BRIGA DE BANDAS -

A pequena cidade serrana se orgulhava duplamente por ser uma das poucas do interior a ter duas estações de estrada-de-ferro e duas bandas de música. Quanto às gares ferroviárias, nada havia que a comunidade pudesse fazer. Foram construídas por empresas “de fora”, sem qualquer interveniência dos habitantes ou das autoridades. Com relação às bandas, sim, eram motivo de muita conversa, de paixão, de polarização das opiniões. Todo mundo se empolgava e havia até torcida organizada. A musicalidade das bandas, em vez de unir a cidade pelo gosto em apreciar as apresentações das pequenas orquestras de trompetes, trombones, clarinetas, pratos e bombos, dividia o povo.

Pela própria situação das sedes já começava a bi-polarização urbana: a Banda 157 tinha sua sede na casa do próprio maestro Jerônimo Santinho, sendo ele, além de exímio trompetista, autêntico band leader. A ampla sala de visitas, com janelas abertas diretamente para rua, era o local dos ensaios, assistidos por grande audiência, que se dependurava nas próprias janelas ou permanecia esparramada pelo passeio e pela rua. Todas as quartas-feiras, depois das oito da noite, até pelas onze horas, meia-noite, conforme a disposição dos músicos e o tempo ajudando. A casa de Jerônimo Santinho lá estava postada no alto da Rua Major Teotônio de Oliveira Gonçalves, que todos conheciam por Rua das Goiabeiras, no bairro de Santa Terezinha.

A Banda Carlos Gomes, por sua vez, tinha uma sede-própria: um barracão construído a propósito, com ajuda da Prefeitura. Por ser maior, com 23 músicos, parecia se impor, pois era convidada para abrilhantar todas as cerimônias oficiais, enquanto que a “157” era a que vibrava seus acordes nas procissões da Semana Santa, do dia de Corpus Christi, nas missas solenes de Natal, Ano-Bom, e dias dos santos mais importantes. Seria por esse motivo que o maestro da “157” teria o nome de Jerônimo Santinho? Ou a recíproca seria verdadeira?

Ambas se alternavam nas apresentações, nas noites de domingo, no coreto da praça central, oficialmente nominada Praça Doutor Epaminondas Rosen de Miranda, mas que todo mundo chamava de Praça da Matriz. Os músicos trajavam suas melhores roupas, os maestros caprichavam no aspecto pessoal. O maestro Leôncio Maragato usava um vistoso lenço vermelho sobre os ombros, homenagem e lembrança ao seu rincão de origem, a bela cidade gaúcha de Pelotas. A platéia também se revezava: quando tocava a 157, os assistentes eram na totalidade moradores do bairro de Santa Terezinha. Nos domingos em que a Carlos Gomes fazia ressoar seus metais e tambores, a população do bairro da Mogiana (onde ficava a estação da Estrada de Ferro Mogiana) aparecia em peso.

— Vamos à praça da matriz hoje à noite? — Adelina falava com o marido. — As crianças tão doidas pra tomar sorvete e comer pipoca.

— Deixa de vontades, mulher.— O professor Aldroado recusa-se a atender ao pedido. — Não sabe que hoje é dia da 157 no coreto? O pessoal de Santa Terezinha não deixa nem a gente passar. — Vamos ficar em casa. “Boa romaria faz quem em casa fica em paz”.

Embora os fanáticos apreciadores das duas bandas, as “torcidas”, por assim dizer, jamais entrassem em confronto direto, havia entre os músicos e os maestros uma acirrada e nem sempre velada disputa para saber qual das bandas apresentava melhor performance. As apresentações das bandas se limitavam ao âmbito da cidade, não participavam de concursos nem se apresentavam em outras cidades. O que importava para músicos (e maestros) era a opinião popular.

A situação era consolidada após muitos anos de existência das bandas. Foi quando se instalou na cidade o Doutor Delfino Borborema: advogado recém-formado, um tipo gozador, sarcástico, que não respeitava idéias nem opiniões. Revelou-se logo um chicanista: pra ele, todos os meios justificavam os fins, isto é, a causa que ele defendia no momento. Tradição, para ele, era atraso de vida.

— Doutor, queremos convidá-lo para a participar da diretoria da nossa Banda Carlos Gomes. — O convite, feito pelo maestro Maragato, encheu de vaidade o Doutor Borborema.

Não só aceitou o convite para ser diretor, como logo tratou de se fazer o próprio Presidente Honorário da Carlos Gomes. E, ou porque nada entendesse de música ou por simples questão de querer impulsionar a banda, começou a trabalhar nos bastidores.

— A Banda precisa de mais instrumentos, de mais músicos. — Em cada reunião-ensaio, aparecia com uma novidade.

— Um uniforme para todos os músicos, um terno de brim cáqui. — Foi outra idealização.

— Mas doutor, não temos dinheiro. — O Maestro Maragato não cogitara de tantos avanços, tamanho progresso.

— Ora, Maestro, deixa comigo, Vou falar com o prefeito.

Por intervenção do doutor Delfino , a rivalidade entre as duas bandas acirrou. A 157 também se movimentou para receber benesses do poder público. O que era simples opção popular transformou-se em divisão, motivo de política, envolvendo vereadores, prefeito, vice-prefeito, o pároco, o delegado de polícia. Até o vetusto Juiz de Direito, Doutor Marcionílio Góes, foi submetido a ver qual das bandas era a melhor.

Padre Sêneca fez inflamados sermões, favorecendo a 157 e passou a lhe destinar pequena parcela das espórtulas. E criou uma celeuma no próprio rebanho de almas, quando permitiu que a 157 tocasse todos os domingos, durante a missa das dez horas, a mais freqüentada, a missa social.

— Não vou mais à missa das dez. Não agüento aquela banda tocando música sacra. — O prefeito passou a freqüentar a missa das dezoito horas. E, com ele, os paroquianos que não torciam pela 157.

— Deixei de dar esmola nas missas. É revoltante pensar que, em vez de cuidar dos pobres, o Padre Sêneca está dando dinheiro para a 157. — A opinião da diretora do grupo escolar também teve muito peso.

Mas a reação mais interessante foi a de Tomé Fiado. Beberrão inveterado, trôpego e sujo, vivia de boteco em boteco, bebendo dezenas de martelinhos de cachaça todos os dias. Quando ainda tinha algum dinheiro, pagava. Quando não tinha, bebia “fiado”, sob promessa jamais cumprida:

— Amanhã eu pago.

Pois não é que no domingo de Carnaval, na missa das dez, a banda tocando os hinos sagrados, o Tomé Fiado manifestou, de público e bom som, sua preferência musical? A 157 acabara de tocar a música do Intróito, o padre Sêneca preparava-se para as orações iniciais, quando o bêbado levantou-se e falou bem alto, a voz reverberando por toda a nave da igreja:

— Muito bem... !

Impávido, continuou de pé. Tornou-se alvo de todas as atenções. O padre interrompe por um momento sua caminhada de um lado para o outro, no altar, e fica sem saber o que fazer. Tomé Fiado termina sua apreciação:

— Pra quem gosta de merda, até que essa banda toca bem...

Naquele domingo e em todos os dias que se seguiram, naquela semana, Tomé Fiado bebeu a não mais poder, pagando todas as biritas com dinheiro vivo. Ninguém soube explicar a origem de tanto dinheiro.Dizem que veio das mãos do Doutor Delfino.

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Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 10 de novembro de 2001.

CONTO # 126 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/04/2014
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