Sónia, a solitária

Já antes sobrava espaço mas agora, depois da morte de Serafim, a casa cresceu imenso. Sótão, quatro quartos, salão, cozinha… um quintal com árvores e uma horta. Para a frente o jardim ia do toldo amarelo ao pequeno lago com repuxo. A figueira secular marcava o limite da propriedade à direita e um grande arco de pedra, com portão de ferro, à esquerda. Sónia vivia sozinha mas teve a ajuda solidária dos vizinhos para manter o quintal e o jardim em ordem até as histórias começarem a circular na cidade. Primeiro Sónia deixou de abrir a porta. Bem podiam tocar à campainha que a ninguém atendia. Fazia-se de surda e espreitava pela renda da cortina só para confirmar que não lhe convinha a visita. Saía raras vezes, hesitando a passada como lhe pediam os 83 anos mas sempre exuberante de roupas e pintura como se ainda os trinta a amarrassem ao passado de aventuras. Quando os frutos começaram a apodrecer nas árvores e o mato tomou conta do quintal, Sónia deixou de lá ir. Atravessava o jardim mas ignorava a pequena selva que ladeava o caminho de lajes até ao portão. Quando saía levava o carrinho das compras e voltava, arrastando-se, carregada de coisas de que não precisava e de outras pouco recomendáveis para uma senhora com diabetes. Quando lhe apetecia batia-me à porta, entrava, conversava. Fiquei assim a saber que fora fechando os quartos onde só havia silêncio e vazio. Mantinha a cama articulada em que o marido levou seis longos anos a morrer. Habituou-se a falar com ela como se Serafim ainda lá estivesse deitado, de boca aberta e olhar fixo no teto. Trazem-lhe a comida do Centro de Dia mas deixam-na na mesa sob o toldo. Sem hora certa para vir recolhê-la muitas vezes foi vista de camisa de noite, descabelada e trôpega. Depois, disse-me, enche a mesa do salão de petiscos e fruta, liga a televisão gigante e faz uns dias piquenique e noutros, festa. Nos primeiros limita-se a ver todas as novelas e adormece no sofá sob o barulho do televisor mas nos dias em que lhe apetecem festejos, dança ao ritmo da música muito alta. – Ontem houve festa. Fartei-me de dançar até cair de cansaço. Bebi anis e sumo de maçã. Acredita que adormeci depois das duas e que só agora acordei? Pois é, vizinho. É bom mas está a ser tempo de ajeitar quem limpe os matos e volte a arranjar o jardim. Quero calar as más línguas. Pensam que sou bruxa, calcule! As festas continuarei a fazer. Comprei uns auscultadores para que as danças não incomodem ninguém. Mato a solidão enquanto Deus quiser. Sei que lhe posso contar tudo. Arranja-me um jardineiro?

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 15/04/2014
Reeditado em 15/04/2014
Código do texto: T4770081
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