O MISTÉERIO DO MUDINHO

A venda de Totó Miranda crescera aos poucos. Começou com apenas duas portas que davam acesso a um cômodo de tamanho suficiente para o pequeno balcão de três metros de comprimento, com a balança de um lado e uma vitrine de doces do outro. Prateleiras atrás exibiam garrafas de bebidas, algumas latas de doces, uma seção de ferragens, sabonetes, talcos, alguns vidrinhos de Glostora e material escolar. Numa parede lateral, um armário fechado, com portas envidraçadas, guardava as linhas, armarinhos e algumas peças de tecidos. Encostadas na outra parede estava uma série de caixas apropriadas para os cereais, feijão, milho, café em grão, vendidos a granel e que eram completadas diariamente com os produtos estocados no armazém, um simples telheiro nos fundos da bitácula.

A casa residencial ficava ao lado. Era casado com Dona Dorotéia, mulher alegre e prestimosa, que ajudava o marido nos dias e nas horas de maior movimento. Totó era um tipo magro, alto, os braços longos alcançando as mercadorias das prateleiras mais altas, enquanto a esposa era baixinha. Com o passar do tempo, à medida que a venda foi se expandindo, tanto Totó quanto dona Dorotéia foram encorpando, ela engordando bastante, principalmente depois da gravidez que proporcionara ao casal as gêmeas Marly e Dorly.

— Dorotéia, amanhã o André Vicoto começa a cavar o alicerce para construir o armazém. Cê prepara um café reforçado e também aumenta a água do feijão, pro André e o ajudante. — Com a calma de sempre, Totó ia tomando as primeiras providências para ampliar o negócio. Acabado o armazém, cismou de ampliar, para o outro lado, a área da venda, que agora já era mencionada, pelos fregueses, como “armazém do seu Miranda”.

— Quero abrir mais quatro portas para a freguesia. E quero portas mais largas, e por cima vamos construir uma marquise também larga. — Conforme André ia erigindo as paredes, fazendo o telhado, colocando as portas, as idéias de Totó Miranda iam pipocando, cada dia com uma novidade, um novo tipo de acabamento ou novas grades de metal para reforçar as portas. André Vicoto, que manejava a colher de pedreiro com tanta habilidade quanto o martelo de marceneiro ou a enxó de carpinteiro, sabia a melhor posição para as vigas do engradamento e preparava as tintas nas cores mais extravagantes para as paredes. Ia atendendo às determinações do comerciante.

A última porta era mantida fechada, para aumentar o espaço interno da venda, agora transformada em grande casa comercial. Por estar situada no extremo da construção, ficava cerrada e não prejudicava o acesso dos clientes. Pois foi sob o abrigo dessa porta que, uma tarde, assentou-se um mendigo. Surgindo ninguém sabe de onde, era uma figura estranha: magro, alto, a cabeça raspada, imberbe, os olhos brilhantes no fundo de duas covas negras, o nariz aquilino e, característica mais marcante: sujíssimo. Roupas imundas, mãos, rosto, cabeça, pés, tudo coberto de uma espécie de pátina, coscorão incrustado nas dobras do corpo. Um saco de pano que um dia fora branco, estava preto, de tão sujo. A cor pardacenta-escura do pedinte contrastava com o branco das paredes e da porta, recém-pintados, e despertava a atenção dos fregueses.

— Então, seu Totó, tem freguês novo, hein? Esse aí vai não dar muito lucro! — Os fornecedores faziam brincadeiras com o proprietário, que as aceitava com tranqüilidade.

— O coitado é retardado e mudo. Deixa ficar.

A mulher de Totó Miranda socorreu o pobre com alimento. Mas tinha dificuldade em acercar-se do homem, que exalava um mau cheiro próprio de pessoas que vivem ao relento.

— Ah, Totó, é preciso dar um jeito no mudo.

— Fazer o que, Dorotéia? A Vila Vicentina já tá cheia, não tem lugar nem para os pobres da cidade, que dirá para os que chegam de fora.

— Ele parece que saiu do hospício! — A constatação de dona Dorotéia era feita não só pelo comportamento do mudo, como também pela cabeça raspada. — Vai ver, ele fugiu de algum manicômio. E o que será que ele guarda naquele saco imundo?

Sem saber as respostas às indagações da esposa nem ter como resolver a situação, Totó foi deixando que o mendigo permanecesse ali, na soleira da porta, abrigado pela larga marquise.

O mudo fica ali dia e noite. Ninguém vê quando sai para suas necessidades. O fedor do homem contamina o local e começa a incomodar até o complacente Totó Miranda. As esmolas recebidas e principalmente as refeições dadas por dona Dorotéia são como suaves grilhões que prendem o homem ao local.

Passados mais ou menos dois meses, Totó Miranda se decide.

— Vamos dar um jeito no Mudinho. — O apelido carinhoso já era de uso consagrado. — Pelo menos, um banho, uma limpeza, vamos ter de fazer qualquer coisa.

Decide levar o Mudinho para dar um banho no Tirabufo. Chama dois de seus empregados e o cunhado Zé Teles, que tem um caminhão apropriado para levar o Mudinho até o poço famoso.

— Mas no Tirabufo? Aquele poço é assassino, muita gente já morreu afogada nele. — Zé Teles sabe da fama, ele mesmo já ajudara a trazer o corpo do filho do Jorge Oliva, que fora uma das muitas vítimas do poço fatal.

— A gente vai mais pra cima do poço, naquele areal da beirada do rio. Ali o rio é manso, e a gente pode lavar o Mudinho com sossego.

Procuram explicar o que pretendem fazer. O débil não entende mas concorda, principalmente quando é convidado a subir no caminhão. O sorriso retardado ilumina o semblante do pobre homem. Dona Dorotéia aparece com uma trouxa n qual colocou uma calça, camisa, roupas usadas de Totó, limpas e passadas, e um saco branco, de farinha de trigo.

— Depois que vocês lavarem o Mudinho, coloquem os trastes do saco imundo dentro deste.

Não foi difícil dar o banho. Na manhã de domingo de sol quente, Totó e seus ajudantes entraram no rio, aproveitaram para se refrescarem enquanto esfregavam e limpavam o Mudinho, que se deixou ser lavado, dócil e alegremente. Feita a limpeza, enxugaram-se e enxugaram o Mudinho, vestiram-lhe as roupas limpas e transferiam para o saco limpo as bugigangas do saco sujo: latas enferrujadas, uma frigideira sem cabo, uns badulaques esquisitos.

— Vamos jogar fora essa porcariada. — Sugeriu o cunhado.

— Não, vamos respeitar as posses do Mudinho. — Totó pegou as roupas velhas e o saco velho e os jogou por entre as moitas de capim gordura.

Chegaram em casa por volta do meio-dia.

— Tou rachando de fome. — Totó foi entrando em casa e avisando a patroa. Dona Dorotéia já estava com a macarronada pronta. Pôs a mesa para Totó, seu irmão e os dois ajudantes. Fez um prato cheio, que levou ao Mudinho. Ele esperava sentado, no seu lugar habitual. Parecia um tanto desconfiado. É que, enquanto eles estiveram fora, dona Dorotéia tinha lavado, com água e sabão, o local fedorento em que se transformara a soleira da porta do empório.

— O Mudinho está estranhando o local. Ele já estava acostumado à fedentina. — A mulher comenta com o marido e os convidados à mesa do almoço.

— É, a gente se acostuma com tudo. Ele já estava habituado com a catinga, agora tá estranhando a limpeza.

— Vai ver, ele não gosta do cheiro do desinfetante que usei.

Naquela tarde, o Mudinho sumiu. Ninguém viu a hora em que ele deixou o local. Na tarde mormacenta de domingo, todo mundo recolhido em suas casas, o movimento da cidade era quase nenhum e ninguém deu notícia do desaparecimento do pobre homem. Mesmo porque o estabelecimento de Totó Miranda ficava no final da rua, era sair dali para a estrada, por onde, certamente, o Mudinho pusera-se a caminho.

Uma semana depois, no sábado, chegam as primeiras notícias do Mudinho.

— Engraçado, seu Totó, agora que soube do desaparecimento do Mudinho, tou me lembrando de umas roupas esparramadas no areal perto do Tirabufo. — Manoel Savinho passara pelo local, na sua ida para a cidade.

— Talvez o Mudinho estivesse tomando banho de novo. — Totó ouve a notícia com naturalidade. — Com certeza, gostou do banho de domingo passado.

— Mas num vi ninguém tomando banho, não, seu Totó.

Totó se alarma. No dia seguinte, oito dias após o banho, ele e o cunhado voltam ao areal do Tirabufo. De longe, escutam o escachoar das águas e ao se aproximarem, percebem, mesmo antes de descer do caminhão, as roupas que eles vestiram no Mudinho no domingo passado.

— Que coisa estranha! Essas roupas são as que nós trocamos no Mudinho. — O cunhado também está preocupado. —Veja, Totó, até o saco limpo está aqui.

— Será que ele voltou pra tomar banho e foi levado pelo rio?

Zé Teles acerca-se da moita de capim, onde Totó havia jogado a roupa suja.

— Olha, Totó. A roupa velha num tá aqui não, onde ocê jogou.

Vasculharam as margens do rio, de um lado e de outro, para baixo e para cima, sem encontrar nada. Nem Mudinho, nem a roupa velha, nada. Sem encontrar explicação para o mistério, os dois deixaram o local e voltaram para a cidade sem explicação para o sumiço do mendigo.

Do Mudinho nunca mais tiveram notícias.

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ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 3 de março de 2002

Conto # 147 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 13/04/2014
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