IMPONDERÁVEL - Parte 1

A barbearia do senhor Fonseca fica num local estratégico para todos aqueles que gostam de praticar a nobre arte de cuidar da vida alheia.

O salão tem três portas, sendo duas para a Rua da Aurora, a terceira para a Rua Visconde de Tarouca, e fica exatamente na esquina quando começa a Praça da Independência, que é o local fartamente frequentado por todos os moradores da redondeza porque, é dali que partem e chegam os ônibus, para o centro da cidade e para os bairros vizinhos.

É um local aprazível, onde a população composta principalmente por babás, que trazem os carrinhos com as crianças de colo para brincarem no gramado bem cuidado entre os canteiros com roseiras e gerânios, pelos velhos que vêm jogar dominó e pelas senhoras donas de casa, com seus bordados e cestas com as lãs que serão tricotadas juntamente com as vidas dos conhecidos e desconhecidos.

Ali se sabe tudo o que acontece e também o que não acontece, principalmente.

No final da praça, ainda está de pé, embora já apresentando os sinais da passagem dos anos, o que sobrou do paredão, com mais de metro e meio de espessura, todo de pedra rejuntada com barro e óleo de baleia, que era parte da senzala do engenho do visconde, junto à chaminé, toda de tijolo vermelho, cozido e recozido pelo calor da fumaça vinda da fornalha e que ainda hoje é utilizada como crematório para os restos de podas, para as folhas secas, quando a praça é varrida, e para os cabelos que foram cortados, na barbearia, no dia anterior.

Bem cedinho, seu Fonseca varre as calçadas das duas ruas em frente ao salão, junta aos cabelos que foram cortados e trás a sacola com jornais velhos, álcool e fósforos.

Nessas últimas três décadas, essa rotina se repete e, a velha chaminé lança, diariamente, em direção a céu, a fumaça branca, de odor desagradável, resultante dessa queima.

Esse costume teve origem num caso frustrado de amor eterno, entre um vendedor de produtos farmacêuticos e a sobrinha de seu Fonseca.

Foi assim que tudo aconteceu...

Lenira, a sobrinha, morava com os tios, desde que, ainda pequena, ficara órfã. Era uma moça vistosa com os cabelos castanhos, longos e cacheados e olhos azuis claros, quase brancos. Sabia bordar, à mão, muito bem e trabalhava para ajudar aos tios.

Todas as noivas faziam questão de ter no enxoval as peças que Lenira bordava, com esmero. As camisolas das noivas e os monogramas, com as iniciais dos noivos, principalmente nas fronhas, lençóis e toalhas que seriam utilizadas na noite de núpcias.

Pela manhã, depois de ajudar a tia nos afazeres domésticos, Lenira ia para o quarto transformado na oficina de bordados e à tarde, depois do almoço, ia para a praça se juntar às outras bordadeiras, que ficavam trabalhando e comentando a vida alheia até que o escuro da tarde que morria, avisasse que era hora de voltar para casa.

E foi num dia assim, sem grandes novidades, que Lenira viu Dulcino pela primeira vez.

Viu e se apaixonou, à primeira vista, por aquele homem bonitão, corpo atlético, alto, ainda jovem, com os cabelos castanho-escuros, olhos negros, que gostava de conversar e fazer piada de tudo, com voz forte e sorriso largo.

Sem qualquer justificativa, Lenira guardou os panos e voltou para a barbearia. Sentou numa das poltronas de espera, pegou uma revista e, por cima do papel, ficou observando aquele homem encantador.

- Quer alguma coisa, minha filha?

Perguntou seu Fonseca procurando desvendar o motivo daquele interesse repentino da sobrinha, por aquelas revistas que, estavam no salão da barbearia, desde quando ela ainda era uma garotinha.

- Eu estou procurando um risco... muito bonito... eu vi, mas não sei em qual dessas revistas está...

- Pode levar todas elas lá para dentro. Seu Dulcino, aqui, é o último freguês de hoje. Vou já terminar e fechar a barbearia...

- Mas eu preciso que o senhor faça a barba também porque eu vou sair amanhã bem cedo...

- Oh! Sim, não estou esquecido.

- Tia Silvia foi buscar o pão. Quando ela voltar eu vou para dentro com ela. Hoje temos sopa de lentilha, o senhor pode chamar o seu cliente, se quiser, porque tem sopa bastante para nós quatro.

- Eu agradeço a sua gentileza senhorita, mas ficará para o próximo mês, quando eu voltar.

Pelo menos uma vez por mês, Dulcino ficava hospedado na cidade e vinha cortar o cabelo na barbearia do seu Fonseca.

O tempo passou, mas em nada diminuiu o interesse de Lenira pelo vendedor que, acostumado a ter uma namorada em cada cidade onde pernoitava, notou o interesse da sobrinha do barbeiro e passou a investir no relacionamento.

Todas as vezes que vinha à cidade, dava uma passada na barbearia para cortar o cabelo, mesmo que não precisasse e sempre fazia a barba.

Num dia lá, qualquer, mesmo reticente, seu Fonseca, concordou com o convite para Dulcino tomar a sopa, reiteradamente oferecida por Lenira.

E, nessa dita noite, eles começaram o namoro que, não era bem visto pelo tio, porque sabia das aventuras amorosas do vendedor, decantadas em verso e prosa, pelos seus colegas de profissão e que, também, eram clientes da barbearia.

Logo no início do namoro, Lenira pediu e Dulcino concordou, em tirar uma mecha de cabelo que, depois de amarrada com fita azul, foi colocada numa caixa de madeira, forrada de veludo, junto com outra mecha do cabelo de Lenira, amarrada com fita rosa, e que se transformou em relíquia, objeto de verdadeira adoração.

Nos meses seguintes, na mesma medida em que aumentava o amor de Lenira, murchava o interesse de Dulcino, que acostumado aos favores sexuais das outras aventuras amorosas, mal podia pegar na mão da namorada, cuja castidade era vigiada todo tempo, e de perto, pelos tios e, por causa disso, aquelas juras de amor eterno, foram pouco a pouco sendo substituídas por mentiras descabidas e mal arranjadas.

O desgosto de Lenira era visível em tudo. Somente por causa da desilusão amorosa, muitas vezes atrasou as entregas das encomendas dos bordados, coisa que nunca tinha acontecido.

Numa tarde em que Lenira estava na praça, conversando com dona Mary, sem sequer ter tirado o bordado da cesta, ouviu a proposta que seria a solução para o seu caso de amor não correspondido.

- Minha filha, eu conheço uma pessoa que pode dar um jeito nisso. Ela é capaz de fazer o seu homem voltar, como um cachorrinho, para junto de você em menos de um mês.

- Quem é ela? Vamos lá agora mesmo. Eu não posso perder Dulcino, ele é tudo na minha vida.

- Agora não que já está tarde, mas amanhã, logo depois do almoço, passe lá em casa que eu vou lhe levar lá.

Nessa noite, a mais longa de sua vida, Lenira não conseguiu conciliar o sono e a manhã se arrastou, desde o alvorecer até a hora do almoço.

- Falta muito? Lenira perguntou a dona Mary, muitas vezes, durante o trajeto.

- Não minha filha, estamos já chegando. Não fique tão aflita...

Depois de uma curva da estrada, as duas mulheres viram a casa de aspecto miserável da dona Olga Romanov – a bruxa – como era conhecida por todos.

Bateram palmas e aquela mulher de aspecto horripilante, cabelos longos, desgrenhados, quase totalmente brancos espalhados sobre o xale de lã, roto e de cor indefinida, da face enrugada, cujo queixo quase tocava na ponta do nariz, escondendo a boca murcha, desdentada, com o vestido roto, sujo, pouco acima das botinas sujas de lama, parou de tirar água do poço e veio para perto do portão. Abriu e, com um gesto de mão, mandou que entrassem.

O casal de cachorros, vira-lata, veio correndo para junto da dona que, vibrando a vara de marmelo, espantou os dois, chamando-os pelos nomes, com o forte sotaque de quem aprendeu outra língua depois de adulto:

- Vem Andriúcha... vem Irina... deita, deita... (E virando-se para Lenira, perguntou) Você quer amarrar o seu homem, não é?

Atônita, Lenira balançou a cabeça em sinal de concordância.

- Você tem certeza de que quer ele junto de você, a qualquer custo?

- Sim, eu tenho.

- Depois do feitiço, nada nem ninguém, só a morte, vai separar vocês.

- Sim senhora.

- Lembre-se de que você poderá sofrer muito com o casamento e mesmo assim ele não sairá de junto.

- É exatamente isso que eu quero. Estou disposta a pagar qualquer preço para ficar com Dulcino pelo resto da vida.

- Depois de amanhã é lua nova. Traga alguma coisa dele...

- O quê?

- Qualquer coisa, roupa, sapato, pedaço de unha, de cabelo...

- Eu tenho uma mecha do cabelo dele...

- Ótimo, traga também um jarro com tampa que nunca tenha sido usado.

As duas mulheres saíram em silêncio verdadeiramente impressionadas. Como é que ela adivinhara qual das duas queria sua ajuda e a intenção de Lenira em prender o namorado para sempre?

Quando estavam quase chegando de volta, dona Mary pisou em falso num buraco e torceu o pé. Com muito esforço Lenira conseguiu levar a amiga para casa. No dia seguinte, ela teria que votar só, à casa da dona Olga.

Continua na Parte 2