CHÁ E SIMPATIA

— Tô cum medo, mãe.

— Medo de que, Jair?

— Acho que as freiras não vão me querer como coroinha, depois de faltar uma semana.

— Não tem problema. Já mandei o Sérgio avisar. Elas estão sabendo que você está machucado.

O receio do garoto faz parte do péssimo estado de espírito em que se encontra. Está há mais de uma semana acamado por conta do prego que fincara em seu calcanhar. Sem poder caminhar, não vai à escola nem à capela onde ajuda na celebração diária da missa das seis e meia da manhã.

— Num sei não. Mas garanto que as freiras não vão me pagar esses dias em que estou faltando.

Que chato! Quando voltar à escola, vou ter de estudar dobrado, estou perdendo muitas lições. Pode até acontecer de levar bomba, repetir o ano. Tomar bomba no último ano, é mito azar! — Jair freqüenta o terceiro ano do grupo escolar. Estudioso, é um dos primeiros da classe e estremece de horror só em pensar em repetir o ano.

Há uma semana está sem poder sequer sair de casa. Foi exatamente no domingo anterior que machucara o pé. Pisou num prego enferrujado, cravado num pedaço de madeira, no fundo do quintal da casa. O pai acudiu quando ouviu o gemido.

— Mas, o que é isso? Quem foi que deixou esse toco aqui no quintal? Garanto que foi arrumação de você e do Sérgio.— Examina o pedaço de madeira com o prego: preto de ferrugem, manchado com o sangue, um prego grande, dez centímetros de cumprimento, que se enterrou até a metade no calcanhar do menino. — Vocês não têm jeito, não prestam atenção...— E seguiu-se uma reprimenda zangada, com promessa de castigos.

Subiu com Jair, que não podia apoiar o pé no chão, de tanta dor.

— Carmélia, traz a cachaça canforada, passa aqui no pé do Jair.

— Que foi?

— Ele fincou o pé num prego enferrujado lá no fundo do quintal.

Tempos difíceis e de extrema simplicidade. Para o machucado de Jair, não se cogitou de uma limpeza mais profunda no ferimento, ou de levar o garoto para a Santa Casa, nem mesmo de chamar o doutor Arquimedes. Tudo ficou restrito em passar um algodão embebido em aguardente misturada com cânfora e arnica, verdadeira panacéia para todos os problemas de saúde da família.

Mais do que a simplicidade, falava mais alto a falta de dinheiro. A família era pequena, apenas seu Renato, dona Carmélia e os dois filhos. Todos colaboravam, de um modo ou de outro, para a economia familiar. O chefe da casa, marceneiro com oficina no fundo do quintal, ganhava pouco de seu trabalho de consertar móveis usados. Agregava mais algum com a venda de hortaliças cultivadas no grande quintal. A esposa acrescia a renda familiar com a venda de toalhas de crochê, que fazia com habilidade e rapidez. Até os meninos ajudavam. Jair, com 11 anos, recebia trinta mil réis por mês, nas suas funções de coroinha na capela do colégio das freiras. Dinheiro que entregava religiosamente à mãe, administradora sagaz das receitas familiares. Sérgio, dez anos, mais forte do que o irmão, também “trabalha” para ter alguma renda: todos os dias (menos aos domingos) está encarregado de buscar pão na padaria do Zé Ramos e levar à venda de Jânio Lima. Os pães estão quentes, da fornada do meio-dia. O saco com cinqüenta pães é pesado, mas o garoto é robusto. Além do peso do saco, os quentes queimam-lhe as costas. O percurso é curto: apenas três quarteirões da padaria à venda, passando pelo Jardim das Palmeiras. O sol a pino castiga o menino. Ele pára a fim de descansar debaixo de uma frondosa figueira, bem no centro da imensa praça. Por essa jornada diária, Sérgio ganha um pão, que leva para casa: ajuda no café da tarde.

Dentro desse esquema de dinheiro curto, é natural que problemas de saúde sejam tratados com recursos caseiros. Chás e benzeduras, simpatias e poções feitas com ervas do quintal eram os primeiros medicamentos usados. Consultas médicas e remédios de farmácia eram luxo, aos quais se recorria apenas em caso de muita gravidade.

No domingo à noite o pé de Jair apresentava-se inchado. O garoto queixa de dores lancinantes e a mãe aplica uma cataplasma de angu muito quente.

— Ai, ai, aaaaai! Tá queimando, mãe. Tira, tira, tá me queimando o pé.

— Agüenta! E bom bem quente. É assim que faz resultado.

Depois, enfaixa o pé, tendo aplicado folhas maceradas de erva-de-sete nervos com basilicão.

— Essa erva é tiro-e-queda, evita a inflamação. Amanhã você já vai estar bom. — Dona Carmélia ministra os remédios com a experiência de muitos anos atendendo à família. Principalmente os ferimentos do marido, que volta e meia aparece com um corte de formão, uma escoriação ou uma martelada nos dedos. Preparou uma panela de chá de chapéu-de-couro, que dá para Jair tomar de duas em duas horas.

— A senhora tem de banhar o pé do Jair com urina e fumo.

— Como é que é? — A mãe estranha a recomendação da vizinha, Dona Duartina.

— Evita a inflamação e cura qualquer infecção.

Dona Duarte sabe do que fala. Filha do farmacêutico Hermengáudio Lobato, ajudara o pai na Pharmácia Cathedral antes de se casar. Guardava na memória todas as fórmulas das poções e combinações dos diversos medicamentos, ervas e pós. Para qualquer problema de saúde da vizinhança apresentava uma solução medicamentosa. Era de grande ajuda à vizinhança nos momentos mais difíceis e seus conselhos eram seguidos à risca.

— Credo! Não consigo imaginar como essa mistura pode curar o calcanhar do Jairzinho. — A mãe não escondia o nojo somente em pensar em tal remédio.

O conselho de dona Duartina foi na manhã de segunda-feira. O pé de Jair amanhecera muito inchado, quase o dobro do tamanho normal. Vermelho nos dedos e violáceo no calcanhar e tornozelo. Ao acordar, Jair não pôde movimentar o pé. A mãe banhou carinhosamente com a infusão de pinga alcanforada com arnica, refrescante e perfumada.

Pela hora do almoço apareceu, vinda não se sabe de onde, uma velhinha.

— Bom dia, dona Carmélia! Soube que aqui tem um menino precisando de benzeção, então vim fazer o mandado. — A figura miúda da velha apequena-se ainda mais por seu porte curvado. É quase uma anã. Os cabelos brancos, compridos, penteados e repartidos ao meio, escorrem-se pelos lados da cabeça. Rugas cobrem-lhe a face. A boca murcha,sem dentes, dá uma estranha entonação na voz, roufenha, misteriosa. O vestido rodado, mais parecendo um camisolão cor de cinza, é velho e limpo. Descalça, exibe os pés de andarilha, gretados e calejados pelas beiradas.

— A senhora é benzedeira?

— Sim, mia fia. Sou Jerusa, a senhora num sabe?

Jerusa Santinha! Já ouvi falar dela, mas faz tanto tempo. A mulher parece uma bruxa. Dizem que ela cura só de por as mãos nas feridas. Então , quem sabe ela ajuda meu filho?.

— Então, entra, dona Jerusa. Meu menino tá com o pé machucado, entrou um prego no calcanhar. Vem vê, ele tá no quarto.

Deixando o marido e Serginho almoçando na cozinha, a mãe leva a benzedeira até o quarto onde Jair dormita. Da testa poreja suor, e o pé está escuro.

Jerusa abre um bornal que trazia dependurado nos ombros. Tira ramos de arruda, cujo cheiro se espalha pelo quarto, um toco de vela e um terço de contas de madeira. Vai colocando tudo em cima do criado-mudo, ao lado da cama, de maneira ritualística.

— Acende a vela, dona Carmélia. E traz um copo d´água.

A vela acesa e o copo com água são colocados dentro de um círculo formado pelo terço. A pequena cruz de metal pende da borda do pequeno móvel. Jerusa ajoelha-se e faz uma oração em surdina. Em seguida, levanta-se e molha o ramo de arruda na água do copo e asperge todo o corpo de Sérgio, de acorda de seu marasmo. Ao chegar no pé machucado, a benzedeira esfrega o ramo sobre o ferimento. O menino geme fracamente.

A benzedeira apaga, então, a vela, que recolhe, junto com o terço, em sua sacola de pano.

— Dê a água para o menino tomar, aos pouquinhos. — Recomenda à mãe, e sai, sem mesmo se despedir.

A tarde segue lenta e sofrida para Jair. A mãe permanece ao seu lado, fazendo crochê e atenta a qualquer movimento do filho. Não vê nenhuma melhora. O menino está prostrado. O suor continua minando de sua testa, que ela limpa seguidamente. De tempos em tempos, dá ao garoto — que não come nada — uma xícara de chá de chapéu-de-couro.

Ao entardecer, novamente chega dona Duartina. A mãe conta da visita misteriosa da velha Jerusa, a benzeção e o copo com água benta que Jair já bebeu.

— Não acredito nessas benzeduras, dona Carmélia. Acredito mais num chá do que numa simpatia. Continuo achando que a senhora deveria banhar o pé do garoto com fumo e urina.

— Mas... é tão esquisito. Acho que não consigo fazer...

— Olha, tem que ser com o xixi do garoto. A senhora pega no urinol, põe numa vasilha de louça, pica um pedaço de fumo e deixa por algumas horas. Então,é passar na ferida um algodão molhado na urina. Tem que fazer a mistura todos os dias, não pode usar a mistura da véspera, porque a urina estraga logo.

No dia seguinte, a situação do pé de Jair é a mesma. Não melhorou nem piorou. A mãe recolhe do urinol o xixi de Jair, colocando-o num jarro velho, de louça.

— Renato, vai na venda do seu Jânio e compra um pedaço de fumo;

— Uai, que você vai fazer com fumo?

— É pra fazer um remédio. Pra passar no pé do Jair.

Dona Carmélia fez exatamente como a experiente vizinha receitara. Às dez horas da terça-feira, começa a banhar o pé inchado com a mistura de xixi com fumo. De duas em duas horas, o ato se repete, enquanto dá ao filho mais chá. À tardinha, Sergio aceita umas bolachas com o chá.

Durante a noite, o pai toma conta do filho, revezando com a esposa. Parece-lhe que o pé começa a clarear, perdendo a forte tonalidade púrpura. Vai desinchando.lentamente.

Quarta-feira amanheceu com um foguetório. A mãe dormira com o filho, no pequeno quartinho dos meninos, e Sérgio dormiu com o pai, na cama de casal. Acordaram todos ao mesmo tempo, ainda não era seis da manhã, com a barulheira dos foguetes.

— Que diacho de foguetório é esse? — A mãe pergunta ao marido, quando esse assoma à porta do quarto. Ambos se dirigem para a cama de Jair, onde o garoto, assustado, já se sentara na cama. A mãe passa a mão na testa do filho.

— Graças a Deus, a febre já passou. Olha, Renato, como ele está fresquinho.

O pai passa a mão, ligeiramente, pelo rosto do filho, que quer se levantar.

— Que foi, pai? Aconteceu alguma coisa?

— Num sei. Vou lá fora saber. Mas você fica deitadinho aí, viu?

Renato abre a porta que dá para a rua. Naquele instante, Pedrim Mentira, com sua carrocinha de pães, grita a pleno pulmões:

— Acabou a guerra! Acorda, gente! A guerra acabou! — Sua voz sobrepondo-se ao barulho do foguetório.

Renato corre pra dentro, para dar a notícia a Carmélia. Ela já está na cozinha, acendendo o fogo para fazer o café. Jair vem pulando, no pé sadio, também em direção à cozinha.

— Volta pro quarto, menino! — Renato não sabe se ralha com o garoto ou se fala com a mulher. — A guerra acabou, Carmélia!

Ela se entusiasma com a notícia. Abraça o marido. Jair chega perto dos dois.

— Veja, Renato, o Jair está bem bom. Quase sarado. Graças a Deus!

Sem entender muito bem o foguetório e a boa nova do final da guerra, Jair abraça a mãe e o pai.

— Já tou bom, já sarei! Num tô sentindo nada.

À felicidade de ver o filho curado juntou-se a alegria das notícias. Famoso por suas parlapatices, Pedrim Mentira foi o arauto, juntamente com os foguetes, da notícia alvissareira. Espalhou em primeira mão por toda a cidade, na manhã memorável, o término da Segunda Guerra que já se arrastava por inúmeros anos.

Jair melhorou consideravelmente. A mãe insistiu em banhar-lhe o pé com a mistura de fumo e urina por toda a quarta-feira. Com o pé enfaixado ele andou pela casa, foi até a oficina do pai.

— Só não pode é pôr o pé na terra. Tem de manter a faixa bem limpa. — O pai, entre severo e amigável, já esquecera da zanga com os filhos devido ao malfadado toco de madeira com o prego enferrujado.

A nenhum dos envolvidos no episódio ocorreu perguntar a que creditar a melhora, a recuperação de Jair. O que havia curado o garoto? A cataplasma? A cachaça com cânfora e arnica? Ou a pasta de folhas de sete-nervos maceradas com basilicão? O chá de chapéu-de-couro ou a simpatia de Jerusa Santinha? Ou teria sido o xixi do menino com fumo?

De volta à escola, na segunda-feira seguinte, Jair ainda manca um pouco. Insistiu em calçar o sapato preto, do uniforme, que mantém desamarrado. Quando a professora pergunta por que faltara a semana anterior, ele responde, erguendo o ombro direito, num gesto de inequívoca falta de importância:

— Não foi nada não. Só um furinho de prego no calcanhar. Já passou.

ANTONIO ROQUE GOBBO ==

BELO HORIZONTE / 20 DE JUNHO DE 2002

CONTO 155 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/04/2014
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