PANELA DE PRESSÃO

— Puxa vida! A panela tá com defeito! Que merda! — Dorinha não se contém nas palavras, ao desembrulhar o pacote com o presente que comprara para a sobrinha.

— Olha o palavrão! — Clóvis dirige-se em tom zombeteiro à cunhada.

— Como assim? Que defeito? — Dalila, preocupada, aproxima-se da irmã.

— Aqui, como é que se prende a joça desta tampa? Não tem como manter a tampa segura. — Atabalhoada, Dorinha rasga os papéis que envolvem a panela de pressão. — Que sacanagem! E eu que perdi tanto tempo procurando essa porcaria de panela. Só comprei porque Lélia escolheu. Por mim, daria outro presente. Um porta-retrato lindo que vi no Atacadão do Manolo.

— E por que não comprou? — Clóvis gosta de espicaçar a cunhada. — A gente deve fazer o que dá na telha.

— Ah, deixa pra lá. Agora, quer saber o que vou fazer com essa panela defeituosa?

— Deixa ver. — Dalila, entrando na sala, pega na caixa de papelão. Examina a peça. — Não tem defeito, não. Tá faltando uma peça. Falta o pino de pressão.

Nervosa e afobada, Dorinha não aceita opinião nem conselho. Teima na sua primeira impressão.

— É a mesma coisa. Pra mim, tá defeituosa.

— Você pode devolver. A loja aceita a devolução, a troca por uma peça boa. — Clóvis tenta acalmar a cunhada, à beira de um ataque de nervos.

— Deixa de ser bobo, Clóvis. Vê lá se eles vão acreditar que veio com defeito!

— É da lei. Você volta lá, eles trocam, sim, a mercadoria. — Dalila é calma, mas não consegue apaziguar a irmã.

— Você pode trocar a panela defeituosa por uma dúzia de porta-retratos. Dá um pra Lélia e leva o resto pro Astolfo vender. — O sarcasmo de Clóvis não tem limites.

— Clóvis! — Dalila tenta chamar atenção do marido.

— Que você quer dizer com isso? O Astolfo não é dessas coisas, não!

— Há-há-há. Já sei. Ele só vende coisas do Paraguai.

— Não é da conta de ninguém o que meu marido faz para ganhar a vida!

— Tá bom. — Clóvis desiste de ser Cortez. — Então joga essa panela no lixo.

— Clóvis! Seja mais educado com Dorinha!

No próximo sábado, casa-se Lélia, filha de Clóvis e Dalila. Presentes chegam a toda hora à casa da noiva. Na noite de quinta-feira chegam visitas com mais presentes. Entre os quais o filho de Dorinha, Ildeu, com a esposa Marta.

— Veja só que desastre! — Dorinha vai logo se queixar ao filho. — Comprei essa panela de pressão que veio com defeito.

— Deixa ver. — Ildeu examina o utensílio e chega à mesma conclusão a que haviam chegado Clóvis e Dalila. — Não é defeito, não. Está faltando uma pecinha para prender a tampa.

— Falta o pino de pressão. É simples. — Marta dá sua opinião. — Volta na loja e troca.

— Falar é fácil! Vocês não sabem o trabalho que me deu escolher essa panela! Pensam que é só eu chegar lá e ir trocando, assim, sem mais nem menos?

Dorinha é obtusa e desconfiada de tudo e de todos. Habituada a sua pacata existência de professora em pequena cidade do interior, acha difícil a vida na capital. Por insistência da irmã é que passa alguns dias, todos os anos, hospedada no apartamento de Clóvis e Dalila. Mas não se acostuma nem ns mínimas coisas com “a vida da capital”.

— Vocês são trouxas, vivendo nessa correria. Não têm tempo pra nada. — Não gosta das rotinas da irmã e do cunhado nem faz por onde gostar ou adaptar-se. Nesses dias, visita a irmã, convidada que fora para assistir ao casamento de Lélia, a sobrinha.

Dorinha e Dalila, irmãs, são cara-e-coroa uma da outra. Dorinha é mais velha: grande, gorda, gosta de roupas espalhafatosas. Sua presença é notada em qualquer local, pela agitação que provoca. Professora em escola primária, tem-se como muito sincera e fala em voz alta tudo o que tem para dizer. A boa dicção é superada por palavras inapropriadas numa boca feminina. Impõe-se pela corpulência e pelo destempero.

Dalila é a irmã mais nova, o que não faz muita diferença, pois ambas estão na casa dos quarenta e poucos anos. É miúda, fala mansa e quase nunca perde a paciência. É independente e decidida, mas se anula completamente na presença da ponderosa Dorinha.

— Se a senhora quiser, podemos ir juntas à loja, amanhã cedo, para a troca – Sugere Marta.

— Pode deixar, eu me arrumo. — Dorinha não quer ser orientada pela nora. Quem ela pensa que sou? Posso resolver isso sem ajuda de ninguém.

— Eu só quero ajudar. Mas se a senhora resolve tudo sozinha... — Marta ironiza.

— Marta! — Ildeu entra na conversa. — Mamãe, eu vou com a senhora.

— Não precisa! Já falei! Vocês me acham incapaz, não é? Pois vão ver! — Dorinha fala alto, constrangendo os outros visitantes.

Na sexta-feira, véspera do casamento, Dorinha decide-se. Pega o pacote com a panela de pressão e dirige-se à loja onde a comprara. Toma um táxi.

— Me leva ao Atacadão do Manolo.

O taxista pergunta por onde ela prefere ir:

— Vamos pela via expressa ou a senhora prefere cortar pelo bairro?

— Sei lá! Você que é motorista é quem sabe o caminho melhor. Vá pelo mais curto. Não vai dar voltas por aí, hein? Estou de olho no taxímetro.

Ao entrar na imensa loja de departamentos, Dorinha não se dirige, como deveria, à seção de reclamações. Vai direto à prateleira onde estão panelas, caçarolas e afins. Coloca a sua sacola no chão, e inicia uma inspeção nas caixas de panelas idênticas à que comprara. Ao abrir a primeira, verifica que está completa- panela, pinos de pressão, tampa, etc. – Faz a substituição.

Quando está prestes a colocar a caixa na sacola, surge um atendente.

— Em que posso servi-la, senhora?

Surpreendida, Dorinha não tem uma desculpa plausível.

— Não, só tô vendo.

— Mas a senhora colocou uma das caixas nesse pacote.

— É...Bem...Essa eu comprei aqui na terça-feira.

— Deixa ver a nota.

— Nota? Que nota? — Na sua afobação, ela sequer pensou em levar consigo a nota fiscal da compra.

O atendente percebe a irregularidade.

— Por favor, a senhor me acompanhe até a gerência.

— Mas, que foi que eu fiz? Essa panela eu comprei outro dia.

Não adiantaram as palavras mansas, a princípio, nem o destempero posterior. Nem bravatas nem explicações demoveram o moço de fazê-la apresentar-se à gerência. Onde não houve como explicar o que não podia ser explicado. Sem a nota da compra, tudo levava a indicar que ela estaria surrupiando uma caixa com a panela.

Sentindo-se afrontada, humilhada, desrespeitada, não teve outra alternativa senão pedir a ajuda do filho. A custo, o gerente aquiesceu em deixá-la telefonar.

— Ildeu? Sou eu. Sua mãe. Estou aqui no Atacadão do Manolo. Vim trocar a panela. Mas deu confusão. Preciso que você venha aqui. Estou na gerência.

O filho acudiu a mãe em tempo recorde. Não sem antes passar pelo apartamento da tia Dalila, para apanhar a nota fiscal.

— Mas o que a senhora aprontou?

— Queria apenas trocar a panela.

O gerente, de posse da nota de compra, esclareceu:

— Ela devia ter se dirigido à seção de trocas. Seria atendida prontamente. Mas preferiu fazer, ela mesma, a troca na prateleira.

Dorinha torcia as mãos, olhava para os funcionários da seção. Chorar, não chorava. Mas o nervosismo molhava sua testa de suor.

Com a presença do filho e da nota, tudo ficou esclarecido. Liberados pelo gerente, dirigiram-se ambos à seção de trocas. Em instantes a substituição foi feita.

Ao sair da loja, Dorinha, com empáfia e orgulho, determinou ao filho:

—Pelo amor de Deus, Ildeu, não vá contar isso pra ninguém, ouviu?

Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 10 de julho de 2002.

CONTO # 169 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/04/2014
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