A Noite Perdida (ou A Noite Achada)
Há um continente, um país, uma cidade. Um bairro, uma avenida. Um “eu”. Sempre que afunilamos o geográfico, podemos encontrar histórias interessantes. Como um zoom, uma lupa à mão. Esta não é diferente... muito menos desprezível.
Benjamin Lieber é um judeu. Apenas mais um. Nariz avantajado, cabelos raspados. Mãos e mente calejadas pelo fantasma de um passado. Trabalha em uma firma assinando e carimbando papeis e, mesmo que recebesse o título de “judeu”, não era rico. Possuía um carro seminovo e um quarto para dormir localizado em um prédio do centro da cidade. Tudo que queria estava em mãos: um mercado para comprar iogurtes 'grego' diet, uma farmácia para pílulas e descongestionantes nasais, um bar/restaurante para as refeições diárias, e uma lavanderia que deixava as roupas com o cheiro de lar. Mudara para aquela cidade há pouco tempo, logo, queria praticidade nas coisas do dia a dia.
Numa sexta-feira de um mês qualquer, o pessoal da firma comemoraria, logo mais à noite, o aniversário da empresa. Convidaram-no, apesar de que, de fato, não queriam-no lá – ou, pelo menos, não faria tanta diferença. Ou, talvez quem sabe, não pensaram na possibilidade de um “sim, eu vou. Estarei lá.”. Benjamin soltou o ar dos pulmões apreensivos com o convite, observou o espaço ao seu redor, bateu o pó imaginário do terno meio barato, abaixou a cabeça e pensou: “Que maravilha! Estou com minha melhor gravata!”. Por fim, viu a mesa e o escaninho: uma pilha de meio metro com papeis ansiosos pelo carimbo. “Melhor começar logo, senão me atrasarei para a confraternização!”. Empunhou a caneta enquanto repousava a almofada do carimbo na tinta seca. Os olhos voavam pelas linhas, ávidos pelo futuro como pássaros migrantes de inverno.
Eram 19h e faltava cerca de 35 petições – ou seja lá o conteúdo dos papeis. O gesto já era, há muito, involuntário. Caneta, papel, carimbo, tinta, papel. As janelas da face já queriam fechar as persianas. Contudo, Lieber sacudiu a cabeça e decidiu tomar um café. Ele não gostava do café daquela nova cidade, era fraco... e faltava alguma coisa, mas ele não sabia bem o quê, mesmo assim tomou. Voltou à escrivaninha e finalmente terminou os últimos papeis. Era hora (ainda dava tempo, na verdade) de ir à festa. Benjamin lançou o copo ao lixo – digno de um jogador de basquete da NBA –, comemorou o lance na mente, pegou as chaves do carro e o endereço que haviam-no deixado grudado no computador em um papel de bilhetes colorido. Era verde, ele gostava da cor e sentia em seu coração algo muito positivo, quem sabe, um fio de esperança.
Sentado no banco do carro, tirou o papel do bolso e o sentimento de decepção lhe invadiu: não sabia onde ficava o local. Ficava na Zona Sul da cidade, Benjamin nunca fora lá. Encostou a cabeça e o peso de uma decisão no volante. “Eu vou!”. Girou a chave, acelerou e dirigiu até o seu conhecimento das linhas da cidade. Estacionou no acostamento e perguntou para o ar-condicionado para onde iria agora. “Como podemos seguir sem conhecer as direções?”, surrou o volante. Então, a luz do teto acendeu repentinamente e o celular recebeu um SMS. “Malditas operadoras... só elas me enviam mensagens.”. Voltou os olhos para a rua quase vazia e sem direções e, mais repentinamente que a luz mágica do teto, lembrou-se do GPS do celular. “Tanta tecnologia um dia me ajudaria”. O judeu foi atingido pelo mesmo sorriso de esperança de um tempo atrás. Revirou o celular do pé à cabeça sem muito sucesso e a memória lhe presenteou com o manual do aparelho no porta-luvas. Seguindo os passos não tão claros do manual, Benjamin encontrou o que precisava. Agora, ele tinha a direção. Correção: Benjamin Lieber 'tinha' a direção. Sua tecnologia o deixou na mão, a bateria do celular descarregou e se viu, mais uma vez, perdido.
O cenário mudou bruscamente. O asfalto conhecido deu lugar a uma avenida larga, porém escura. Havia um ou dois postes, por sorte, havia também umas casinhas bem simples, iluminadas por cascatas de estrelas derramando do teto. “É verdade, é época de Natal para eles”... Neste instante, Benjamin lembrou-se também que não havia abastecido o carro. Estava perdido na Zona Sul de uma cidade que ele não conhecia bem, em uma avenida com poucas luzes, sem combustível, sem lugares para abastecer por perto (aparentemente) e com o celular descarregado. “O que fazer?!”.
O carimbador de papeis precisava de ar, só assim ele poderia raciocinar e saber o próximo passo. Abriu a porta do inútil carro, chutou-a, pôs as mãos na cabeça rala de pelos, bateu o pó imaginário do paletó, olhou para baixo, viu a gravata e desfez o nó com rispidez. Benjamin sentiu que estava sem sorte naquela noite e se perguntou quando foi que ele teve sorte na vida, afinal? Sentado no capô do carro ele esperava alguém passar por ali. E o tempo não parecia se mover, puxou a manga da camisa e consultou as horas no relógio. Surpreendeu-se. Os ponteiros estavam parados e os números não estavam lá. Viu depois um pequeno furo no vidro do relógio de pulso. As horas se perderam... Repousou o corpo e a cabeça no para-brisa, “o que fazer?!”. A brisa batia à face e esperar não era a melhor opção. Liebe decidiu procurar ajuda. Trancou o carro, escondeu as chaves. Era ele, seus pés e seus olhos, sedentos por um pouco de gratidão, caminhando pela avenida sem fim.
Poucos metros depois, o infeliz sentia o corpo adormecer. Um extremo formigamento lhe subia das pernas à cabeça, assentiu para si que deveria se sentar, precisava apenas escolher o lugar correto para que não fosse atropelado ou, de alguma forma, maltratado. Só que isso é bem difícil quando se está embriagado, mesmo sem álcool no sangue. Avistou uma nuvem branca e esfumaçada logo perto. Caiu.
Benjamin Liebe acordou no meio-fio daquela mesma avenida. O céu ainda estava coberto de estrelas. Pressentiu que o tempo não havia passado muito, não como ele desejava. Lembrou que sempre pediu para o tempo passar mais rápido, assim a vida lhe doía menos. Pouco depois uma senhora lhe surgiu na frente dos olhos ainda deitados. “Quem é você, meu rapaz?”. O judeu se sentou no meio-fio e, pela primeira vez, alguém lhe tinha feito esta pergunta. Benjamin emudeceu. “Quem sou?!”. Respondeu: “Sou um judeu.”, a velha pôs uma interrogação no rosto. “Só?!!”. Ele respondeu, mais uma vez: “Sim.”. A mendiga senhora respirou fundo e olhou para o céu: “Sabe, meu filho, meu pai odiava judeus...”, Liebe fez como quem gostaria de se levantar e ir embora dali, mas ela pôs a mão em seu braço, impedindo-o. E prosseguiu: “Ele odiava judeus... sempre achei isso absurdo... não lhe odeio”. Eles conversaram por um bom tempo, impossível de se contar, todavia a madrugada ainda tomava conta do céu. O apenas judeu contou à senhora sua história, sobre a firma, a gravata preferida, as pilhas de papel, o carimbo... o GPS inútil. A velhinha ouviu tudo com muita calma. Por fim, perguntou duas coisas: “Qual seu nome, meu rapaz?”. “Benjamin”, respondeu. “E o que lhe restou?”. “Um relógio furado que não marca a hora, as roupas do corpo, as chaves do carro...”, pôs as mãos no bolso, sentia vergonha... “...ah, este bilhete com o endereço do local”. A senhora sorriu, só que desta vez era um riso debochado. “Acho que começo a compreender um pouco do que meu pai dizia sobre judeus... ele dizia que eles pensavam muito no físico, no material... e pouco na vida. Não lhe julgo, caro Benjamin. Muito menos culpo apenas os judeus por este maldito hábito... Bem, tenho que seguir meu caminho, vai amanhecer e não quero perder a sopa que distribuem na praça... Quer vir junto?”. A resposta veio apenas com o balançar da cabeça, negativamente.
Quando a senhora já se perdia do olhar, Benjamin gritou lhe perguntando o nome. “Chamo-me Vítula!... Já que não vem comigo, por que não olha o nascer do sol? É sempre tão bonito... e verde!”, desapareceu na névoa da quase manhã. O rapaz ficou sem entender, “por quê verde? O céu não é verde!”. Cabisbaixo, o judeu voltou para o lugar onde deixara o carro, com seus enormes olhos farejando o chão. Chegando lá, os vidros haviam sido quebrados, o celular roubado, porém deixaram o desprezível manual. Benjamin Lieber, achando que nada poderia ser pior que aquilo, deitou-se em cima de seu carro e fez o que a senhora Vítula lhe propusera. Achou lindo, mas continuou sem entender o porquê que ela disse que o céu era verde. Ele pôs as mãos na cabeça, limpou o pó da camisa, olhou o peito: “Onde está minha gravata?!”, e, decepcionado, pôs as mãos no bolso para pensar no próximo passo. E ali estava o bilhete com o nome da rua. Intuitivamente, o pôs contra o calmo sol... no verso havia algo escrito: “Se não encontrar o lugar, volte para casa. Não ficaremos chateados.”. Assim o fez e dessa forma entendeu: o céu realmente é verde.