O INCONFORMADO
O INCONFORMADO
O conheci dentro de um ônibus coletivo, lá se vai mais de um lustro. Como sempre, também pudera; uso ônibus coletivo por trinta e três anos.
Pois bem, o inconformado é um senhor quase chegando aos sessenta anos, inclusive já está com a papelada da aposentadoria xerocada e carimbada. Não diria que ele seja raquítico, mas que é magérrimo lá isto é. Se pesa muito não passa de cinquenta quilos. Branco que chega ser descascado. E como eu, é desarranjado no vestir.
Numa de nossas conversas, que na realidade é um monólogo, pois só ele fala e eu ouço; conversa esta que bem pode ter sido a primeira, não me lembro; ele me contou que é faxineiro numa empresa engarrafadora de GLP (gás liquefeito de petróleo), que de líquido não tem nada, pois é gás.
E que no seu ambiente de trabalho, como ele mesmo está sempre afirmando, detesta o que faz, razões mil, mas a mais premente é o salário irrisório (salário mínimo). Como se os outros trabalhadores assemelhados ficassem satisfeitos com o que recebem.
Voltando alguns anos no nosso convívio de morcegos pendurados nos estribos do ônibus, lembrei-me de algumas reclamações, tirante a do salário. Uma é que seus colegas de empresa estão sempre jogando coisas onde é da sua obrigação higienizar, com o propósito de o sacanear, sujando tudo á sua volta. Tenho cá comigo que é uma inverdade. Outra é que os ônibus da linha que nós dois usamos, estão sempre atrasados, ainda que ele chegue no ponto com antecedência de quase uma hora. Se é verdade, também não posso atestar. Para minha indiferença os referidos ônibus passam sempre no horário, porém lotados até a tampa. Ás vezes tenho que ficar pendurado na porta, braços e pernas dentro e corpo do lado de fora. Mas esta pequena trivialidade não vem ao caso da nossa narrativa aqui. Sigamos em frente.
Tem também aquela reclamação de que o dia que ele quer chuva, faz sol; quando quer sol, chove. Outra peculiar é a de que as meninas, em idade escolar, adolescente, estão sempre provocando sua libido, deixando-o ver as calcinhas delas, quando ele quer é vê-las nuas. Como se elas tivessem a obrigação de tirarem as roupas dentro dos ônibus, só para ele ver. E eu não posso?
Uma boa também a de que tudo que come fermenta, e lá vêm os flatos irrespiráveis. Quando não estes alimentos se deterioram, diluem e vem em forma de diarreia. Inclusive já chegou a sujar a cueca, calça e escorrer até o sapato. Este último ele diz que, por anos a fio, aperta um calo seco no dedo mínimo do pé direito. Sendo que seria até melhor suportável se fosse no pé esquerdo. Só não explicou por que; e nem eu perguntei. Mas vou perguntar.
Recentemente descobri que seu nome é Leocádio Aureliano Silveira. Nome o qual ele detesta, pois Leocádio, na concepção dele, é nome de remédio; Aureliano é nome que se dá a boi de carro, portanto castrado, e não touro; e Silveira é designação de uma família Silva que não tem eira e nem beira.
P. S. Narrativa toda verdadeira. Nomes e situações.