Querida Mãezinha
Sempre achei que ocupava o lugar o errado.
Eu tinha seis anos quando, um dia minha mãe arrumou um namorado.
- Ele vai ser seu pai agora, minha filha.
Eu não tinha tido um pai antes, não sabia o que era isso. Mas logo de cara não gostei. Cissa, minha irmã mais velha, também não. E por isso ela passava mais tempo na rua do que em casa. Eu acabava ficando sozinha, mas não me importava. Porque à noite, estava todo mundo junto de novo, mesmo que separados.
Quando minha mãe engravidou, achei que as coisas melhorariam para mim. Agora eu ia ter alguém com quem brincar.
Mas quando a neném nasceu, acabei ficando mais sozinha. Meu pai não me deixava brincar com a minha irmãzinha. Ele não gostava de mim, agora que tinha a própria filha.
Eu passei a dormir na sala e meu quarto passou a ser dela. Tive que abrir mão de outras coisas também, brinquedos e até comida. Tudo para minha irmãzinha.
Meu pai me olhava com indiferença (engraçado, ele olhava assim para todos nós). Cissa sentia raiva, ela saia e demorava a voltar, às vezes mais de um dia. Os meus dias eram tristes e solitários, a hora de dormir demorava a chegar.
Um dia mamãe disse que eu ia ter que me mudar. Confesso que no começo achei que ela fosse junto, mas eu estava errada. No dia da mudança, só eu e a Cissa tínhamos feito as malas. Ela disse que estávamos indo morar na casa da titia . Ela não era minha tia de verdade, mas minha mãe pediu para chamar assim.
- Por que mamãe? – Ela não respondeu.
- Você vem me visitar?
- Claro que sim filha.
- Promete mamãe?
- Prometo.
E visitou. Umas duas vezes. Mas depois parou. O neném deixava-a muito ocupada.
A casa era grande, fria e barulhenta. Minha tia morava com os dois filhos e o marido, o senhor Otavio. Ele tinha um bigode engraçado e era legal comigo, me deixava ajuda-lo a limpar os carros. Já a titia vivia nervosa e gritando com todos, principalmente com a Cissa. Chamava ela de tudo quanto era nome.
Eu e minha irmã dormíamos juntas no quarto dos fundos. Era legal porque assim a gente ficava mais perto. Embora ela estivesse sempre na rua.
Um dia minha tia saiu pra trabalhar, a Cissa e o senhor Otavio saíram juntos. Ela me pediu pra ficar quietinha e não contar a ninguém. Eu não entendi porque tinha que guardar segredo.
A solidão me incomodava. Aquela casa era escura e todos brigavam uns com os outros. Não havia espaço para mim.
Eu tinha seis anos e um coração dolorido. Com medo, agarrada em minhas pernas. Estou assustada e quero a minha mãe, o que será que ela está fazendo?
Passaram-se muitos dias e já estava perto do Natal. Eu sabia pelos anúncios da tevê, todos falavam sobre isso. Será que minha mãe vai me dar um presente?
Todas as casas estavam arrumadas para o Natal, menos a nossa. Minha tia falava que Jesus não valia a pena. Mas eu não sei não, ele deve ter sido um homem muito bom, já que todo mundo gosta dele.
Eu estava escondida em baixo da pia quando ouvi uma discussão na cozinha. Era minha tia gritando com a Cissa. Fiquei ali encolhida respirando devagar para não fazer barulho. Demorou algum tempo até eu entender que minha irmã estava grávida do senhor Otávio. Furiosa, a mulher nos colocou para fora de casa. Eu, Cissa e o senhor Otávio.
Eu estava assustada, não deu tempo de pegar minhas roupas. Mas ele nos disse que ia ficar tudo bem, que levaria minha irmã para morar com ele. Na hora, achei que eu fosse junto, mas eu estava errada.
- Nós não vamos ter dinheiro pra cuidar de duas crianças, querida.
- Agora a gente tem que pensar no bem do bebê, você não é mais bebê. – Disse o senhor Otávio.
Cissa agachou até ficar do meu tamanho, segurou na minha mão e disse: - Eu tenho certeza que a mamãe vai te receber.
Ela disse com o tom de voz de quem não tinha certeza alguma.
Eles foram embora. Cissa e o senhor Otavio. Sem olhar para trás em nenhum momento. Eu comecei a achar que meu coração estava pesado demais para o meu peito. E eu estava sozinha.
Já estava escuro e eu sentia frio, caminhei até a casa da mamãe, mas ela não estava lá.
- Mamãe, mamãe! Sou eu mamãe, abra a porta! Você está aí mamãe? Abra a porta, eu voltei!
Gritei, bati na porta, gritei mais ainda, e nada. Até que uma senhora que morava ao lado apareceu. Ela me disse que mamãe não morava mais ali. Ela se mudou com meu pai e a minha irmãzinha, mas não disse pra onde.
Começou a chover.
Eu caminhei um pouco mais, até cansar. Sentei em uma calçada qualquer e abracei minhas pernas. Eu to com medo mãe. Cadê você? As lagrimas se misturavam com a chuva.
Fiquei algumas horas ali sentada, até que passando pela calçada eu vi o Edu. Um menino magricelo, bem menor do que eu, sua aparência era de um homem cansado, seus olhos pesavam, mas o sorriso era audacioso.
- Ei menina! O que você está fazendo aí?
- Eu não sei. – Respondi. Vi no Edu, um menino tão perdido quanto eu. A gente devia ter mais ou menos a mesma idade.
- Então levanta daí! Sai dessa chuva! – Ele me deu a mão e me ajudou a levantar.
- Onde você mora? – Eu não respondi.
- O gato comeu sua língua? Responde, onde você mora? – Ele falava como se estivesse preocupado. Usava um boné sujo e roupas amarrotadas. Tadinho. Será que a mãe dele não lava suas roupas?
- Já que você não responde, não deve morar em lugar nenhum né?
- Claro que não. – Eu disse tentando parecer confiante. – Eu tenho casa sim! Só que eu tenho que primeiro achar minha mãezinha.
Ele me olhou como se já conhecesse minha história. Inclinou a cabeça e ficou me encarando.
- Bom, eu estou procurando minha mãe também. – Ele disse com tom de voz animado. – Que tal procurarmos juntos?
- Hm... pode ser. - Mesmo que por um único segundo, eu senti uma pontada de esperança.
- Vem, vamos para minha casa! – Ele me puxou pelos braços e começou a caminhar.
- Onde você mora? – Perguntei.
Ele parou de andar no mesmo instante, pensou um pouco, e depois respondeu:
- Eu moro em qualquer lugar.
Ele sorriu enquanto partimos em direção qualquer.
Minha querida mãezinha, já faz tempo. Eu sinto tanto a sua falta. Agora eu tenho um amigo pra brincar. Mas eu ainda tenho medo. À noite, é difícil arrumar um lugar pra dormir. Eles empurram a gente, eu e o Edu, meu amigo. Quando chove é bem complicado, arrumar um lugar para se proteger. Mas eu me viro mãezinha. Cadê você mãezinha. Tenho seis anos e o mundo é grande demais para mim.
Eu acho que achei o meu lugar.