe como um animal. A mãe já no parto transferiu seu ultimo suspiro para o filho, pois com tamanha fragilidade não seria possível que duas pessoas saíssem com vida daquele parto que aconteceu debaixo de uma larga ponte, não porque todos os hotéis ou hospitais ou casas ou choupanas estivessem cheios, mas porque era ali onde eram aceitos, onde viviam mais como eles. A fogueira estava quente e a lua iluminava o que precisava ser visto. Não precisou que lhe dessem palmadas para chorar, chorou na hora que tinha que chorar: aprendera desde cedo a se virar sozinho. Fora presenteado com roupas: a grande camiseta com uma pomba branca estampada encontrada pouco antes do parto por sua mãe foi fundida à sua pele e assim ficaria por muitos anos. Não nascera na época em que Herodes resolvera sacrificar todas aquelas crianças em decorrência de um sonho. Azar. Por ele nenhuma lágrima seria despejada, nenhum coração seria partido. Afinal o próprio coração já nascera vazio. Mas não morreu porque acabou sendo acolhido por um casal, não porque eram bons, mas porque se convenceram que com uma criança no colo seria mais fácil conseguir esmolas. O maior desafio que teriam de enfrentar seria o de trocar as fraldas, seria fácil, a mulher aceitou, ficou orgulhosa e pensou nisso como o primeiro trabalho de sua vida. Estes eram aqueles a quem chamaria de pais.

Como todo garoto esperto logo lhe saíram suas primeiras palavras, “tio, me da um troco”, o que acabou enchendo seus pais de orgulho que, como recompensa, acabaram colocando a criança para trabalhar dobrado, de dia na avenida em frente ao semáforo, à noite em frente ao shopping. Todas as poucas moedas que conseguia eram destinadas ao homem, seu pai, que fazia a divisão cuidadosa entre pinga, cigarro, e a droga que a mulher, sua mãe, não vivia sem. Ao menino nada sobrava além de tapas e broncas. Logo aos sete anos percebeu que não dependia de ninguém para sobreviver, de menino virou homem e como todo homem decidiu que era hora de deixar os pais para trás e tocar a própria vida. Foi quando se mudou para uma nova ponte e descobriu como as frutas estragadas do fim da feira poderiam ser suculentas.

Assim o tempo foi passando, pulava de feira em feira, de semáforo em semáforo e ia sobrevivendo como podia. Pouco ou quase nada falava, não tinha amigos, não sabia o que era um abraço, se sentia sozinho mesmo vendo tantas pessoas ao seu redor, era como se uma gota d´água se sentisse no deserto mais seco e quente mesmo estando em meio ao infinito do maior oceano, um paradoxo corriqueiro nos dias atuais. Foi invisível durante toda sua vida, com pequenas exceções. Não tinha um nome, tinha vários nomes, quando pequeno era pivete, mas com o passar do tempo ficou conhecido como vagabundo, lixo, mendigo, pedinte, ladrão, entre tantos outros que a criatividade humana é capaz de criar, criatividade essa que tem um talento especial quando o assunto é denegrir a imagem do próximo. Ouvia a frase “vai trabalhar vagabundo” como um mantra diário, até que resolveu tomá-la como um bom conselho e decidiu ir atrás de um emprego, um emprego que desse almoço e janta. De tanto ouvir “não” voltou à sua premissa de que as pessoas eram estranhas, e que o melhor era se afastar mais ainda delas, e voltou à vida de antes.

Hoje faltam três dias para seu aniversario de trinta e três anos, ele não sabe disso, também não sabe qual o dia da semana está, tampouco as horas, nada disso faz sentindo para ele. A percepção cíclica do tempo inventada pelo homem para que a rotina do operário pudesse ser mais suportável, a divisão do tempo em anos, meses, semanas e dias com a promessa do descanso merecido ao termino de cada ciclo, a falsa esperança da renovação e do recomeço, são sentimentos completamente ausentes a esse homem. A sua vida era como o movimento da engrenagem de um relógio, indiferente ao número que o ponteiro que coloca em movimento aponta. Sabe apenas reconhecer os sinais que seu corpo começa a lhe enviar para que acorde, para que vá a procura de comida ou pinga, pelo menos.

Em três dias estará livre deste mundo, mas dizem que os últimos três dias de um homem que foi condenado injustamente são os piores da vida. Está exausto, os anos foram duros com ele, deixaram cicatrizes profundas, seu cérebro demonstra um cansaço muito desgastante, sinais do fim. Sente uma forte dor abdominal - são os vermes que a muito se alimentam de sua carne, sua ferida na perna de nada melhorou nos últimos dias, na verdade começava a escorrer uma fina linha de pus que marcava levemente sua calça. Sua camisa que, em outros tempos, era grande, agora estava rasgada e pequena, não porque ficara gordo, mas porque crescera além da conta. Nas laterais, porém, ainda sobrava muito pano, a pomba branca, que outrora vinha nela, agora já não passava de uma mancha amarronzada com tom biliar. Os dentes foram se perdendo ao longo da vida, agora poucos são os que sobreviveram e mesmo estando pretos e fracos ainda cumprem sua função na hora de mastigar o pão duro.

Abre os olhos vagarosamente, espera que se acostumem à luz do sol, limpa a visão embaçada para ver o mundo em movimento à sua volta, faz força para se levantar. Dor, dor. Tanta gente com pressa. Fome, fome. Sede. Fome não, sede. Garrafa vazia. Bebi o último gole ontem. Onde estão minhas moedas? Uma, duas, três... Quatro moedas: dá para primeira do dia. Uma dose caprichada! Levanta-se apoiando na parede suja da rua, uma perna de cada vez, mira o bar da esquina e decide que seria esse o seu destino, tropeçando começa a dar os primeiros passos, faz uma força descomunal, a multidão que passa não percebe a luta que este homem se dispõe em troca de tão insignificante recompensa, chega ao balcão. As palavras saem tortas. Ahhh...Uma...Uma...Dose! Cheia. Um homem de branco se apressa a pegar uma garrafa, olha para os lados atento, vê se alguém o condena por fazer negócio com um nada, sente o peso dos olhos do universo, parece que todos pararam para observar com atenção, sente a condenação, enche um copo de plástico rápido, o bar está vazio, o peso que sente é o da própria alma que o condena por tanto preconceito e pelo amor ao dinheiro, que o força a fazer o que considera tão repugnante. Entrega o copo. Pega o dinheiro sujo, Saia já daqui, diz com pesar nos olhos.

Fecha os olhos e em um único gole seco o homem acaba com o copo, sente cada gota tocando seu paladar, descendo como uma cachoeira por sua garganta, refrescando cada parte do seu corpo. Abre os olhos novamente, amassa o copo e o arremessa longe, cospe no chão. A cachoeira seca, mas os vermes parecem dormir mais tranquilos. Volta com menos dificuldade para o canto de chão frio que passou a noite, se acomoda no meio de todo lixo que juntou ao longo da última semana, senta na sua cama de papelão, geme, apoia a cabeça em um velho banco de bicicleta, fecha um olho, se esforça para fechar o outro e repousa. Faz a sesta após a única refeição do dia.

Uma leve brisa que brinca com um saco plástico resolve acordar o homem, a sacola bate levemente em seu rosto, ele permanece imóvel, a brisa insiste e o homem cede. Está no fim da tarde, mal se vê o sol que começa a se esconder por detrás dos edifícios gelados. O tempo está gostoso, refrescante, mesmo com os indícios que começam a aparecer no céu de uma mudança climática. As pessoas caminham com bom humor, ouve-se menos buzinadas no trânsito, véspera de feriado, todos estão felizes voltando para casa. Hora de trabalhar: o homem se apóia levemente sobre o braço esquerdo, que treme e se prepara para realizar o trabalho da perna fraca, cada vez mais peso se apoia sobre a perna direita e sobre o braço esquerdo, o homem finalmente fica em pé, eleva vagarosamente uma lata de metal desgastada que outrora fora uma embalagem de um condimento qualquer, caminha lentamente, estende o braço e começa a esperar que as moedas caiam sobre seu pote, precisa garantir a dose do dia seguinte. A doce sinfonia que começa ao som do cair da primeira moeda anima o homem e o desperta a querer mais, logo tem um punhado delas. Sem saber direito o real valor do que tem decide que tem o suficiente e retorna ao local de descanso. Tem sede, almeja por mais uma dose, se esforça e desiste, Amanhã eu pego outra, fecha os olhos mais uma vez e deixa o tempo fluir pelo seu corpo, adormece com uma leve respiração.

A noite cresce e preenche o espaço vazio deixado pela vida que se ausenta das ruas, há nada além do homem respirando silenciosamente na calçada, as ruas estão descansando do castigo imposto pelo sol e pelos carros. Pequenas estrelas oscilam tímidas no céu que começa a ser ocupado por nuvens em formação, algodão doce dos anjos, refresco dos homens. E nessa noite ele não pensa, apenas dorme indiferente à todas as catástrofes anunciadas pelo jornal da tarde.

Um barulho surge no horizonte para quebrar a melodia do silencio, pneus derrapando de um carro ziguezagueante são acompanhados de risadas descontroladas de jovens dominados por drogas e bebidas ingeridas a pouco. Procuram por diversão, agentes do caos, indiferentes a cidade que dorme, querem apenas saciar seus desejos, são escravos da necessidade momentânea. Um dos baderneiros avista o homem distante, sugere que averiguem a situação, todos concordam e seguem rumo àquele que busca apenas por descanso. Descem do carro. Chegando perto do homem um arruaceiro desfere o primeiro golpe: um chute forte na barriga. Subitamente os olhos do homem se arregalam contra a sua vontade, lacrimejam e exalam desespero. Os outros jovens olham assustados para a violência demonstrada, param por alguns segundos, ficam sérios e pensam sobre o que estava acontecendo, em seguida o segundo jovem pisa sobre a perna machucada, um gemido é emitido e abafado pelas risadas que se seguem. Todos cercam o homem e começam a chutar, pisotear, cuspir e amaldiçoar. Batem até que o cansaço os incomode, até que o desejo seja saciado. Param ofegantes, apoiando as mãos sobre os joelhos, se encaram e fogem, sem se importar se o mataram ou não. O seu corpo agora estava lutando para continuar vivendo, costelas e dentes quebrados, sangue escorria de sua perna, de sua testa. Cuspia também. A morte de dois de seus vermes, gemidos e uma leve hemorragia que começava em seu interior geravam uma pintura triste, uma tragédia grega. Desmaia de dor.

O sol brilha forte no céu ignorando a tentativa das nuvens recém formadas de fazerem sombras. Ninguém se incomoda com isso, o feriado importante está ocupando a cabeça de todos, hora de parar com as obrigações e refletir sobre a vida, se alinhar ao exemplo que este grande personagem que nomeia o feriado nos deu há séculos atrás. Tempo de fazer doações, ficar com a consciência tranquila. Como se pintar por fora a casa que desmorona sem teto, com vazamentos e fria pudesse fazer alguma diferença para qualquer um de seus habitantes. Uma mulher caminha com passos firmes e inabaláveis pela calçada onde se encontra o homem estirado, com sangue coagulado em volta de suas feridas e olhos tão inchados que mal podiam ser abertos. Um olhar de desprezo é lançado em direção ao pobre ser agonizante. Prossegue seu caminho, para e percebe a oportunidade que está deixando escapar por entre seus dedos, dá meia volta e retorna, para em frente à ele sem sequer olhá-lo, abre a carteira e lhe lança a maior nota que encontra. Retoma seu caminho orgulhosa pela boa ação, sua mente repousa tranquila com a sensação de dever cumprido, mais tarde comentaria sobre a vida que mudou e todos ficariam orgulhosos. Já o homem, estirado, se esforça para lembrar onde está, abre os olhos,mas tem uma visão embaçada do mundo ao redor, percebe que algo foi posto em sua frente, não consegue identificar, apenas um pedaço de papel, sem se importar observa o vento levar para longe a boa ação da excelente mulher.

Com dor o homem ajeita o banco da bicicleta na parede para poder encostar a cabeça e aliviar a pressão sobre seu corpo. Olha para o horizonte, sua mente está distante, seu olhar mira uma pequena borboleta que o leva em direção a uma criança que tenta apanhá-la, com um vôo mais elevado ela escapa dos pulos do pequeno, que desiste desolado. A borboleta foge em direção a um pequeno jardim e o garoto a segue com os olhos até ela sumir de vista e, instintivamente, olha para trás. Seu olhar cruza o olhar dolorido do homem no horizonte próximo. O menino se comove. Caminha rumo ao jardim, pega uma pequena flor amarela e dispara em direção a ele sem saber o que está fazendo. Quando ficam a poucos passos de distância a criança para, encara o homem com sinceridade e sente um aperto no peito, uma sensação desconhecida: sente toda a culpa do mundo sobre suas costas e se arrepende diante do homem. O homem por sua vez se sente aliviado, sente que pela primeira vez na sua vida alguém o ajuda a carregar a cruz que lhe foi imposta desde o seu nascimento. O pequeno caminha lentamente e estende o braço com a delicada flor na mão, do outro lado um braço sujo de sangue lhe é estendido em resposta, aceitando a flor. Dividem duas ou três lágrimas juntos, um momento de cumplicidade e sinceridade. A humanidade foi salva pelo gesto do garoto, pela sua inocência. O perdão foi aceito e o descanso foi oferecido em troca. Um grito distante é escutado: o pai preocupado com a companhia do filho o chama desesperado, a criança vira e parte tranquila.

Escurece, o dia foi longo, o corpo pede por descanso, quer dormir para esquecer a dor que tanto lhe aflige. Apesar de não comer há algum tempo não sente mais fome, quer apenas molhar a boca, se refrescar. Tenta se levantar mas não tem mais forças para ir até o bar, o esforço foi muito grande: adormece.

Sente que é hora de acordar, abre os olhos e se encanta com o conforto que existe a sua volta, apalpa levemente sua barriga e se surpreende ao perceber que nada dói, sua perna está inteira. Não está sujo, mas sente vontade de tomar banho, levanta-se, entra em um grande banheiro branco com duas toalhas penduradas, abre o registro e faz o que jamais fizera em toda a sua vida: uma água morna começa a cair sobre seus cabelos, se lembra das chuvas de verão que tomava quando era jovem, pega o sabonete e se esfrega, lava todo o seu corpo delicadamente, desliga o registro. Pega a toalha que pensa ser sua, enxuga seu rosto com uma sensação de bem estar jamais experimentada e sente um cheiro que desperta fome, sua velha conhecida. Coloca uma roupa que estava sobre uma cadeira, fica surpreso: serve perfeitamente. Começa descer as escadas com uma mão no corrimão e a outra passando pela parede, toca os quadros que encontra. Curioso. Enxerga com os olhos e com as mãos. Já estive aqui antes? Minha, minha casa.

Encontra uma mesa com uma linda toalha branca, a mesa esta cheia, pães, torradas, sucos, café, presunto, queijos, frutas, geleias, manteiga, não falta nada. Olha ao redor e vê pessoas sentadas, conversando e rindo, esperando por ele, são seus pais e sua mulher. Senta em silêncio, sua presença não surpreende ninguém, está perdido. Então é subitamente introduzido na conversa, sua mulher vira a cabeça em direção a ele e diz, Não é mesmo?, sem saber ao que se referia a pergunta ficou em silêncio. Olha só pra você, sempre acorda devagar não é mesmo?, um sorriso lhe saltou da boca e continuou, Estava contando a seus pais que você se comprometeu a lavar o carro hoje e tirar toda aquela terra vermelha que ficou da última viagem, Ahh... Claro.

Após terminar de comer em silêncio, levantou-se e seguiu para a lavanderia, pegou a mangueira, sabão, balde e uma escova. Foi para a garagem e preparou o carro, ligou a mangueira na torneira, encheu o balde com água e sabão. Algo estava estranho, Esse não sou eu. Começou a esfregar a porta do carro, em seguida veio o teto até que a mangueira cedeu à pressão da torneira e começou a espirrar água por toda a parte, algumas gotas caíram sobre seu rosto. Fechou os olhos. Abriu-os lentamente. As primeiras gotas de chuva de uma noite escura. A dura realidade ainda é melhor do que o mais belo sonho: é real. A água caiu forte esta noite, limpou as crostas de sangue de suas feridas, lavou seu corpo, o preparou para o sepulcro. Não sentia frio ou dor, sentia apenas a vida que sair de seu corpo de uma forma suave, como uma folha que cai de uma árvore durante o outono. Voltou a dormir.

O sol já estava no céu a tempo suficiente para secar-lhe as roupas quando uma música suave começou a tocar, suas notas tranquilas dançaram no ar até beijarem suavemente os ouvidos do homem que ainda dormia. Despertando, procurou a fonte desta doce sinfonia. Perto dele encontrou um flautista que tocava especialmente para ele, ninguém na rua prestava a atenção, está música não era ouvida pelos vivos. Sentia que seu momento finalmente havia chegado. A cada nota tocada sentia a cruz sobre suas costas despedaçar. Suas feridas já não eram mais suas, seu corpo já não era mais seu. Uma paz começava a invadir toda a sua alma que era tomada de uma consciência universal, enxergava o mundo com clareza agora, podia ver todas as injustiças que sofrera e ver o quanto amava garoto do dia anterior. Estava livre. Para sempre.

Felipe Pimenta
Enviado por Felipe Pimenta em 25/04/2014
Código do texto: T4782911
Classificação de conteúdo: seguro