O reflexo
Olho pelo vidro do guarda-louça, tentando apanhar uma xícara para um pequeno café, e vejo refletidos ali os olhos de uma criança. Talvez a barba seja mesmo uma maturidade comprada, como muitas coisas que se compra para se parecer o que não se é. Esses olhos não enganam transparentes que são, deixam entrever um homem que não se atreve a sair. O homem está com medo do escuro. É a criança quem lhe dá a mão e insiste, “Venha! venha! Vamos brincar”. Mas ele tem medo.
O homem está sério e sabe quantos perigos corre ao sair perambular aí por essas calçadas. A criança corre à frente dançando e sorrindo em zigue-zagues por entre pessoas e carros em movimento. O homem para, olha, escuta. Mas não vê. A criança vê e ao ver repara, ela nada sabe desses apertos de mão indiferentes, sorrisos postiços. Tantos ois e bom dias ostentando gentilezas como flores de plástico.
Ela nada sabe da covardia no amor. Pobre homem, pobre mulher, covardes anões. Já não querem mais apostar, pois sua maturidade lhes diz que o jogo é perigoso. Desistiram de jogar, não querem mais arriscar um movimento incerto, nessas cartas já tão marcadas.
O homem é demasiado bronco para brincadeiras, está tão cansado para os jogos de azar. Julga-se experiente, anda arcado como quem carrega um fardo difícil de sustentar, suas mão estão calejadas como quem muito sofreu, muito viveu, muito perdeu. Pobre sofredor, caminha deixando rastros fundos no chão e sempre encontra alguém a quem possa despejar sua dor e confessar todo seu pesar. Tão cheio de passado, tão vivido, um homem maduro prestes a cair do galho. Mal sabe quão próximos andam maturidade e podridão. O que está inteiro já está prestes a desintegrar-se, ascensão e decadência caminham de mãos dadas como gêmeos univitelinos, a completude e o acúmulo de vida são as portas abertas para a morte e a morte está perfeita para alimentar a vida, dando sustento aos vermes, florescimento às plantas e vigor ao homem. Todo instante reinicia onde acaba. O anel se encontra consigo mesmo em todo ponto. No eterno curso circular das coisas velho e criança seguem abraçados.
É homem de palavra, sujeito de promessas. Não quer brincar, bem sabe que o jogo é incerto. O menino às vezes chora, o homem nunca. Ele chora, porque não tem medo. Ele chora porque vê nos olhos do homem o medo dissimulado em valentia e sabedoria. Mas seu choro dura pouco, tanto quanto um estalar de dedos e, não raro, ao seu choro vem se misturar o riso. Ele ri, pois sabe, muito mais do que o homem, que não pode prometer, ele quer, simplesmente, brincar. E mais, nas brincadeiras nada se pode prometer. Sem garantias. O jogo é sempre imprevisível e nunca dado de antemão, como acredita o homem, covarde, procurando sempre por certezas, como cachorro farejando rastros, como ratos atrás da sujeira, como pássaros um ninho, um galho em que descansar, como pulmões o oxigênio. Como quem anseia por sombras em pleno deserto e raios de sol no mais frígido inverno.
O menino sabe onde está a graça do jogo, todo o frio na barriga, frisson dos encontros inesperados. Ele está sempre pronto a amar, porque sempre está disposto a jogar. Mesmo que lhe machuquem o pequeno coração. Ele sabe que só estava(m) brincando. Mas, com a seriedade que só as crianças conhecem.
O pequenino vira a mesa, mistura as cartas, derruba o tabuleiro na metade da partida. Seus carrinhos ao contrário do que dizem, ele bem sabe, são feitos especialmente para serem arremessados ao chão e se partirem em dezenas de minúsculos e insignificantes pedacinhos. Então ri. E quem sabe rir melhor do que uma criança?
Ela não sabe o que é perder ou ganhar, ainda, ninguém lhe ensinou. Ela quer recomeçar. De novo, sempre de novo. Como um sempre novo e primeiro olhar para todas as coisas. Ela ri, ela brinca, ela ama. Mas com a seriedade que só as crianças sabem ter.
Mas o homem não se atreve a sair. Pois tem medo do escuro. Congelado no reflexo do vidro do guarda-louça, permanece. Com sua maturidade comprada, com sua barba crescida. Acanhado, segurando a mão da inocente criança de lindos e transparentes olhos castanhos.