O ELEFANTE BRANCO
— Combinado! Espero a senhora na segunda-feira.
Pelo telefone, Antonio marcou a visita de dona Antonieta à sua biblioteca de gibis. O que parecia ser uma simples visita, seria na verdade seu presente de Papai Noel no Natal de ’91.
— Nunca pensei que ajuntar gibis fosse resultar nisso que a senhora está vendo. — Ele explica à gentil visitante.
— Mas esta não é apenas um amontoado de gibis. É uma grande gibiteca, um verdadeiro tesouro que o senhor ajuntou. Deve valorizar sua persistência e organização.
Antonio, o dono das revistas expostas em estantes de metal, é um homem simples, chega a ser ingênuo de vez em quando e não sabe o valor do que tem em sua coleção de gibis.
— Sabe, dona Antonieta, só fui ajuntando as revistas. Desde criança, gostei de ler gibis, que fui guardando, guardando e hoje tem aí essa quantidade que a senhora está vendo.
Ele se lembra com ternura dos primeiros exemplares do Tico-Tico que obtivera, pelos idos de 1942. A prima Beatriz trabalhava em S. Paulo, o que, na ocasião, era um sucesso na família. Quando chegava em férias, trazia presentes para todos os parentes.
— Pra você, Tuniquinho, trouxe essa pequena surpresa.
Eram duas revistas em formato grande, com capas coloridas, histórias em quadrinhos e muita coisa para ler. O nome TICO-TICO sobressaía na capa de cores brilhantes, encimava ilustrações grandes, reproduzindo personagens das aventuras das páginas internas. Foi maravilhoso folhear as revistas que exalavam um cheiro forte (mais tarde identificaria como cheiro de tinta de impressão em papel-jornal). Leu primeiro as páginas em quadrinhos, com a rapidez possível a um garoto recém-alfabetizado.
— Puxa! Além das histórias em quadrinhos, a revista tem muitas páginas de contos, história do Brasil e muita coisa mais.
Tentava despertar no irmão mais novo o mesmo entusiasmo que sentia pela leitura das revistas. Inutilmente. Recordava-se bem: Reco-Reco, Bolão e Azeitona, Chiquinho, Faustina... histórias cômicas, de um humor bem ao sabor das crianças daqueles tempos.
Em seguida, descobriu O Globo Juvenil. Revista de aventuras de heróis e super-heróis, mocinhos e bandidos, como se falava na época. Era maior do que o Tico-Tico, chegava na banca de jornal três vezes por semana e trazia histórias seriadas do Super-homem, Homem Morcego (como então era o conhecido o Batman) Flash Gordon, Mandrake, Tarzan, Jim das Selvas... Ai, que histórias maravilhosas !
Seu pai policiou as leituras.
— Tico-Tico pode. Essas porcarias de histórias de mocinhos e bandidos não pode.
— Mas, papai, o que é que tem? — Tuniquinho não entendia bem porque podia uma e outra não.
— Tem muita violência nessas histórias dos gibis.
A coisa proibida ficava melhor. Gibi lido escondido era mais saboroso. Ele continuou lendo os gibis com seus heróis prediletos. A coleção – mais de cinqüenta exemplares — pertencia ao Benito, vizinho em cuja casa passou umas tardes “estudando” ou “fazendo os deveres de casa”.
— Pai, me dá dinheiro pra ir à matinê. — Em vez de ir à sessão de cinema nas tardes de domingo,Toninho usava os dois cruzeiros (ou dois mil-réis, ainda havia certa confusão no nome da nova moeda) para comprar gibis mensais. Esses eram ainda mais maravilhosos. As capas coloridas, em papel brilhante, as histórias completas e concurso de desenho, “para revelar novos artistas”. A proibição da leitura tornava-a ainda mais prazerosa. Escondia os gibis no meio dos livros e cadernos escolares.
Numa ocasião — que horror! — o pai flagrou Toninho lendo na hora de estudar.
— Ah! Lendo escondido, hein? — Arrancando os gibis de suas mãos, rasgou-o em mil pedaços e jogou-o no fogão. As labaredas queimando os quadrinhos ardiam nos olhos e no próprio coração. Lágrimas desceram pelo rosto afogueado do garoto.
— E tem mais! Vai ficar um mês sem ir à matinê.
O pai o impedia, desta forma, de adquirir novos gibis. Seguiu-se uma luta surda entre o filho e o pai, no que dizia respeito aos quadrinhos. Mas a resistência paterna foi se afrouxando pouco a pouco. Nos anos do curso ginasial, a proibição cedeu lugar a simples ameaças:
— Se ficar lendo gibis em vez de estudar, vai tomar bomba! E se tomar bomba, te tiro do ginásio, vai trabalhar!
Ler gibis nunca prejudicou os estudos de Toninho. Durante as férias, trabalhava no empório do seu Júlio e tinha um dinheiro extra para gastar no que quisesse. E só pensava em comprar gibis. Naqueles anos, ajuntou para mais de cinqüenta revistas de quadrinhos, em diversos títulos: “Gibi Mensal”, “O Guri”, “Lobinho”, “Globo Juvenil Mensal” eram as mais comuns na sua coleção.
Seu primeiro emprego em tempo integral, aos quinze anos, recém-formado no ginásio, deu-lhe poder de manipular o ordenado, do qual parcela importante era aplicada em revistas. Já era a década de ’50, quando apareceram muitas revistas novas: “Edição Maravilhosa”, “Epopéia”, “Ciência em Quadrinhos”, “Filmes em Quadrinhos”, as revistas de caubóis.A fome do garoto pelos quadrinhos era insaciável. Comprava tudo o que podia. Muitas delas eram adquiridas pelo correio, pedidas diretamente às editoras. Principalmente à Editora Brasil América. Assinou “Super-Homem” e “O Herói”. Ao receber os pacotes no correio, corria para casa,e no seu quarto, chegava a se emocionar. Abrir uma revista nova, um livro, um álbum ou um almanaque em quadrinhos era o máximo. Sentia um prazer tátil, um cheiro sutil e maravilhava-se com os desenhos. Apareceram nessa ocasião os primeiros gibis inteiramente coloridos. E a Editora Abril entrou na publicação das revistas em quadrinhos com “O Pato Donald”, em julho de 1950, inaugurando uma nova era de publicações principalmente dos quadrinhos de Disney. Quantos momentos maravilhosos, pensa.
— Pois é, seu Antonio, temos sim, um espaço para seus gibis na Biblioteca Municipal. — Despertado de seu devaneio, não sabe o que dizer.
— O senhor não conhece a nossa Biblioteca? Ah, tem razão, ela está funcionando há apenas um ano. Então, quer nos visitar?
Ele visitou. Achou a Biblioteca Publica Infantil e Juvenil de Belo Horizonte muito bem instalada num edifício de quatro andares. Impressionante. À entrada, após o saguão, uma enorme sala de exposição cativou seu interesse. A seguir, a grande sala de leitura, sala para TV e multimídia, a brinquedoteca, salas para cursos, trabalhos, oficinas. No fundo da ala principal, o teatro, pequeno e funcional. Além de duas salas completamente vazias.
— Aqui poderemos colocar os “seus” gibis. — Ofereceu a diretora.
— Sim, estas salas são suficientes para abrigar a coleção de revistas. — Ele concordou.
Foi o encontro de duas vontades. De um lado, a diretora, dinâmica, no afã de tornar a biblioteca cada vez mais interessante ao público. De outro, a disposição do proprietário em doar as suas revistas em quadrinhos. Seria a continuação de seu trabalho, a aplicabilidade máxima daquilo que ele sempre pretendera: uma biblioteca de gibis à disposição dos leitores e aficionados.
Nem sempre pensara dessa forma. Durante toda sua vida — e agora já estava com mais de 50 anos, vinha agregando mais e mais gibis e livros em quadrinhos às suas coleções. Entretanto, não se tinha na conta de colecionador. Do que gostava mesmo era de ler os gibis — e guardá-los com cuidado.
— Que você vai fazer com tanto gibi? Seria melhor vendê-los, pelo menos os de maior valor. — A esposa, de espírito prático, perguntava e respondia ao mesmo tempo.
Esta sugestão ocorrera por diversas vezes, quando mudaram de domicílio. Era bancário por profissão, e como tal, sujeito a periódicas transferências. Os livros e os gibis eram os primeiros objetos do expurgo, para aliviar a mudança. Quanto aos livros, não foi difícil: doara e vendera, acabara, enfim, com três bibliotecas que formara ao longo da vida. Mas quanto aos gibis, NÃO! Estes o acompanhariam por onde fosse. Até que chegou em Belo Horizonte. Tinha, então, mais de três mil revistas e livros em quadrinhos. Então, prazer e mania transformaram-se em trabalho e despesa.
— Tá bom, reconheço que não faz sentido ficar com esses gibis só pra mim. — Confessou à esposa. — Vou dar um jeito.
A solução encontrada foi a organização de uma gibiteca à disposição de leitores. Para tanto, adquiriu uma sala em edifício comercial, para colocar as revistas. Deu feição legal, criando e registrando a “Biblioteca Nacional de Histórias em Quadrinhos”. Na ocasião — final de 1987 — foi a quinta gibiteca em funcionamento em todo o Brasil.
— Quem vai tomar conta da biblioteca? — a mulher, com muito bom senso, tentava trazer o marido para a realidade.
— Eu mesmo.
E assim foi nos primeiros meses. Logo, a demanda dos leitores e a manutenção dos exemplares forçaram o idealista à contratação de uma secretária. O esforço era grande: Antonio dedicava à sua gibiteca todo seu dia e algumas noites, em casa. As despesas aumentavam dia a dia. A criatura — como sói acontecer — superou o criador. Após quatro anos de intensa atividade, e egresso de uma cirurgia, Antonio tomou uma decisão drástica:
— Vou fechar a gibiteca.
— O quê? Depois de tanto trabalho, vai acabar com tudo? — A fiel esposa tentava compreender o marido, inutilmente.
Em janeiro de ’92, a gibiteca não foi aberta mais.
— E agora, Tony? Vai deixar as revistas empoeirando-se e estragando-se? Essa sua mania virou um verdadeiro elefante branco. — Já não sabia se era a voz da consciência ou de sua mulher.
— Não sei o que fazer. Penso em doar a qualquer biblioteca pública.
Ofereceu o acervo à Biblioteca Pública Estadual. Duas administradoras visitaram a BNHQ, desalentadas.
— Não temos local apropriado. Estamos abarrotados de livros e a gibiteca demanda salas especiais, tratamento diferente, público selecionado. Infelizmente, não podemos receber sua gibiteca.
Um freqüentador assíduo da gibiteca levou a notícia do seu fechamento até a diretora da Biblioteca Pública Infantil e Juvenil. E, como resultado, a doação foi feita e os detalhes da transferência foram acertados.
A mudança foi em tempo recorde. Assim, no final de janeiro de 1992, o acervo de 4.800 gibis, aproximadamente, foi levado à Biblioteca Infantil e Juvenil e passou a ser o núcleo da gibiteca pública de Belo Horizonte, continuação do sonho de um ávido leitor e organizado ajuntador de gibis e livros de histórias em quadrinhos, que durara mais de meio século.
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ANTONIO ROQUE GOBBO –
BELO HORIZONTE, 16 DE FEVEREIRO DE 2002.
CONTO # 144 DA SÉRIE MILISTÓRIAS