URSÃO
Os olhos do garoto encheram-se de encanto e de fascinação. Ao subir os degraus da livraria, era como se galgasse as escadarias de um templo, de um local mágico e maravilhoso, a que nunca pensaria poder ter acesso. Os degraus eram de pedras, apenas três. O assoalho era de madeira e as paredes cobertas de prateleiras, onde os livros perfilavam-se numa exibição de mundos a serem explorados.
Pela primeira vez, Henrique entrava numa livraria. Costumava passar defronte do palácio, a caminho da escola. Parava defronte à única vitrina, onde os volumes mais vistosos eram exibidos num arranjo atrativo. Mas entrar na livraria... era um sonho que naquele momento se realizava. Seu pai o puxara pela mão, o garoto estava estarrecido e paralisado no seu encantamento. Nem podia acreditar no que estava lá dentro. E o que era melhor, podia pegar os livros, abrir, ver as figuras, e... até escolher um para si mesmo!
Era véspera de seu aniversário. No dia seguinte, trinta de outubro, Henrique completaria dez anos. Cumprindo uma promessa, seu pai o levara à livraria, para escolher o que quisesse, o livro de sua preferência.
— Pode escolher aqui nesta prateleira. Vou conversar com o dono da livraria. — O pai se afasta, vai cumprimentar o proprietário Lamartine Alencastro.
São tantos livros! Histórias de fadas, de aventuras, de viagens. Robin Hood e Robinson Crusoé ele já leu. Manuseia um dos volumes de Monteiro Lobato. Esses Doze Trabalhos de Hércules ainda não li. Mas são dois volumes, papai disse que só posso escolher um. As aventuras de Tarzan e de Long John Silver, há! Que delícia de histórias! O pequeno Henrique cheira os livros, sente um prazer tátil e olfativo ao abrir os volumes. Vê num canto da estante “As Aventuras do Aviãozinho Vermelho”, que já lera na biblioteca do grupo escolar. Escolhe que escolhe, por seu gosto levaria uns quatro ou cinco.
Separa um de aventuras de piratas. Mas sua atenção é despertada por um outro de tamanho maior, a capa sugestiva, e o nome mais ainda: URSÃO. Livro fino, muito ilustrado, ilustrações impressionantes, cheias de detalhes. O nome também o empolga. E quem escreveu a história é uma mulher, deve ser uma história muito bonita. Vou pedir este.
— É, mais algumas estantes, eis o que preciso para colocar no centro do salão. Estantes baixas, que não tirem a visão das prateleiras. Mas quero para logo, antes do Natal. Vou modificar a exposição dos livros, para chamar a freguesia. — Lamartine e o pai de Henrique ajustavam um serviço.
— Estou muito apertado, tenho muitas encomendas. — Seu Raimundo, como sempre, estava atrasado com as entregas, pegava serviço demais e tinha de trabalhar até tarde da noite, na sua marcenaria, para terminar os móveis encomendados. — Mas vou fazer, sim, as estantes de que o senhor precisa.
Aproveitara a ocasião de pagar sua promessa com o filho, comprando-lhe o livro que escolhesse, e ajustara mais um trabalho. Chama o garoto para finalizar a visita:
— Então, Henrique, já escolheu o livro?
— É este aqui, pai. — Henrique se aproxima com o livro cartonado nas mãos, segurando-o com muito cuidado.
O final da transação foi rápido. Seu Raimundo sequer prestou atenção na escolha do filho. Na rua, entretanto, perguntou-lhe:
— É um livro de aventuras?
— Não, parece que é coisa de fadas e de um príncipe que vira urso.
— Que coisa mais esquisita!
E era mesmo uma história muito estranha. Na tarde daquele mesmo sábado, Henrique começou a leitura. Começou por admirar a capa, uma ilustração brilhante: uma linda moça sentada à beira de um regato, de onde começava a aparecer a cabeça de um enorme sapo. O título — URSÃO — em letras grandes, no topo, seguido do nome da escritora: Sra. Leandro Duprè. Um cheiro bom de papel e tinta que o menino aspirou com prazer, aproximando o livro do nariz.
— Ué, tá cheirando o livro? — A mãe estranhou. Henrique tem cada uma, pensou.
O garoto sorriu pra mãe, não respondeu e começou a ler. Lia rápido, mas por economia e por querer estender o prazer da leitura e do manuseio do livro por um tempo indefinido, parou no final do primeiro capítulo.
A emoção e a história deixaram-no alvoroçado. Naquela noite, sonhos estranhos, quase pesadelos, povoaram seu sono. Dezenas de personagens das histórias que já tinha lido apareceram em ações estapafúrdias, as histórias se misturando. Aladim brigava com Tarzan. Long John Silver, o pirata da perna-de-pau, chegava à ilha do tesouro, voando num tapete mágico. Caramuru, fugindo dos índios, numa jangada que ele mesmo construíra, caiu no mar e era atacado por tubarões. Ele próprio, Henrique, salvou Caramuru, pois estava na jangada e puxou o bravo homem para fora d’ água.O príncipe Ivã caiu por um poço muito fundo, onde foi transformado no monstro de duas cabeças. Flash Gordon no fundo de uma caverna, muito ferido, procurava a namorada Dale. Mas então Henrique se viu perdido na profunda caverna e... acordou.
Na segunda-feira, durante o intervalo das aulas, na “hora do recreio”, ficou conversando com a professora, Dona Marocas, sobre o livro e os sonhos que tivera, com personagens de livros e de histórias em quadrinhos. A professora gostava de conversar com seus alunos os assuntos mais variados.
— Mas que misturada de personagens! Tem até herói de gibis! — Comentou a professora, puxando mais informação.
— Sabe, é que leio muito gibi, também. Lá em casa não entra gibi, tá proibido, mas leio as revistas de meus colegas. Todo mundo tem.
Sem se dar conta, revelara um de seus segredos. Assustado, consertou:
— Mas só depois que termino os deveres de casa.
A professora ficou pensativa. Como é interessante essa relação das crianças com os personagens das histórias, com os seus heróis. A imaginação viaja e viaja, não tem limites. E é capaz de aceitar as situações mais inverossímeis, e transformá-las a seu bel-prazer. Até mesmo as histórias mais escabrosas, a imaginação infantil sabe trabalhar.
Lembra-se da ocasião na qual foi organizada a biblioteca do Grupo Escolar Coronel Hermes Andrade. Discutira muitas vezes com a diretora, Dona Iracema, sobre o conteúdo das histórias ditas infantis.
— Branca-de-Neve ou Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, são histórias impregnadas de terror. As histórias dos gibis, então, são pura violência. — Era a opinião da diretora. — Imagine só: Tocha Humana, um homem que se auto-incendeia. O Capitão Marvel provoca raios e trovões ao gritar “Shazam!”. Os mocinhos de histórias do velho oeste usam revólveres e laços mortais. Não, as crianças não podem ter acesso a esse tipo de leitura.
— Mas, Iracema, as crianças elaboram bem essas informações. Tenho um aluno, o Henrique, que me conta tudo o que lê. Sempre com a maior naturalidade. Eles combinam a ficção com a realidade, e sabem bem onde está o verdadeiro e o irreal.
— Bom, com as histórias infantis pode ser assim. Mas com as aventuras dos gibis, não. Tem muita violência. Aqui no grupo não vou admitir essas revistas de maneira alguma.
— O que a gente proíbe, eles fazem escondido. Melhor os garotos não esconderem o que lêem.
— Revista de quadrinhos, aqui, só pode ser o “Tico-Tico”. — A palavra final de Dona Iracema tinha sido dada.
Foi por isso que os muitos exemplares de “Tico-Tico” ficaram logo amassadas e encardidas, de tanto manuseio: eram as prediletas dos alunos. Quando chegava um novo exemplar, havia fila de interessados na sua leitura.
Henrique terminou logo a leitura de Ursão. Degustou cada palavra, cada capítulo, passou horas admirando as ilustrações. No final, o desfecho de suspense e terror deixou-o impressionado. A princesa fora arrastada por um enorme sapo para o fundo de um rio lodoso, e já estava se afogando quando foi salva pelo monstro em que se transformara o príncipe. Esse ato de bravura e de amor (o monstro amava a princesa, sem que ela soubesse) foi a sua redenção, pois voltou a ser o príncipe encantador. A princesa repele o monstro, mas, após a mudança, ama o esbelto jovem com o qual se casa. Afinal, foram felizes para sempre.
A história foi objeto de muita discussão em casa. A mãe a leu e achou-a horrorosa, imprópria mesmo para seu filhinho.
— Raimundo, como é que você foi comprar um livro com história tão terrível assim?
— Foi ele quem escolheu. Eu não vi nem o título, estava conversando com o dono da livraria, nem prestei atenção.
— Pois devia. É uma história triste e mete medo em qualquer criança.
— Henrique ficou com medo?
— Não. Mas eu fiquei.
— Pois então volte para seu livro de orações, e deixa o garoto ler o que ele gosta.
Deste aquela ocasião, Henrique procurava cada vez mais, na biblioteca da escola, os livros mais fascinantes. Não se satisfazia mais com história de fadas e duendes. Queria sensações fortes. Durante todo o ano seguinte, o último do grupo escolar, leu as melhores histórias de terror que encontrou: Peter Pan que manda o Capitão Gancho direto para a goela de um enorme jacaré; a Gata Borralheira, cuja madrasta é uma verdadeira bruxa; As Mil e Uma Noites, nas quais a ameaça de morte (a cabeça cortada) pairava todos os dias e todas as noites sobre Xerazade.
E leu muitas outras terríveis histórias para crianças, pois o sabor da leitura advinha exatamente do terror que elas continham.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 28 de julho de 2001.
CONTO # 106 DA SERIE MILISTÓRIAS