O DÉCIMO-TERCEIRO 1NIVERSÁRIO
— Vovô, conta uma história pra gente!
— Ah! Hoje não, queridinhos. Tem muita visita, ninguém vai querer escutar histórias.
— Conta, sim! A gente quer ouvir.
Os netinhos são insistentes. Vovô Tonico está completando sessenta e seis anos, a casa está cheia de amigos, a conversa animada. Não é hora de contar histórias, o ambiente está mais para piadas, pensa o aniversariante. As crianças insistem. Principalmente Luísa, que adora histórias: já leu os quatro romances de Harry Porter, o best seller do momento, e sempre está folheando livros. Quando acompanha a mãe ao shopping, fica feliz em permanecer nas livrarias, examinando, manuseando e, eventualmente, escolhendo um livro novo.
— Só uma, pequeninha. Umazinha só! — Tomás insiste.
— Aí, pai! Agora está no mato sem cachorro! Conta uma história pros netos. — Denise entra na conversa para dar uma força às crianças.
— Tá bom, tá bom. Mas, o que vai ser?
A cena é clássica, já foi narrada em livros e vista em filmes: o velho de cabelos brancos, rodeado por crianças sentadas no chão, a atenção focada na face plena de vincos talhados pela idade.
Lívia, a mais intelectual, sugere:
— Conta pra nós como foi o seu melhor dia de aniversário.
— Hummm. Deixa ver. Não me lembro, assim de chofre, qual foi o melhor. “São tantas emoções”, como diz Roberto Carlos! Mas há um aniversário que trago na memória. Não foi o mais feliz, mas é dele que me recordo melhor.
— Então, conta esse.
Ajeitando-se em sua poltrona, passa a mão esquerda pelos cabelos, num gesto ritual com o qual inicia a contação de causos, histórias, memórias ou piadas.
— Foi no meu décimo terceiro aniversário. Lembro-me como se fosse hoje.
— Xííííí... Treze é número de azar. — Laís antecipa o suspense.
— Pois é. Naquela época, a gente morava numa casa grande, muito antiga; mamãe, papai, eu e meu irmão menor, Artur. No fundo do terreno estava localizada a oficina de marceneiro de meu pai, bisavô de vocês. Ele morreu já faz anos, vocês não o conheceram. A família, apesar de pequena, vivia com dificuldades. O que papai ganhava, fazendo e reformando móveis, só dava para o estritamente necessário, comida e roupas modestas. Os sapatos tinham de ser usados até gastar a segunda meia-sola.
— Meia-sola? — Laís é curiosa, não deixa passar palavra desconhecida sem uma explicação.
— Sim, naqueles tempos, os sapatos eram fortes, a gente usava até gastar toda a sola. Então, era hora de levar pro sapateiro (profissão que hoje nem existe mais) substituir a parte furada. Reformados, os sapatos ainda eram usados por mais alguns meses, até anos. As roupas também, quando acontecia algum rasgão ou desgaste, eram consertadas, colocando-se remendos.
— Já sei, seu pai era muito pobre ! — Luísa tenta abreviar a explicação do avô.
— Bem, pobre a gente não era. Mas tinha de economizar em tudo. Bem, voltando à vaca-morta...
— Vaca morta? Que vaca? — Laís, de novo, requer explicação.
— Voltando à história, é o que eu quis dizer. Naquele tempo não tinha festa de aniversário, como vocês têm hoje. Nada de bolos, balas, assoprar velinhas, nada disso! Nem mesmo presentes. O máximo que se conseguia era uma roupa nova. Já que tinha de fazer calças ou camisas novas, mamãe aproveitava e costurava uma roupa para ser usada no dia do aniversário. Nesse dia ganhei uma camisa estampada de xadrez, um tecido forte, que era para durar muito tempo.
Já freqüentava o ginásio, estava na segunda série e gostava de estudar. Naquela tarde, tio Armando, muito gentil, passou por casa, a caminho de seu trabalho e me deu um presente. Um livro maravilhoso (para mim, todos livros são e sempre foram maravilhosos): Dom Quixote Para Crianças, de Monteiro Lobato. Como era um sábado, sem aulas e sem para-casa a fazer, passei o dia todo manuseando o livro, e li até algumas páginas. Com muito vagar, parava nas gravuras impressionantes de Gustavo Doré...
— Quem foi esse Gustavo Doré? — Lívia quer saber.
— Foi um grande artista, ilustrador de obras muito importantes. Suas gravuras e desenhos são completas, cheias de detalhes, muito reais. As editoras caprichavam nas edições de livros, mesmo sendo literatura para criança. E, vocês sabem, uma gravura vale por mais de mil palavras, como diziam os chineses. Bem, voltando ao dia do aniversário: passei o dia enfurnado em casa, com o livro de Monteiro Lobato. Mamãe se desdobrava para limpar a casa, varrendo, arrumando as camas, lustrando os móveis com Óleo de Peroba. Fez o almoço simples.
“Hoje vamos comemorar o aniversário do Tonico”. — Anunciou na hora do almoço.
“Oba! Que vai ser?” — Eu e meu irmão perguntamos, em uníssono.
— Uníssono? Ai, vovô, que palavra difícil! — Um dos netos reclamou.
— Quer dizer, ao mesmo tempo, juntos. Desculpem, não vou falar mais palavras difíceis.
E o avô continua, na sua conversa pacata, de quem tem muito tempo pra frente. Os netinhos ali, firmes, atentos.
— Aí, mamãe revelou a “ surpresa”:
“Vou fazer uma bela macarronada com molho de sardinha.”
Papai entrou na conversa:
“Então vou comprar umas garrafas de guaraná!”
“Puxa vida, mãe, vai ser bom demais!” — Falei entusiasmado, pois macarronada com sardinha era do que eu mais gostava.
Papai, tão logo terminou de almoçar, foi à venda do seu Júlio, comprou quatro garrafinhas de Guaraná Antártica¸ que colocou num balde d’água, na sombra, para ficarem bem fresquinhas, porque nem geladeira a gente tinha em casa.
Pelas quatro horas da tarde, mamãe me deu dinheiro, com a recomendação:
“Vai ao Empório do Neleco e compra um pacote de macarrão e uma lata de sardinhas”.
Fui num pé e voltei no outro. O empório ficava longe, no centro da cidade. Voltei correndo, porque o tempo estava escurecendo, mudando pra chuva.
“Parece que vem um toró daqueles. “
Trovões ribombavam perto e longe. Raios e relâmpagos clareavam por momentos a casa toda. O vento uivava nos fios de eletricidade e nas frestas das janelas. A tarde virou noite de repente e mamãe acendeu a luz da cozinha. Ela tinha muito medo de temporais e já estava preparando uma palma benta para queimar.
— Palma benta? — um dos netos interrompe a narrativa.
— É, palma benta. Toda casa tinha um ramo de palma benta no Domingo de Ramos. Depois de algum tempo, a palma secava e toda vez em que ameaçava um temporal, queimavam-se algumas folhas da palma benta.
— Pra quê?
— Pra espantar o temporal. Pra tormenta ir embora bem depressa.
Enquanto o macarrão cozinhava, mamãe mandou meu irmão chamar papai
“Corre na oficina e chama seu pai pra tomar banho. Antes de cair o temporal”.
A chuva desabou num átimo. São Pedro escancarou as comportas do céu e a água desceu numa tromba d’água.
“Papai já está vindo!” — Artur chegou correndo do quintal, com notícias dos estragos causados pelo temporal. — “Quebrou um galho da laranjeira e o vento arrancou o varal de estender roupa”.
Artur, mamãe e eu estávamos transidos de medo do vento ululante e do barulho da chuva. Quando um clarão de raio alumiava a cozinha, ela orava em voz alta: “Santa Bárbara, São Jerônimo!”. Mamãe já tinha a mesa arranjada, com os pratos e talheres colocados ao redor da grande travessa de macarronada, que parecia apetitosa e cheirava bom.
Papai não teve tempo de acabar a limpeza da marcenaria. Correu quando a chuva começou. Num dos degraus da escada que ia do quintal até a casa, escorregou e caiu. No cair, bateu violentamente com o braço esquerdo, justamente aquele defeituoso, que já tinha sofrido um acidente e não movimentava completamente. Demorou algum tempo para se arrastar e esmurrar a porta da cozinha, fechada para evitar a entrada da chuva.
Ouvindo as pancadas, mamãe abriu e vimos papai tombado, todo molhado, não conseguindo se levantar.
“Ai!, Maria, ai! Ai! Ai! Me ajuda! “
“Que foi, Pedro?” — Esforçando-se para ajudar o marido, pega justamente no braço machucado. — “Que aconteceu, homem de Deus? “
“Caí, machuquei o braço. Ai! Ai! Não puxa não!”
“Tunico, ajuda aqui.” — Sozinha, ela agüenta levantar papai e pede ajuda.
Corro para junto de papai. Passo meu braço por debaixo do braço direito e, num esforço conjunto, eu e mamãe conseguimos arrastar papai pra dentro da cozinha. Ele não pára de gritar de dor. Assentado no chão, tenta proteger o braço estropiado, que pende num ângulo esquisito. A manga da camisa e a pouca claridade escondem a fratura. Mas o sangue escorre do local machucado, misturado com a água, pingando no chão. Sinto que ele quer esconder de nós três o ferimento. Mamãe percebe a gravidade da situação.
“Pedro, o braço tá quebrado!”
“Ai! Num mexe não! Chama alguém pra me ajudar.”
O temporal recrudesce. Ouvimos barulho no telhado, são telhas que o vento faz voar. As vidraças e portas batem nos portais. Mamãe prepara um copo com água e açúcar, e traz um comprido de Cafiaspirina.
“Toma isso, é pra dor.”
Papai toma a água com goles entremeados de gemidos de dor. O comprido segue garganta abaixo, mas ele continua gemendo. Mamãe tenta tirar a camisa, para trocar-lhe a roupa.
“Ai! Deixa disso, manda chamar o doutor Napoleão.”
Ela vacila. Com aquele temporal, não tem jeito de mandar os filhos para chamar o médico, que mora a um quarteirão de distância.
“Vou fazer um chá de erva-doce pra te acalmar!” — Parece que é a única coisa a fazer. Ao mesmo tempo em que põe a chaleira sobre a trempe do fogão, ordena para os dois garotos:
“Vão comendo, senão a macarronada esfria.”
Ninguém tem ânimo para nada. Eu e Artur permanecemos ali, ao redor, sem nada dizer e sem nada a fazer. Apenas olhando, fascinados, para o braço, para o pai em estado de abandono, todo molhado, os cabelos escorrendo sobre a testa. Uma poça se forma aos pés de papai: água avermelhada e barro se misturam. O apetite para jantar acabou e ninguém pensa em comer.
As netas e Tomás, o único neto, estão sentados no tapete, sobre almofadas. Laís se acomoda e cerra os olhos. Essa logo está dormindo, pensa o avô. Os demais estão atentos, fascinados com a tragédia no dia do aniversário.
— O temporal foi feio, um dos piores que desabou sobre a cidade. Goteiras apareceram na sala e nos quartos. Entrou água pelas frestas das janelas. Por mais de uma hora o vento fustigou, derrubando árvores, destelhando casas, derrubando um poste da rede elétrica. Papai gemendo de dor na cozinha. Mamãe tentando minimizar seu sofrimento com chás e comprimidos. Quis enfaixar o braço, ele não agüentou a dor.
Quando o temporal diminuiu um pouco, mamãe mandou-me ir procurar o doutor Napoleão. Saí na chuva, sem guarda-chuva nem nada. Os pingos da chuva caíam fortes no meu rosto e na cabeça, pareciam agulhinhas, me incomodando. Na casa do médico, toquei a campainha, bati com os punhos na porta. Demorou uma eternidade para a empregada abrir.
“Que é isso, moleque. Que zoada é essa aí? “
“Chama o doutor, fala pra ele ir lá em casa, papai quebrou o braço.”
“Ara, moleque, vê lá se o doutor vai sair com um tempo desses!”
“Chama ele, pelo amor de Deus!”
Não foi preciso ser chamado. O doutor se aproxima, vindo dos fundos da casa, e quer saber do que se trata.
“Papai quebrou o braço. Mandou chamar o senhor.”
O doutor Napoleão não era o médico de papai, mas era o que morava mais próximo de nossa casa.
“Onde vocês moram?”
“Aqui pertinho, no outro quarteirão. Nesta mesma rua, no número 1714.”
“Já vou agora mesmo. “
Voltei num instante, correndo na chuva, que já amainava. O médico chegou uns dez ou quinze minutos depois. Trazia uma valise e foi logo entrando pela casa.
“Onde é que está seu pai?”
“Tá na cozinha. Vem comigo.”
Ao verificar o estado de papai, abriu logo a valise e pediu tiras de panos para mamãe.
“Temos de botar duas talas e enfaixar bem o braço.”
Agindo com presteza, rasgou a camisa de papai, de maneira a expor a fratura. Em seguida, cuidadosamente, colocou duas tirinhas de madeira, uma de cada lado do braço, acertou a posição e foi enfaixando. Mamãe lhe passava as faixas de pano, obtidas de lençóis rasgados. Papai gemia, mas parece que o comprimido e o chá diminuíam as dores.
“Pronto. Agora, vamos pro quarto, deitar.”
Eu e Artur não entramos no quarto. Mamãe e o doutor trocaram a roupa de papai. Quando pudemos entrar, ele já estava deitado, de pijama. Ressonava. O médico havia lhe aplicado uma injeção para passar a dor.
O tempo, em consonância com aquela quietude de papai, também se acalmara. Restou apenas um chuvisqueiro bem fino, quase garoa, persistente. Mamãe pergunta ao doutor quanto é a visita, o trabalho, a injeção.
“Ora, depois a gente vê.” — O médico não diz o valor do serviço prestado.
“A gente ia jantar. A mesa já está posta. O senhor quer jantar com a gente?” — Na ânsia de agradar, mamãe oferece a refeição. A comida fria não despertava o apetite.
O doutor não se faz de rogado. Por certo, já tinha visto, sobre a mesa da cozinha, a travessa de macarronada.
“Sim, um pouquinho só daquele macarrão, aceito sim.”
Sentamos todos ao redor da mesa. Ele serviu-se com vontade, uma, duas, três vezes.
“E vocês, não comem nada?”
“A gente perdeu o apetite. Sabe como é, o susto, o Pedro gemendo de dor.”
Mamãe falava por todos nós. Eu, particularmente, até sentia um engulho só em pensar em comer. Do motivo daquela macarronada, que era a comemoração do meu décimo terceiro aniversário, ninguém sequer comentou.
Manobrando habilmente os talheres, cortando com as mãos os nacos de pão, o doutor foi comendo, comendo. A travessa de macarronada foi totalmente manducada pelo médico, que, finalmente, usou pedaços de pão para limpar seu prato e a travessa.
“Hummmm. Dona Maria, que macarrão supimpa!”
Ao sair, deu uma última olhada no acidentado, que dormia.
“Não se esqueça.” — Dirigiu-se à mamãe, com a última recomendação. — “Um comprimido de três em três horas, para evitar dor e inflamação.”
Quando mamãe fechou a porta, exclamei, sem saber se estava agradecido pelo socorro ou com raiva pela glutonaria do médico:
“Lá vai o doutor Napoleão, comedor de macarrão.”
— Acabou? — Luísa perguntou.
— Sim. Até hoje, isso está na memória. Se viver cem anos, sempre vou me lembrar daquela tarde do meu décimo terceiro aniversário.
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Antonio Roque Gobbo =
18 de novembro de 2001
CONTO # 125 DA SÉRIE MILISTÓRIAS