EU ME CHAMO LILI
— Mas que história é essa? Está na hora do Leo ir pra escola e ainda não fez o dever de casa?
— Pois é! Eu canso de falar pra ele, mas ele não me escuta. Não me obedece.
Leo estava amuado, no canto da cozinha, esperando a mãe fazer o grude para colar os recortes da lição da Lili. O pai, chegando para o almoço, encontra a mãe afobada, acabando de fazer a comida, e mexendo a frigideira com polvilho e água.
— Se continuar assim, vou colocar esse menino na escola de dona Cornélia. Lá, sim, ele vai deixar de ficar enrolando o tempo. — Seu Benedito ameaçava pela enésima vez. Leo não acreditava na sua transferência do grupo escolar para a escola particular.
Era o caçula de uma fileira de seis filhos. A família grande sobrevivia modestamente naqueles tempos difíceis com o trabalho do pai, modesto alfaiate que trabalhava na Alfaiataria “A Modelar”. Os outros filhos foram todos dedicados aos estudos, e os mais velhos ajudavam na manutenção da casa. Luiz, com dezoito anos, já estava namorando firme, tinha bom emprego e falava em se casar.
— Vem, menino, vamos colar essas fichinhas, enquanto seu pai almoça. Vamos logo, senão você chega atrasado na escola.
Frigideira numa das mãos, os pedacinhos de papel na outra mão, dona Nenê chama o filho para a sala. Sobre a mesa, uma mistura de livros, papéis recortados, diversos lápis de cor, borracha, a pasta de couro entreaberta, com alguns livros e cadernos por perto.
— Que bagunça, Leo! Desse jeito, você vai levar bomba no fim do ano.
O pai vem da cozinha, prato feito na mão, senta-se a um canto da mesa, empurrando o material escolar do filho. Põe-se a comer, enquanto observa a mulher colando os papéis com palavras, formando frases, completando o dever de casa do filho. O garoto não se dispõe sequer a colaborar com a mãe.
— É gozado esse sistema novo. Em vez de ler e escrever, os alunos têm de colar palavras. Não entendo muito de ensino, mas acho que essa cartilha da Lilí é uma grande besteira. — O pai comenta a respeito do novo sistema de ensino, introduzido na escola primária naquele ano.
— Leo não gosta de estudar, por isso não dá certo. A professora me disse que a maioria dos garotos adora fazer esse trabalho de colar palavras, formando frases, e que todos aprendem muito bem. — Dona Nenê, com paciência, vai colando os pequenos pedaços de papel, com as palavras, fazendo o dever de casa que Leo deveria ter feito.
— Se não apressar, o menino chega atrasado.
— É, mas aqui em casa, todos os outros estudaram no outro sistema, cê lembra, né? Deu certo com todos eles. O Carlos até tirou primeiro lugar no quarto ano, foi orador da turma. Aquele sistema era muito melhor.
Enquanto o pai come, a mãe termina o para-casa de Leo.
— Pronto! Agora, avia-te. Bota a camisa pra dentro das calças. Fecha sua pasta, vamos, menino!
Leo faz tudo devagar, com má vontade. Não gosta de estudar e faz questão de mostrar isso na indolência com que se prepara, nos desleixo para com os livros e cadernos e nas notas baixas que obtém.
— Cadê o dinheiro pro lanche?
— Toma, aqui estão quinhentos réis, vê se não gasta tudo, hein? — A mãe passa-lhe a moedinha amarela, de valor suficiente para comprar uma modesta merenda.
— Por que você não toma a sopa da escola? É de graça e você pode guardar seu dinheiro.
— Não gosto de sopa de fubá nem de mandioca. É só o que as serventes sabem fazer.
Enfim, o garoto sai, atropelando o Totó, que vem da rua, procurando comida.
— Esse menino vai dar trabalho. Não gosta de estudar, passa as manhãs jogando pião e bolinha de gude. Não sei o que fazer pra prendê-lo em casa, fazendo os exercícios da escola.
— Ora, Nenê, cê não tem culpa de nada. Pra mim, o defeito é desse sistema novo. Os alunos ficam tempo demais cortando essas tirinhas, separando as palavras e depois juntando tudo, colando. Em vez de escrever ou ler livros próprios para a idade.
— O Leo tá ruim nas notas. Tenho medo de que ele tome bomba no final do ano.
— Ainda estamos no primeiro semestre, é cedo pra pensar assim. Vou apertar ele de noite, fazer ele estudar até as nove horas.
A promessa já fora feita diversas vezes. Mas o garoto simplesmente não agüentava. Se não era afeito aos estudos, era vivo e não parava um instante, correndo, brincando, subindo nas árvores do quintal. Depois do jantar, às seis da tarde, se o pai insistia, o garoto derreava em cima dos livros, não agüentava mais nada.
— Que diferença dos outros. Ninguém deu trabalho na escola. O Tonico era até engraçado, com aquela mania de escrever, fazer redação, cê se lembra, Nenê?
— Se lembro! Pena que a gente não teve condição de mandar nenhum deles pro ginásio.
— Agora, se Leo não se aplicar, vou ter de trabalhar mais pra pôr ele na escola particular.
— Na escola de dona Cornélia o sistema ainda é o antigo, mais apertado.
— É sim, mas a mensalidade lá é bem cara.
— Se não tiver outro jeito, Leo vai pra lá, sim.
— Meninos, meninas! Atenção! Agora vamos ler. Vamos ver o que a Lili está fazendo. Cecília, o que está escrito na primeira oração? — Dona Lúcia, magra e alta, anima os seus alunos.
Cecília levanta-se e lê com desenvoltura:
— Eu me chamo Lili.
— Muito bem! — perguntando a cada aluno, chega a vez de Leo.
— Leo, leia a oração seguinte.
— Eu não sei... co-comer...— Leo gagueja, titubeia. Ouvem-se risos de alguns colegas.
— Preste atenção, Leo. Eu não sei...Eu não sei... o quê?
— Eu não sei ... coser!
— Muito bem! Continue.
— Eu não sei coser. Como vou fa-fa-fa...
Leo não consegue concluir. Dona Lúcia completa:
— Eu não sei coser. Como vou fazer? Pode sentar, Leo.
À saída da aula, ela chama o garoto, dá um recado:
— Diga pro seu pai ou sua mãe vir conversar comigo.
Leo sabe que a sua nota foi ruim. Mas não se incomoda. Não gosto de estudar e pronto!
No segundo semestre, Leo foi matriculado na escola particular de dona Cornélia. Professora aposentada do sistema estadual de ensino, mantinha algumas classes de curso primário, justamente para os alunos que não se saíam bem na escola pública. Sua figura imponente se impunha, fazendo tremer os alunos. Alta, muito gorda, usava roupas amplas e mais parecia uma obesa vestal, sacerdotisa da disciplina, que aplicava com rigor, de preferência a transmitir o saber e o conhecimento aos seus pupilos.
Leo apavorou-se com a nova escola. Aos rigores da disciplina somava-se a exigência do uniforme sempre limpo, sapatos engraxados todos os dias. A pasta, os livros e todos o material escolar era vistoriado diariamente e tinham de ser mantidos em boa ordem, bem cuidados.
— Mãe, a professora é muito braba. Tem uma regüinha que estala na carteira, dá sustos na gente.
— Eu falava e você não acreditava. Agora, em vez das lições da Lili, você tem a régua da dona Cornélia. Bem feito!
O sacrifício financeiro foi repartido entre o casal: o marido passou a trabalhar também à noite, até nove ou dez horas e a mulher passou a fazer doces para vender no empório do seu Nenelo, logo ali na esquina.
O menino, que era vadio mas não era burro, compreendeu a situação. Não gostava das lições da Lili, mas gostava menos ainda do terror que lhe inspirava o método de Dona Cornélia. Vou ter de me safar desta escola. O jeito é ter boas notas. Vou estudar a fim de voltar pro grupo escolar no ano que vem. Compenetrado dessa idéia, mudou de atitude.
Ou porque o método de ensino de Dona Cornélia fosse eficiente ou porque Leo se dedicasse com afinco ao estudo, o caso é que no final do semestre o garoto era outro. Prestava atenção às explicações, fazia os deveres de casa a tempo e à hora, estudava em casa. Tomou gosto pela leitura e por escrever. Suas redações melhoraram. Chegou até a escrever umas quadrinhas, que declamou na festa de encerramento do ano escolar.
— Parabéns, Leo! Sabe, dona Nenê, seu menino foi a revelação da escola. — As palavras eram da imensa e eficiente mestra. — Quando chegou aqui, me deu trabalho, mas agora, no final do ano, está completamente diferente.
— É o seu jeito de ensinar, seu método. — O pai se intromete na conversa. — Aquele sistema da Cartilha da Lili é uma bagunça, não ensina nada.
— Pode ser, seu Benedito, pode ser.
Com seu boletim de notas na mão, entre o pai e a mãe, Leo está orgulhoso. Dirigem-se para casa, todos felizes com as palavras da professora.
— Pai, posso pedir uma coisa pro senhor?
— Se for coisa que eu possa te dar...
— Sabe... no ano que vem...eu quero continuar estudando na escola de dona Cornélia. Posso?
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE, 8 DE MAIO DE 2002
CONTO # 158 DA SÉRIE MILISTÓRIAS