Per aspera ad astra

Per aspera ad astra

Na calada da noite, enquanto todos repousam sob seus roncos inquietos, sem quaisquer garantias de quando cessarão, admiro em êxtase, nesse campo aberto, deitado à sombra de uma árvore iluminada à luz da lua, o enaltecer do reluzir das estrelas. Ó estrela d’alva! Ó nociva paixão! Como me sinto em casa ao contemplar-te. Talvez pela certeza que do outro lado do mundo ela também possa te ver. Diga-me, então, sol de outro mundo, amigo de horas como esta, que hei de ser quando partires? Ela, minha Vênus, que, a essas alturas, prende o cabelo com uma fita e se prepara para o baile. Por que não tem não nos sucumbimos de uma vez ao pecado? Deus, não me permita ser atingido por uma dessas estrelas cadentes que dançam também pela noite. Mas, caso seja, que me leve para perto de ti, para assistir do alto o esplendor da morte e o fim desta guerra!

Para Giovanni, a escrita em pouco se distinguia de outros ofícios. Ela era mais um dos vínculos entre o ser humano e os contrastes do mundo. Mesmo assim, ainda tinha dúvidas quanto ao momento certo de segurar a Parker e começar a pautar o que viesse à cabeça. De maneira análoga, fazia comparações entre seus textos e as imaginações de um pensamento infantil. Era como um menino que, ao puxar um rascunho, começava a rabiscá-lo pensando no potro que está em sua mente. Só então, depois de ver o resultado, é que ele se desilude, por não ficar semelhante à imagem que sonhava.

Muitos moços conseguiram acordar dentro de si o que por muito tempo permaneceu adormecido devido a um simples atraso de oportunidade. Entretanto, confrontos armados se tornaram cenário perfeitos para que um turbilhão de emoções distintas fossem repassadas para cadernetas pessoais que sempre andavam nas algibeiras desses recrutas. Entre boinas e capacetes, costumava-se guardar um retrato do semblante daquilo que até mesmo o amor poderia qualificar como pureza. O cume da transparência acima da razão. Alguém por quem lutar. Alguém por quem morrer.

“E amanhã, como vai ser?” repetiam.

A frase começou a causar temor entre os oficiais do 2º Batalhão de Infantaria. Todos que cogitavam mencioná-la acabavam na cova. Mas era inevitável pensar nela.

Em curtos momentos de transe a separar suas pálpebras semiabertas de seus sonhos, Giovanni experimentava pensar em sentir o sabor do sangue em sua boca, o calor da terra, o alívio de seu peso sendo carregado. Havia quem dissesse que sua mente fazia mais barulho que uma sequência de tiros de parabelo atravessando um crânio judeu, e que seus sonhos com uma possível senhora aos poucos iam deixando sua memória.

Nem todos os dias eram daquele jeito. Há tempos, antes mesmo de se inventar de novo esse risco para o mundo, e antes mesmo do senhor ‘Pai dos Pobres’ incluir o cortiço português nas Américas dentro dos fronts, Giovanni esquivou-se de tudo aquilo que pudesse lhe trazer problemas.

Já beirando o final dos 30, enquanto regozijava sua primeira pelugem facial, Giovanni mudava-se com seu pai, Pepe, para o sobrado de número 8 da Rua Pax, onde a vizinhança os recebera com o olhar desconfiado. Trouxeram as trouxas numa carroça. Entretanto, a seleta que o menino segurava nas mãos já era o suficiente para se manter ocupado por um bom tempo. Ao menos, mantinha ocupado seus olhos para não encarar pessoalmente aquela com quem tanto temia dialogar. Seu nome de batismo era Catarina Pesse. Contudo, não demorou muito para que Pepe lhe impusesse o sobrenome Bernini, e logo a alcunhasse de Nina.

Assim, Nina, pela primeira vez, se fazia presente no que ela mesma aparentemente sonhava, se não tivesse seus sonhos invadidos por seus parentes, que lhe impuseram um casamento arranjado com um suposto italiano bem de finanças e negócios. O problema é que nem todos eram Matarazzo, mas muitos sabiam persuadir a tanto. Pepe conseguiu consolar-se pela perda de sua esposa, mãe de Giovanni, com uma crucial atitude: encontrando uma mais jovem, mais tola, mais bela.

Enquanto meninas sangram, homens se apaixonam. Sentimento tão instintivo quanto o de cadelas no cio. Pelo menos era o que deveria estar valendo na vida de Pepe; mas fornicar, para ela, compensava mais que apaixonar-se. Tudo o que poderia ser chamado de amor, estava ainda adormecido nos olhos, repito, nos olhos de Gio, ao se deparar numa curiosa e incomum cena familiar.

A educação não lhe fora muito eficaz no primeiro ano de sua fase adulta. Antigamente pouco conseguia chegar perto de Nina, mas evitava mantê-la distante. Sua beleza o cegava a ponto de não querer fazer mais nada o dia inteiro.

- Já falou com sua madrasta hoje? - dizia Pepe.

Madrasta... Maldito nome que davam a mulheres que poderiam significar muito mais que isso. A diferença etária entre a mulher e o filho era curta o bastante para discutirem sobre os mesmos assuntos.

Numa noite dessas, voltando de uma partida na própria Rua Pax, uma circunstância incomum levou Gio ao mais íntimo de Nina. Lugares onde pouquíssimos teriam visitado até então.

- Nina! Dove stai andando? – perguntou o jovem.

Ela, encabulada como sempre, pouco se adaptou a conversar com o menino, mas lhe deixava a par de todas as saídas. Enquanto não estava acompanhada por outras mulheres do bairro, em lojas de tecido ou quitandas, estava junto a Pepe, desfilando como o troféu do velho carcamano.

- Vou à missa dos Esquecidos - respondeu ela, mencionando o nome da igreja em que se casara com Pepe.

O que deveria ter sido uma homilia enfadonha, tornou-se uma cólera interna que escorria pelo meio das pernas de Nina. Por sorte, seu vestido sobrecarregado de tecido fez com que ninguém notasse a pequena hemorragia que lhe saía do ventre durante o momento em que o sacerdote mencionava as dores do parto de Maria.

Boca de praga.

Em um pânico silencioso, Nina levantou-se da tábua, ignorou os costumes e foi sozinha de volta para casa, mas, antes que pudesse rodar a chave na maçaneta, esvaneceu com as turbulências em seu ventre e desmaiou. Sua indumentária sufocante lhe apertara o bastante para faltar o ar, mas, quando o recobrou, estava com um cheiro diferente.

- Sente-se melhor? – disse uma voz masculina que estava à beira do leito.

Nina abriu seus olhos e encarou tudo a sua volta, como uma recém-nascida. Ao encarar Giovanni, que constantemente alisava seu cotovelo machucado com a queda, a menina sentiu-se com a necessidade de sorrir do incidente.

O cheiro do ar era a fragrância amadeirada que o carcabambino costumava passar depois que se banhava. Era o mesmo perfume que Nina apreciava por minutos num paletó do menino, antes de engomá-lo novamente.

- Me perdoe por tudo isso. Agora, deixe-me só por um instante – pediu ao rapaz.

Ela não se tocou que estava de camisola, e que seus panos íntimos foram retirados. O que a ele parecia mágico era ao mesmo tempo ousado e atrevido.

Mundo perfeitamente imperfeito.

Não houve qualquer reação por parte de Nina ao sentir que havia sido tocada por outro que não fosse seu marido. Pepe chegou em casa e nada foi pronunciado sobre o assunto.

- Perderam ou ganharam? – perguntou o pai.

Antes que começassem a discutir em italiano, Pepe e Giovanni sentiam-se, cada vez mais, em crises afetivas constantes.

Dias depois do incidente, permanecidos na mesma indiferença e dúvida, Nina também se sentiu mais corajosa para provar da ousadia que fora usada por Gio para ter-lhe pego nos braços.

Ela foi organizar os aposentos de Gio por um instante, até que se deparou, mais uma vez, com a seleta destrancada. Ele saíra com um grupo e ela quis saber o que havia lá. Momento estrategicamente positivo para agir. E, sem pensar duas vezes, viu que, além de seus panos íntimos com sangue, ele também guardava lembranças. Lembranças materiais que Mama lhe havia deixado, assim como uma caderneta com capa cura que prendia as páginas amareladas por um elástico.

Por mais impávido que lhe parece ter guardado tantas tralhas, inclusive fetiches como os panos íntimos de Nina, ela não se incomodava. Mais se interessava em querer saber o que o rapaz havia escrito. Seu italiano não era tão eficaz, mas era o suficiente para entender que a Pax era o lugar onde tudo seria perfeitamente imperfeito.

‘’Perdonami Dio per questo amore... Perdonami Dio per questo amore...’’

Aquilo não poderia cair em mãos erradas. Aquelas palavras precisavam de um lugar mais seguro e distante de vermes que se diziam pais.

Giovanni voltou tarde da noite, borracho, esperando simplesmente deitar-se e apagar numa noite sem sonhos. Mas, como de costume, sempre voltava à seleta para verificar suas pequenas relíquias, até sentir falta daquela tão difícil de obter.

O álcool pareceu não surtir mais tanto efeito. Seu estômago se embrulhava em medo. Quem haveria descoberto? Ela ou ele? O pai?

Nina terminava de coser em seu ateliê e se preparava para ensaiar alguns passos do Bolshoi.

Enquanto se alongava num demi-plié, Gio invadiu seu pequeno espaço e viu suas pernas descobertas mais uma vez.

- O que houve?! – perguntou assustada.

- Você...

Balbuciou inúmeras vezes antes que dissesse o que realmente pretendia, entretanto, viu no estúdio a oportunidade de segurá-la ali mais uma vez. Seu pai ora estava no armazém, ora no botequim cantarolando marchinhas. Era chegada a hora de tomar uma atitude.

Segurou-a pelo tórax e observou fixamente o fundo de seus olhos. Eles reluziam. Um turbilhão de instintos lhe pairavam sobre todos os órgãos do corpo. Coração, cérebro, olhos, ouvidos, boca. Todos eles se agoniavam, mas não hesitavam em concordar seguir uma única direção. Os olhos se fecharam, os lábios se aproximaram uns dos outros. Nina estava presa pela força de suas mãos, mas ela não desejava querer mais nenhum outro lugar a não ser aquele. Por fim, ele a soltou e permitiu com que ela viesse até ele por conta própria. Mesmo próximos, Nina chegara um tanto mais perto e lhe mordeu o beiço. Ofuscante sabor de carne humana. Intrínseco amor já despertado.

Quem dera poder amor assim durar tanto. Mal sabiam ambos que, ao se descobrirem, logo selariam um contrato de venda. Vender a vida, a alma. O pequeno ateliê era, então, um rendez-vous. A ideia era aprender o ballet e a costura. E à noite, à luz de velas, flambar a literatura pessoal do diário de Gio com o que se apertava em seu peito.

Seu sexo se excitava durante as madrugadas, até que, em um sábado, ele resolveu visitar a casa de madame Luanda. Ambiente sem muito requinte, alimentado apenas pelo desejo masculino de fornicações, traições e êxtase.

Entretanto, seus rumos foram de retorno à sua morada de número oito da viela. Pepe e mais outro grupo de imigrantes dominavam as mesas, e, antes que pudesse ver a figura de Gio, propôs a uma meretriz sentar-se em seu colo antes de foder. A prosa com os compatriotas eram sempre semelhantes: esposas, filhos, negócios. O segundo assunto pareceu suspeitar um pouco os veteranos de bordel, quando Pepe comentou que seu filho se interessava por ofícios um tanto femininos.

- Maricas, Pepe. Maricas! Deverias tomar cuidado com essas influências da tua mulher sobre ele. O moleque mal sabia que ela existia e agora está a coser e bailar? Mas aposto como a spaccata dele não supera a da bela...! Como é mesmo o seu nome querida?

- Brígida.

- Brígida! – Vamos lá, spaccata! Vejamos essa caixa de pandora.

Todos riam e mangavam de Pepe como se ele houvesse sido amaldiçoado por uma macumba.

Já Giovanni sentia aonde deveria ir. Seu sexo era seu guia e nada lhe impediria de encontrar Nina mais uma vez. Ela repousava enrolada em seus lençóis, aparentemente fingindo um sono que lhe confortava a dor da situação que vivia todo dia, presa a uma chance de se ver livre através do pecado, do crime, do perigo.

O rapaz tomou o lugar de seu pai na cama e embuçou-se na colcha. Não havia resquícios que indicassem sua presença, a não ser ela mesma. Nenhum aroma, nenhum apetrecho que suspeita. Apenas seu corpo e seu espírito. E ali, pela primeira vez, fizeram amor.

Ele calou a boca dela com seus lábios e, ao, enfim, sentir o alívio das perturbações que sentia na matina, tornou a dizer em seu ouvido:

- Dubita che le stelle siano fuoco, dubita che il sole si muova...

- Gio... – ela travou, esquivando-se.

- Per favore. Cante em meu ouvido. – provocou.

Complexada e em dúvida, Nina não sabia até onde tudo aquilo os levaria, e, antes que pudesse terminar de dizer o que Giovanni tanto sonhava em ouvir, sentiu o grunhido da porta arranhando o chão.

- É teu pai! Saia daqui! – cochichou.

Num tênue salto, Gio levantou-se da cama de seu pai e seguiu em direção ao quarto. Inconsolado e indeciso quanto ao futuro de suas emoções, desceu as escadas para a cozinha para conferir quem realmente abrira a porta.

Um velho e constante visitante: o vento. O mesmo vento que soprou na mesma porta quando Nina estava às quedas. O vento que o encorajava a assumir os riscos. vento que trouxera seu pai instantes depois, assustado, a questionar o porquê de o rapaz estar acordado ainda.

- Que faz de pé? – disse Pepe.

- Estou cansado e com sede. Vim beber água.

- Cansou de quê? De fazer suas piruetas? – retrucou o pai.

O clima, sem dúvida, mudou em pouco tempo. Pepe via em seu filho uma figura abominável, que precisava sair dali. Maricas... Como pudera chegar a tanto?

A consciência do velho carcamano estava dominada por um problema que talvez não tivesse solução. Arcar com prejuízos que lhe custariam o respeito, além dos fuxicos que se espalhariam por toda a Pax, não eram seus planos. Giovanni já estava em idade de estudar em algum ofício específico, por mais que lhe interessasse o comércio em que trabalhava ajudando seu pai. O filho único de Pepe o traíra de uma forma deprimente e de frágil reversibilidade. Quando o dia amanheceu, Pepe ainda estava acordado da noite anterior, elaborando o que fazer com o fresco que estava criando. Tomou uma ducha gelada, preparou seu café e ligou o rádio. Silêncio.

“O excelentíssimo presidente Getúlio Vargas, convoca, a partir de tal data, aqueles que queiram se juntar aos companheiros norte-americanos e partir rumo às fronteiras alemãs e italianas para derrotar os inimigos declarados. Brasil em guerra! Abrindo caminho para a vitória!”

Tudo mudou para Gio quando os trompetes começaram a tocar uma marcha do exército. Ouvindo a propaganda, tomara imediatamente uma escolha de que talvez não houvesse volta. Matar seus ancestrais para agraciar a nação hipócrita que lhe abriu as portas? Pepe mantinha sua cidadania intacta assim como sua dignidade como pai. Dois coelhos mortos numa única paulada.

Castelnuovo, 1945

Eis que nos encontramos novamente, Babbo. Estou em sua tão amada casa. Por que abandonaste este campo tão bonito? Estas uvas tão doces? Cá estou, gozando da vida com teus connazionales, bebendo do melhor vinho, fumando o cachimbo mais forte. Então, pai, volta à terra de onde vieste! Sentir o odor fétido de sangue em tuas verdes folhas de oliveira, tão queridas, tão imundas! Orgulha-te agora? Lugar tão hostil, repugnante e que me obriga a escrever de novo em português. Receio dizer que estes sejam meus últimos registros. Parto daqui para a morte. Bailarei mais uma vez como bailei com Catarina. Os projéteis do outro lado irão me guiar. Diga a Nina que não errarei nenhum passo. Diga a ela que cosi meu uniforme quando me espetaram. Espero em não muito tempo poder estar junto às estrelas, sacudindo os céus.

Arrivederci.

Numa manhã daquele mesmo ano, Nina abriu a porta e lá estava um oficial com uma caixa. Nela havia tudo o que sobrara de Giovanni. Um revólver, um diário, uma fotografia.

A Pepe só restou tomar uma decisão com o revólver, enquanto ouvia, em seu mais profundo silêncio, as últimas palavras de Gio antes de partir:

- Eu o avistei no bordel àquela noite... Eu também estive lá.

RNetto
Enviado por RNetto em 05/04/2014
Código do texto: T4756886
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