Alice, a Feia
Aquela madrugada difícil tinha feito com que ela retomasse seus trabalhos. Começou a desenhar.
Desenho por toda a casa. Cada parede. De madrugada mesmo.
Acendeu velas para não acordar os outros moradores. Velas por todo o lugar, e com sua luz, e com as sombras na parede, ela desenhou. Sombras dançantes, danças obscuras. Tudo que sua mente conseguia imaginar. A luz bruxuleante das velas a inspirava. A escuridão a motivava.
E desenhou e escreveu histórias na parede...:
"Alice.
Não a Alice do país das maravilhas. Mas uma outra Alice. Uma Alice de todo o inconsciente coletivo. Aquela Alice que todos nós guardamos.
Essa Alice aprendeu a caminhar com menos de dois anos. Era uma menina esperta, precoce para as coisas do corpo - e as coisas da mente.
Ao caminhar, começou a conhecer. E quanto mais conhecia, mas tinha vontade de caminhar. E quanto mais caminhava, mais foi crescendo.
O corpo modificou-se. A mente, um pouco. No fundo, ainda era a Alice.
Tinha 14 anos e ainda era a Alice que aprendia a caminhar. Pois cada caminho que fazia era um caminho novo, e não sabia como caminhar por ali. Porém, ainda achava tudo um máximo. Ainda achava aquela novidade toda bem interessante. Ela tinha a alma leve, tinha o coração inteiro.
Caminhou por todo o interior, por todas as pequenas cidades, sem sair do lugar. Caminhou por todas as ruas da sua cidade natal, sem sair do lugar. Caminhava e percorria tudo com suas perninhas imaginárias.
As suas pernas reais também cresceram e a Alice podia caminhar fora da imaginação. Quando seus pais não estavam vendo, pois eles eram muito zelosos pela Alice, e a Alice era uma menina muito distraída. Ela andava pelas ruas da cidade violenta como se estivesse num sítio, mirando borboletas, pássaros e copas de árvores. Aprendeu isso com um lobo mal - que primeiro foi cordeiro, amigo, e depois foi lobo mau, e depois transformou-se em amigo de novo, e mudou-se a cada passo que Alice dava sobre os anos. Mas, espera, essa é outra história.
Alice encontrou muitos personagens das histórias infantis enquanto caminhava: caçadores, reis, rainhas, anões, príncipes, elfos, fadas, gnomos, duendes, bruxas, bruxos, magos, Pinóquios...
Cada um deles marcava algo na sua pele. Cada um deles projetava sua característica sobre a pele de Alice. Pouco a pouco, Alice foi mudando, e adquirindo novas formas. Sua pele ficou marcada com riscos. Alguns doeram muito. Eram marcados de forma mais profunda, em locais mais sensíveis. Outros quase nem fizeram marca...
Alice agora era uma mulher cheia de cicatrizes - algumas, mais escondidas, ficaram profundas e não muito bonitas, que Alice conseguia "cuidar" - ou melhor, que Alice conseguia disfarçar bem - colocando alguma proteção. Nunca usava maquiagem, pois lhe causava alergia.
E essa mulher redesenhada pelo mundo, com o corpo modificado pelo crescimento, continuava caminhando. E caminhando. E caminhando. Não tinha mais lugares para marcas, no corpo de Alice. As cicatrizes cresceram junto com ela. Tinha gente que queria, de todas as formas, marcar seu corpo. Alice saía correndo. Ela tinha saudade de ver a sua pele como costumava ser antigamente, sem tantas informações.
Um dia, ela encontrou o bailarino. O bailarino costumava dançar longe dela, mas num dia especial - um dia em que ao atravessar um rio caiu sobre as pedras e cortou-se próximo ao ventre, doendo muito-, ele veio dançar à sua frente. Alice não compreendia muito bem a movimentação do bailarino, pois, embora gostasse de dançar, não acreditava que um dia pudessem os seus passos de dança complementarem os dele. Mas naquela noite, e em algumas noites específicas, complementaram-se.
O bailarino não era só um bailarino... Era também um ótimo ouvinte. Sem querer ser, ele acabava se tornando o melhor bailarino que Alice já conhecera. Mas também sabia ser o pior bailarino. Pisava no seu pé quando estava de mau humor, desafinava a música, riscava os vinis de Alice - Alice adorava colecionar vinis - escolhia músicas erradas, fazia de tudo para que o compasso da dança que estava ficando natural para os dois, se tornasse extremamente difícil.
No início, ela ainda conseguia ajustar as pontas. Suavemente mudava as notas. Suavemente cantarolava algo consonante. Sorria e às vezes inventava passos novos. Mas a ferida que sangrava começou a sangrar mais, e, sem assistência, ela acabou adoecendo. A nossa andarilha precisou ficar de repouso.
Mas o bailarino não entendeu isso. Zangou-se. Ficou com mais rancor, com mais raiva, ficou mais desesperado. Esbravejava, esbravejava por todos os lados - em que ela pudesse estar. E quando não esbravejava, não mais cantarolava: mantinha um silêncio de cortar o chão ao meio. E cortava todos os caminhos que Alice pudesse encontrá-lo.
Mas ela não conseguia ficar por muito tempo em repouso. Era uma moça cheia de energia. Precisava dançar, precisava caminhar, precisava ver as coisas. Fazer coisas. E saiu para caminhar, mesmo sem estar completamente curada. Mas o caminho que Alice estava fazendo era o seguinte: durante o dia, buscava a noite. Durante a noite, buscava o dia. Nessa troca tão estranha, acabou encontrando muitas coisas que havia perdido pelo caminho. Às vezes, quase nem reconhecia algumas coisas (atiradas por aí) como suas.
Conheceu mais pessoas. Um dia, encontrou-se com um bardo. O bardo sabia tocar sons mui suaves e ela gostava da forma como a música fluía de seu violão. Era um violão mágico. O bardo parecia ser leve, ser iluminado, ele parecia brilhante como o sol.
Não, não era. O bardo era tão humano e mortal quanto ela - senão mais. Alice mostrou-lhe suas cicatrizes, algumas ainda vermelhas. Ele assustou-se com esse seu lado feio e foi embora. "Deve estar com medo..." ela disse para si mesma. "Eu devo esperar o tempo dele". Pois ela já tinha aprendido que cada um tinha seu tempo. Por dentro, porém, estava muito triste por não conseguir livrar-se das cicatrizes a ponto de estar leve outra vez, ou de ao menos escondê-las melhor.
Um dia, Alice, cansada de lutar contra essa sua bagagem... Começou a desenhar sobre cada cicatriz uma tatuagem. Lembrava do momento em que adquiriu cada marca, e, após escrever numa folha amarelada a relação de cada um deles, traçou então desenhos para cada um desses momentos.
Algumas tatuagens doeram muito, pois os desenhos eram complexos, cheios de traços, de padrões, de detalhes. Outros desenhos eram mais simples, eram feitos facilmente. Alice já estava no segundo mês de tatuagem e ainda não tinha terminado. Parecia que quanto mais tatuava, mais lugar tinha para tatuar, mais coisas tinha para complementar.
Saiu andando pela rua, chamando a atenção, com tantas tatuagens pelo corpo. Andou por todas as ruas onde já a conheciam, e as pessoas se surpreendiam com tantos desenhos, tantos e tão coloridos. Os mais conservadores ficavam boquiabertos com tanta "rebeldia" expressa em seu corpo. Alguns diziam que aquilo era uma forma de se "esconder". Mas Alice não ligava. Ela queria transformar cada sofrimento em arte.
Dos personagens, cansou-se de todos eles. Quando lhe perguntavam sobre as histórias infantis, revoltava-se. Alice não tinha mais aquele brilho nos olhos - o brilho infantil de ilusões. Seu brilho era outro, um brilho um pouco menos romântico, mas que iluminava mais.
E assim ela saiu por aí. Chocando a tudo e todos, desistiu de livrar-se de cada marca. Carregou-as consigo e para cada uma, tinha uma história - exatamente como um bardo, como um andarilho. Cansou de onde morava e saiu pra andar mundo a fora. Conheceu todo o país onde nasceu. Foi das pirâmides maias até as egípcias. Fotografou as tribos da África e do Chile. Passou pelo inverno -30ºC argentinos.
Soube que morreu na estrada. Morreu feliz. Dizem que ao morrer, cada tatuagem (e cada cicatriz) foi desaparecendo aos poucos, quase como se fossem queimadas. Mas isso tudo é só mais uma lenda, uma daquelas que Alice iria odiar ouvir ser contada."
...No outro dia de manhã os moradores da casa - seus amigos - acordaram e viram todos aqueles desenhos, quadrinhos, cenas e histórias. Um bilhete da sua amiga que não dizia nada além de um "fui!", sem número de telefone, sem nada. Correram para seu quarto, não encontraram sua mochila. "Finalmente, ela saiu voando!", pensaram. E no final do dia, as paredes da casa já estavam limpas, sem nenhum vestígio dos desenhos de Alice.