PAPAGAIOS, PIPAS E PANDORGAS
— Manda um recado. A raia já tá bem alta. Tá na hora de mandar a mensagem. — Afobado, Josias pega um pedacinho de papel e entrega ao amigo.
— Espera um pouco. Ela ainda tá puxando de lado. Me deixa firmar a linha.
Raul puxa o fio para a esquerda e a raia, presa na outra ponta da linha, a uns cem metros de altura, se estabiliza. O céu limpo de agosto, varrido pelo vento quente do mês aziago, é um perfeito pano-de-fundo para as cabriolas e cabeçadas das raias e papagaios que os garotos empinam, excitados pela disputa, a ver quem deixa sua raia por mais tempo, ou quem empina mais alto. E quando as airosas peças de papel e bambu se estabilizam, está na hora de mandar um recado ou uma mensagem: um pequeno pedaço de papel recortado de tal forma que, colocado na linha, sobe até a pandorga, estabelecendo o contato.
— Lá vai ela!— Enquanto olha o minúsculo papel subir pela linha, desaparecendo a partir de certa altura, Raul recomenda a Josias que faça o mesmo
— Agora, manda a sua mensagem.
— Minha raia num pára. Tá dando muita cabeçada. Se mandar a mensagem agora, ela desce.
As raias são diferentes. Raul faz sua raia com cauda longa e a barbela bem centrada. Usa papel de seda com as cores do Palmeiras, seu time de futebol. Caprichoso, cola com cuidado o papel de seda ao longo da armação de bambu. As finas taquaras são leves e cortadas em tamanhos proporcionais, formando um quadro perfeito. As cores verde e branca se confundem com o azul intenso do céu, e conforme o sol bate, o papagaio fica invisível.
— Pô, ela sumiu!
— Que nada! Tá invisível, num tá vendo, seu bobo?
Aos dois meninos ajuntam-se outros, trazendo suas raias e papagaios. Dentro em pouco, há uma verdadeira constelação multicolorida de estrelas vespertinas em mudanças constantes. As outras raias, papagaios e pandorgas têm formas e cores diferentes. Josias gosta de fazer sua raia sem cauda. Para isto, tem que trabalhar uma armação maior, apenas um losango de lados iguais. O equilíbrio da barbela é crucial, tem de ser exato.Como é mais pesada, exige linha mais grossa para ser empinada.
— Minha pipa tá puxando pra capeta! — Josias se orgulha dela, uma pipa vermelha, que cabriola para todos os lados.
— Num deixa ela chegar perto do meu papagaio. Cuidado! Vai embaraçar a linha!
O grupo agora é de cinco garotos, espalhados pelos diversos pontos do Largo do Rosário. O local é apropriado: uma vasta área livre, sem postes nem fiação de eletricidade. Apenas algumas palmeiras imperiais e, no centro, ao lado do cruzeiro, um solitário buritizeiro centenário, de elevada copa, marca presença no local. A garotada se sente à vontade para soltar pipas, papagaios, raias, pandorgas, como são chamadas, de acordo com o formato e a maneira de construí-las.
Nequinha se enamora da carretilha de Raul, que enrola e desenrola a linha com suavidade, a manivela girando com rapidez quando a raia pede linha, ou mantendo-se firme, travada com um palito de sorvete.
— Quer trocar sua carretilha? Dou-lhe um livro das “Mil e Uma Noites”.
— De jeito nenhum! Olha só como ela é boa! — Raul, além de não querer se desfazer da carretilha, ainda lança bazófia no colega.
— O livro e mais cinco gibis. — insiste Nequinha.
— Neca de pitibiribas! — Raul dá o assunto por encerrado, sem perder um minuto na atenção à sua raia.
Pela tarde ensolarada, garotos vão e vêm. Alguns embaraçam suas raias. Outros recolhem suas linhas, enroladas em latas vazias de Toddy, ou em simples pedaços de madeira roliça ou pedaços de bambu. Raul, Nequinha e Josias permanecem, sentados na grama, deixando seus papagaios agitarem-se no azul infinito.
— Que linha você usa? — Nequinha pergunta a Raul.
— Tenho três carretéis de linha número 24 aí na carretilha.
— Puxa! É por isso que sua raia sobe tanto!
Nequinha recolheu a linha e sua raia cor-de-rosa está no chão. Raul começa a rodar a manivela da carretilha, puxando o seu papagaio. Josias também inicia o recolhimento de sua pipa. Como Raul deu mais linha, demora mais a puxar o papagaio. Já está quase no final, o papagaio está pouco acima do cruzeiro, quando um inesperado pé-de-vento empurra o lindo brinquedo voador, lançando-o, de ponta-cabeça, em direção ao solo. A linha se emaranha na copa do alto buritizeiro. Raul, em frenéticos puxões, consegue trazer a raia até a ponta da palmeira, onde fica presa.
— Xiii, cara! Agora cê perdeu o papagaio!
Num puxão mais forte, a linha se arrebenta. A raia permanece presa nas folhas da palmeira. Os três garotos correm para o pé do buritizeiro. Raul tenta subir pelo tronco fino e não consegue, é pesado demais. Josias nem tenta, vai logo dando o veredicto final:
— Essa já era. Inda bem que cê salvou a linha.
Nequinha, o menor dos três e por isso o mais ágil, começa a sungar-se tronco acima. Quando está a uns cinco metros do chão, pára e grita para Raul:
— Que você me dá se eu pegar sua raia ?
— Sei lá, cara. Vamos, anda logo, tá escuro.
— A carretilha?
— Tá, a carretilha, sim. — Relutante, concorda Raul. — Mas sobe depressa, vai!
Nequinha dispara, suas pernas e braços agarrados ao tronco, numa agilidade incrível: é um verdadeiro macaquinho subindo pelo tronco. Mas, ai! Quando está próximo da copa, esforçando-se para agarrar a folha da palmeira onde a raia se agita, embaraçada, no momento exato em que pega o rabo da raia, perde o equilíbrio e despenca!
No lusco-fusco do entardecer, Raul e Josias não percebem direito o que acontece. Olhos esbugalhados, acompanham o corpo do amiguinho flutuando. De permeio, os braços do cruzeiro escondem por instantes a visão da queda.
— Sai de baixo, ele tá caindo! — alguém grita.
Estupefatos, afastam-se alguns passos. Sempre olhando para cima. Mais assustados ficam quando vêem o perfil do corpo que cai fundir-se com o braço do cruzeiro. As sombras da noite não lhes permitem acompanhar a queda.
A agilidade de Nequinha é insuperável. Mesmo em queda livre, uma das mãos segurando o papagaio, vê que passará rente à cruz. Sem pensar, num ato instintivo de sobrevivência, larga a raia e agarra-se ao madeiro horizontal, com as duas mãos, no momento certo. O tranco é forte, suas mãos escorregam mas agora, ao cair no chão gramado, o impacto é menor. Cai como um gato. Levanta-se, lépido, a tempo de ainda aparar, com suas mãos sangrando, o papagaio que desce flutuando, ao seu lado. Apresenta o papagaio a Raul:
— Taí a sua raia. Me dá a carretilha!
Bestificado pela ação do amiguinho, pela rapidez com que tudo acontece, Raul recebe a raia e dá a carretilha a Nequinha que, segurando firme o objeto de desejo, sai correndo, seu vulto desaparecendo rápido nas sombras do anoitecer.
Antonio Gobbo
Belo Horizonte, 7 de setembro de 2001
Conto # 114 da Série Milistórias