TOCHA HUMANA

Jamais se importara com os apelidos que lhe eram dados. Sua figurinha era propícia a apelidos diversos, desde os tempos da escola primária. Vandinho fora um garoto miúdo, pequeno e magro e os cabelos loiros mais pareciam espiga de milho. A face muito branca e sardenta enrubescia como pimentão maduro nas ocasiões em que o garoto se encabulava ou se sentia envergonhado. Já que era também tímido, seu rosto estava constantemente vermelho. Esperto, apesar de asmático, gostava de correr, e ofegava e ficava corado nos breves percursos de corrida.

No grupo escolar, teve dezenas de apelidos. Primeiro foi “formiguinha elétrica”, devido à sua atividade fora do normal. Nunca ficava quieto dentro da classe e durante os intervalos, os minutos do recreio, subia no muro ou fazia malabarismo nas barras de ginástica.

— Desce daí, menino! Toma cuidado pra não cair! Parece uma formiguinha elétrica. — O porteiro do grupo, seu Geraldo, que era também encarregado de vigiar os alunos nos períodos de recreio, chamava sua atenção.

O garoto era levado da breca, mas era obediente. Ao descer das barras de ferro, atendendo à ordem do porteiro, ficou claro que não se incomodava com o apelido, que pegou. Bastou o Zeferino ouvir aquele apelido, para espalhar pela classe e, em seguida, por toda a escola. Xandinho atendeu, por muito tempo, pela alcunha de Formiguinha Elétrica.

Foi o primeiro. Depois vieram: “Ovinho de tico-tico”, em alusão ao seu rosto sardento, semelhante ao ovinho pintalgado de pequenas manchas castanhas. Logo em seguida, “Pimentinha” devido à cor de seu rosto, sempre afogueado. “Chiado” veio quando teve um acesso de asma em plena sala de aula, tendo que sair mais cedo, voltando pra casa, a fim de ser medicado.

No Ginásio Municipal continuou sendo vítima de apelidos. “Pimentão” e “Piru”, ainda devido ao vermelho do rosto. Passou a fazer parte do time de futebol dos “menores”, isto é, a última divisão dos quatro times organizados pelo Irmão Gonzáles. Na escalação, era sempre Pimentão, ágil no ataque, correndo de um lado a outro do campo. Entendia que quanto menos importância desse aos apelidos, melhor seria. O que mais durou, e que foi duro de agüentar, foi o de “Filhote do Irmão Fritz” conseguido devido à sua extraordinária semelhança com o irmão da congregação que dirigia o Ginásio Municipal.

A garotada da época gostava de ler gibis. As revistinhas eram trocadas, havia um intercâmbio intenso. Apesar de proibidas — e talvez por isso mesmo — cada colega e amigo tinha uma pilha delas. Liam escondidos dos pais. De vez em quando, uma desgraça acontecia:

— Papai descobriu meus gibis, tocou fogo em tudo, não salvou nenhum.

— Cadê os meus, que te emprestei na semana passada?

— Foram todos queimados.

— Tá me devendo seis gibis. Tem de me pagar.

Vandinho era viciado em gibis. E, de todos os personagens, os que mais apreciava eram Tocha Humana e seu amiguinho Centelha.

— É incrível esse poder de inflamar o corpo e sair voando, disparando bolas de fogo contra os bandidos. — Costumava até colorir os quadrinhos com as histórias da dupla: Tocha Humana era pintado de vermelho, e Centelha, cor de laranja. Seguia as cores das capas, em brilhantes tonalidades em papel couché. Sonhava com as aventuras dos heróis, tinha pesadelos e por duas ou três vezes fora acordado pela mãe.

— Vandinho, acorda! Tá sentindo alguma coisa?

— Que foi, mãe?

— Você tava gemendo e esperneando. Foi pesadelo?

— Tava sonhando que era o Tocha Humana.

Aos dezoito anos, chegou a época de fazer o “serviço militar”: por nove meses ficou engajado no Tiro de Guerra, onde alguns apelidos lhe foram agregados. Pela sua colocação na lista alfabética, Aldovando estava em sétimo lugar e tornou-se o “Sete”. E porque continuava agitado, ficou no comando do pelotão dos piores elementos, os mais indisciplinados. Pelas confusões que aprontava, chamavam-no de “Diabo Louro”. O batalhão do “Diabo Louro” era o último a cumprir as tarefas, nas marchas e exercícios de campo sumiam da vista dos Sargento Oliva e jamais se dispunham voluntariamente a qualquer tarefa.

— Ei, recruta Sete, assim, vocês não vão conseguir o certificado! — A ameaça era vã, pois dificilmente os que faziam o Tiro de Guerra eram reprovados. Bastava ser assíduo, não faltar aos exercícios e tudo dava certo, no final de contas.

Terminada a obrigação para com o Exército Nacional, Aldovando mudou-se para o Rio de Janeiro. A cidade ainda era, em 1955, a Capital Federal. Getúlio havia se suicidado no ano anterior e viviam-se momentos de intranqüilidade política e social. O rapaz não gostou do rebuliço da cidade grande nem da movimentação de soldados pelas praças e avenidas.

Aldo (assim era chamado entre os colegas) queria estudar, mas o que ganhava como bancário era suficiente apenas para pagar a pensão e a condução. Não fora o auxílio enviado pelo pai, todos os meses, não teria nem como sobreviver.

“Vou fazer o concurso para o Banco do Brasil. Só assim terei recursos para estudar.” — Escreveu em carta dirigida à mãe. E em seguida passou a freqüentar um curso ministrado por funcionários do próprio Banco do Brasil. No primeiro dia de aula , ocorreram as usuais apresentações dos professores e alunos.

— Aldovando Messias de Souza Gomes. — Falou com ênfase para a turma. — Podem me chamar de Aldo. — O novo apelido já estava incorporado e ele até gostava.

— Ou Tocha Humana? — Uma voz anônima veio do fundo, em tom de brincadeira.

Aldovando virou-se rápido, a tempo de conhecer o colega brincalhão. O apelido ficou. Outra vez essa história de Tocha Humana! — Pensou o rapaz, sem se preocupar. Já estava acostumado a receber apelidos.

Aldovando mantinha um namoro firme com Amelinha, que continuou mesmo quando ele se mudou para o Rio. Eram cartas e mais cartas, toda semana chegava uma e outra era expedida. A jovem professora gostava de escrever, tal como o rapaz, e mantinham uma correspondência firme.

“No mês que vem estou de férias e vou visitá-lo.” Estavam em junho quando Amelinha lhe escreveu da intenção de ir ao Rio. Era uma viagem de duplo objetivo: visitaria o namorado e conheceria a Cidade Maravilhosa. Aldovando se preparou para passar a semana com a namorada. Pediu mais dinheiro ao pai (que mandou apenas a metade do solicitado), comprou roupa e sapatos novos, e obteve alguns dias de folga no trabalho.

A semana com Amelinha foi a glória. Aldovando já conhecia os locais mais agradáveis e pitorescos, levou a namorada aos passeios obrigatórios: Corcovado, Pão de Açúcar, Copacabana, Ilha de Paquetá. Numa noite de lua cheia, tomaram o barco para Niterói e viveram os “momentos mais românticos de suas vidas”. Na esteira brilhante da embarcação, Aldovando ciciou uns versinhos ao ouvido da namorada.

No sábado pela manhã, foram ao Largo da Carioca. Aldovando queria mostrar a Amelinha o “Tabuleiro da Baiana”, ponto de chegada e saída dos bondes que se dirigiam para a Zona Sul. Tomaram o pitoresco bondinho que os levou ao bairro de Santa Tereza, no alto do morro. Amelinha assustou-se com a subida íngreme e com o percurso pelas ruas estreitas. Ao retornarem, foram lanchar na Confeitaria Colombo, bem ali no largo.

Amelinha estava encantada com a cidade, principalmente pelo desembaraço do cicerone. Ao saírem da famosa confeitaria, admiravam as vitrinas quando alguém se aproxima e dirige-se a Aldovando:

— Olá, Tocha Humana! Você por aqui?

Aldovando se vira, reconhece o colega do curso. Imediatamente fica vermelho, como que incorporando as características ígneas do herói dos quadrinhos, de vergonha e de raiva, pois jamais pensara em revelar à namorada o apelido tão idiota.

Como apareceu, o colega desapareceu na multidão. Sem mais explicações.

— Tocha Humana? Ele te chamou de Tocha Humana? — Amelinha indaga, estranhando e ao mesmo tempo com um tom de gozação na voz.

— É...É como me chamam no curso.

— E você aceita?

— Sim. — Sem jeito, assume o apelido. Pela primeira vez na vida, sente-se ultrajado e ofendido com um apelido. E pretendendo minimizar o impacto causado na namorada, sai-se com essa:

— Aliás, que tal se você fosse minha Centelha, hein?

Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 10 de agosto de 2001.

CONTO # 110 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/04/2014
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