OS QUATRO MILAGRES

Após muitos dias de jejum, de recolhimento e de meditação, chegara a hora de deixar o solitário local no alto do monte e retornar à realidade do dia-a-dia. Com passos lépidos, e ansioso para dar início à sua missão, Usui desce o caminho escarpado, o bastão batendo nos pedregulhos, a fina sola de suas sandálias mal protegendo os pés das asperezas da trilha. A agilidade e a pressa do caminhante não revelam as dificuldades experimentadas pelo eremita nas três últimas semanas no alto do monte Koryama. O período fora previamente escolhido por ele, determinado a encontrar respostas definitivas para suas indagações pessoais, sobre doença, cura, amor e libertação.

Lembra-se de como as sementes da dúvida tinham sido lançadas em seu espírito. Aconteceu no início da celebração de uma das cerimônias religiosas, realizadas aos domingos, na pequena universidade cristã de Doshisha, da qual ele era presidente.

— O senhor aceita literalmente o que está escrito na Bíblia? — A interpelação de um de seus mais queridos alunos o surpreendeu, mas a resposta foi incisiva.

— Sim, claro. Acredito em tudo o que está na Bíblia. E aceito todos os ensinamentos que trazem esses santos escritos.

— Mestre, na Bíblia Jesus afirma aos seus apóstolos: “Vocês farão as mesmas coisas que eu faço e ainda coisas maiores”. — O aluno prosseguiu na sua inquirição. — Se é assim, por que não existem muitos curadores, hoje em dia, fazendo as mesmas curas que Cristo fez? Ele disse aos apóstolos para curarem os doentes. Se isso é verdade, e se o senhor acredita realmente que assim é, por favor, ensine-nos os métodos.

O professor Mikao Usui quedou-se silencioso por alguns instantes. Pensou na sua responsabilidade perante tal questionamento. Na tradição cultural do Japão, um professor deveria ser capaz de responder a quaisquer perguntas vindas de seus alunos, sob pena de ver maculado sua própria honra de preceptor e orientador dos jovens alunos.

— Sim, mestre, pedimos que nos demonstre os métodos que Jesus usou para a cura de doentes. — Outro aluno confirmou a ansiedade de saber de seus colegas.

O sensei não soube responder às perguntas de seus discípulos. Sendo ele mesmo um pastor cristão, sentiu-se desafiado a encontrar uma resposta. Não hesitou um só momento em pedir demissão de seu cargo e iniciar uma jornada em busca das respostas e descobrir como Jesus e outros benfeitores da humanidade realizaram a cura e até a ressurreição.

A pesquisa, que iria tomar mais de uma década de sua existência, o levou as Estados Unidos, onde permaneceu durante sete anos. Nesse período, vivendo num seminário católico de Chicago, freqüentou cursos de Religiões Comparadas na Universidade de Chicago. Aprendeu a ler sânscrito, a antiga língua falada ao tempo de Jesus e Buda, na Índia, no Tibete e no Oriente Médio. Mas não foi na América que encontrou as respostas às suas indagações.

De volta ao Japão, continuou suas investigações nos diversos mosteiros budistas. Os resultados eram desanimadores. Em certa ocasião, recebeu uma resposta de um abade que lhe descorçoou muito.

— No momento presente, a atenção de todos os nossos monges e estudiosos está totalmente voltada para a cura do espírito. — Disse o diretor do mosteiro.

Na Universidade de Doshisha, onde fora diretor, teve outra grande decepção, quando falou da imposição das mãos e da passagem de energia através delas, como Jesus fez.

— Não podemos sequer discutir a técnica da passagem de energia através das mãos. — Foi a conclusão definitiva a que chegaram as autoridades cristãs de Kioto.

Poderia ser o final da procura do persistente monge. Terminaria ali a demanda de Usui na procura das respostas para um assunto tão importante?

Não adianta prosseguir aqui. Devo procurar outro caminho. — Assim pensando, ele passou a residir num mosteiro zen, onde foi encorajado pelo velho abade-diretor a continuar seus estudos.

— Qualquer coisa que foi realizada numa época, poderia ser feita novamente. É plenamente possível curar o corpo, como Buda e Jesus tinham feito. — Foram as palavras animadoras do velho abade, que entusiasmaram Mikao Usui.

Iniciou um período longo no qual estudou os Sutras, escritos em japonês, em chinês e em tibetano. Inutilmente. Tendo pesquisado todos os Sutras que conseguiu localizar no Japão, não chegou a nada de novo. Sua viagem à Índia e ao Tibete foi conseqüência natural dessa busca que obcecava sua mente. Nas suas visitas aos mosteiros e templos do norte da Índia e nas montanhas do Tibete, Mikao Usui encontrou muitos textos que davam informações da Energia Universal como fonte de cura, sem, contudo, dar pistas de como fazê-la funcionar.

Num antiqüíssimo mosteiro do Tibete, eis que ele se depara com a fórmula, em sânscrito, baseada em uma série de símbolos que, quando usados devidamente, captariam e ativariam a tal Energia Universal. Enfim, achou a explicação escrita. Mas, e a prática? Como fazer para ativar essa força cósmica?

Mais uma vez, parecia que uma parede se erguia ante o incansável questionador. Dez anos de procura o levaram a um aparente beco sem saída.

Confiante de que estava na senda correta, Mikao Usui intuiu que somente através de muita meditação encontraria as respostas que tanto procurava. Decidiu, pois, meditar e jejuar. E seria num lugar santo.

Escolheu o Monte Koryama, que ficava próximo à cidade de Kioto. A montanha sagrada era procurada por muitas pessoas para meditação e oração. Vou jejuar e meditar durante 21 dias no alto do monte. Se não alcançar meu desiderato nesse tempo, é sinal de que devo desistir definitivamente.

No cume da montanha um templo muito antigo dominava a paisagem. Usui, todavia, preferiu ficar ao relento, numa clareira isolada, rodeada por touceiras de bambus, álamos e sicômoros. Para contar os dias e não perder a noção do tempo, escolheu 21 pedras que dispôs em círculo ao seu redor. Ao pôr-do-sol de cada dia retirava uma pedra, que amontoava ao pé de um pequeno pinheiro.

Na luminosa manhã do vigésimo primeiro dia, Usui teve a Visão. Sentado na posição de lótus, orientado para o ocidente, banhado pela cálida luz do sol, sua mente em perfeita sincronia com o Universo, eis que lhe chega a Revelação. Um jato de luz de luminosidade jamais vista, vindo do mais profundo azul do céu, chegou até ele: pelo chacra do Ajna — ou Terceiro Olho — a luz entrou na sua mente e se desfez em milhares, milhões de bolhas multicoloridas. Dentre as incontáveis bolhas, algumas começam a se destacar, crescendo em tamanho, as cores assumindo formas e símbolos.

A mente expandida de Mikao Usui percebeu imediatamente a Revelação e o significado dos símbolos. Aconteceu, naquele momento, a iniciação definitiva de Usui como mediador da Divina Energia Universal.

A experiência transcendental esgotou-o por completo, prostrando-o no solo, exaurido. Desmaiado, permaneceu não se sabe por quanto tempo. Ao despertar, todas as respostas estavam na sua mente: sabia agora como, onde e quando usar a técnica para permitir que a Energia Universal fizesse dele um instrumento de cura, de saúde, de felicidade e de amor.

Descendo a montanha, lépido e ansioso para praticar o que, tinha certeza, era a solução de seu questionamento, o que se tornara razão de sua própria vida, Usui tropeça e cai no áspero caminho. De seu dedo do pé esquerdo ferido o sangue brota, manchando a sandália e as pedras adjacentes. Instintivamente, ele se senta e coloca as mãos em concha cobre o ferimento. Um calor súbito aquece as mãos de modo extraordinário e o dedo ferido é curado instantaneamente.

Sarado e feliz (agora tinha certeza de que encontrara a técnica de cura), segue o mestre trilha abaixo. Ao chegar numa casa ao pé da montanha, misto de hospedaria e abrigo para quantos por ali transitavam, peregrinos na sua maioria, pede que lhe seja servida uma refeição completa.

— Vejo que o amigo está descendo do monte, onde por certo passou por um período de jejum. — A observação é do dono da humilde estalagem — Vou lhe servir um prato de sopa, que lhe convém melhor, após o jejum.

O aviso não foi aceito por Usui. Insistiu numa forte refeição, que tomou com vagar, saboreando cada naco de legume e cada porção de arroz, sob o olhar preocupado do proprietário. Este senhor vai passar mal, comendo tanto assim, após o jejum.

A fácil assimilação da refeição foi para Usui sinal evidente de que uma energia diferente estava interagindo em seu organismo. Saciado, passou a observar as pessoas ao seu redor. Notou que a mulher do seu hospedeiro estava com o rosto muito inchado.

— Estou com uma forte dor de dentes já faz dias. — Ela esclareceu, quando interrogada pelo viajante. Usui lhe pede permissão para colocar suas mãos sobre a face alterada: a dor passou num átimo e as feições da mulher voltaram ao normal. Usui nada revelou à mulher ou ao marido, mas, pela terceira vez, soube intuitivamente que a Energia Universal estava se manifestando através de suas mãos.

Mikao volta ao mosteiro de Kioto e procura pelo diretor. Encontrou o monge prostrado em seu catre humilde.

— Ah! Meu bom amigo! Abraça-me, pois não posso sequer erguer-me do leito. As juntas me doem dia e noite, não posso fazer nenhum movimento.

Ele abraça e beija o querido mestre. Ainda mais uma vez, pede licença e impõe as mãos sobre o corpo prostrado. Por alguns minutos, as mãos se estendem em concha, detendo-se sobre os membros, ombros e costas do monge, imobilizado pelas dores. Após a imposição das mãos, os dois conversam por algum tempo. Quando Mikao se retira, o velho diretor já está sentado no catre. As dores tinham se esvaído e ele se mostrava animado, completamente curado.

Mikao Usui teve, através desses quatro milagres, a certeza de que a imposição das mãos e a invocação dos símbolos sagrados, visualizados no monte, constituíam a resposta à sua procura, aos longos anos de estudo e de meditação.

Havia finalmente encontrado a cura de todos os males, para todos os seres vivos, através do equilíbrio da Energia Universal.

Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 22 de outubro de 2001.

CONTO # 119 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/04/2014
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