25 de Abril – A noite que não terminou.
Todos sabem que 25 de abril de 1984 foi o dia da votação da Emenda Constitucional Dante de Oliveira, mais conhecida como Diretas-Já. O curioso é que não conheço ninguém que se lembre do imenso apagão que ocorreu naquela noite. Quando falo a respeito todos respondem “sério?, não me lembro”, “houve mesmo”? Tenho certeza!
Fechando os olhos, consigo rever o grupo de amigos reunidos em torno da mesa ensebada de um boteco que não mais existe, sendo iluminados apenas por alguns poucos lampiões. Os botecos não eram lugares charmosos, como tentam parecer atualmente. Era um refugio de bêbados, desempregados e demais esquecidos ou dos angustiados com sua vida.
Carlinhos, Pablo, Andréa, Arnaldo e eu, formávamos um punhado de latino-americanos desencantados com o País e com o mundo. Vou tentar relatar alguma coisa sobre eles, reunidos naquela noite absolutamente escura.
Carlos, Carlinhos, do qual nunca soube o sobrenome era Professor de História “dos bons”, segundo seus alunos. Estava se divorciando, não tinha filhos. Era seguidor de Luiz Carlos Prestes, mesmo depois de sua saída do Partido Comunista Brasileiro. Carlinhos tinha sempre seguido suas orientações, tendo, inclusive participado da colheita de café na Nicarágua. Agora, não tinha tanta convicção assim. Quando aconteceu o apagão tinha certeza que haveria um novo golpe militar. Bebeu muito e adormeceu sobre a mesa.
Andréa era uma típica militante da esquerda chamada de festiva. Sua família era abastada, tinha muito dinheiro e a moça ao se deparar com a miséria das ruas, entrara em crise de consciência. Bebia e fumava muito. Tinha crises de depressão. Usava calmantes, segundo ela era a única forma de conseguir dormir. Seu pai, um empresário muito bem sucedido, que conheci numa festa de aniversário de Andréa, sempre dizia:
- Esse esquerdismo de vocês vai passar. A realidade é bem outra. Minha filha vai herdar meus negócios e deles se encarregará. É questão de tempo. Aguarde.
Foi o que realmente aconteceu, mas naquela noite ela estava muito mal. Também desconfiou do blecaute, achou que era manobra para que a votação da Emenda não acontecesse:
- Se acontecer ganharemos, no voto, na porrada. Vocês verão! Acho que vou vomitar. Foi ao banheiro. Tivemos que retirá-la de lá.
Chamamos o seu pai, que mandou um motorista buscá-la, pois estava muito ocupado, apesar da escuridão. Não tinha tempo para frescuras de esquerdistas bêbados.
Só revi Andréa depois de muitos anos em colunas sociais. O pai acertou o prognóstico. Tinha mais convicção do que ela. Vida que segue...
Arnaldo era o mais reservado do grupo. Provavelmente nem era esse o seu nome. O Carlinhos sempre desconfiou dele, dizia:
- Esse cara, ou fez parte de grupo armado e usa nome falso, ou é milico infiltrado. Talvez bandido comum mesmo.
Diante da escuridão, não manifestou surpresa, dizendo que era coincidência, coisa normal. Segundo ele, grupo é que era paranoico. Era calado. Observava muito, falava pouco. Por vezes, usava uma frase que dava arrepios:
- Nunca dê as costas para o inimigo, dizia quando virávamos o corpo, ficando de costas para ele. Era muito xingado, mas não se importava. Divertia-se muito com a desconfiança de todos nós. Nunca soubemos qual era a dele. Foi encontrado morto, aparentemente vítima de assalto, vai saber...
Por fim Pablo, que se orgulhava de ter o mesmo nome do seu poeta compatriota Neruda. O maior de todos os poetas do mundo, segundo nosso amigo.
Pablo era refugiado do regime de Augusto Pinochet. Estivera na Argentina, Uruguai e entrara clandestino no Brasil, permanecendo assim, durante algum tempo. Recebia uma quantia mensal da Organização para Refugiados da ONU.
- Saí do inferno e caí no caldeirão do diabo, dizia referindo-se a ditadura brasileira. Eu não tenho dúvida, esta votação no Congresso não vai acontecer. É tudo tramado, o regime vai endurecer. Já vi este filme. Bêbado, sóbrio, segundo ele, e declamou Neruda, em português, coisa rara:
A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.
Levantou-se e cantou El Condor Pasa. A música é peruana, mas ele não se importava. Dizia ser Latino-americano. Prestem atenção neste trecho, disse ele:
Detrás de los silencios quedará
jamás, nunca más, volverá.
El inca ya se fué,
a morir rumbo al sol,
y en su alma un condor va
a llorar su dolor volando
Foi embora sem se despedir. Nos encontramos mais algumas vezes. Dizia que voltaria ao seu amado Chile, ainda que clandestino ou morto. Soube que após a queda de Pinochet realmente voltou. Não tive mais notícias.
Quanto a mim, não tenho muito do que falar. Portanto, não falarei. Apenas um observador de pessoas.
Lembro apenas que a votação ocorreu e perdemos por 22 votos. Tivemos de esperar mais algum tempo pela volta da democracia. Ainda assim, inicialmente por via indireta, com direito à morte do Presidente eleito e posse do vice, capacho do antigo regime, numa manobra ilegal.
A manhã trouxe a luz, mas aquela noite não terminou. Recentemente encontrei um velho guardanapo no qual havia um trecho de um poema de Neruda, obviamente escrito por Pablo, que vale a pena transcrever. Tem tudo a ver com aquela noite:
No se perdió la vida, hermanos pastorales.
Pero como una rosa salvaje
cayó una gota roja en la espesura
y se apagó una lámpara de tierra