O SABONETE DO ZORRO
— Silvinho, volta na venda, vai trocar o sabonete.
— Uai, mãe, fica com esse mesmo.
— Eu te disse pra comprar o Salus, mas você trouxe o Palmolive.
— Eu comprei por causa da tira preta. Dá pra mim.
— Que você vai fazer com essa tirinha?
— Quero entrar pro clube do Calunga.
— Deixa de besteira, Silvinho. Anda, vai trocar o sabonete.
— Ai, mãe, quanta exigência. O seu Júlio falou que o Salus acabou.
— Tá falando a verdade, Silvinho?
— Juro, manhê ! E o preço é o mesmo, num faz diferença, não é mesmo?
Contrariada, dona Alzira acede. Afinal, é tudo a mesma coisa. Esses sabonetes são uma massa mole, com meia dúzia de banhos lá se foi a peça. Derretem-se nas mãos da gente. Bom mesmo é o sabão-de-pedra, dura muito mais. E fica bem mais em conta.
— Toma a tirinha que você pediu. Mas acho que você tá perdendo tempo com essas bobagens.
— Não é bobagem não, mãe! O Renato é sócio, todo mês recebe jornalzinho e distintivo do clube do Calunga. — Silvinho pega a tira de papel que envolve a embalagem do sabonete e guarda dentro de sua caixa de lápis coloridos. Mais tarde, escreverá uma cartinha e pedirá a sua inclusão no clube de fãs do Zorro e seu amigo Calunga.
Se fosse por dona Alzira, a família continuava usando o velho e bom sabão de pedra, feito por ela mesma, semana sim, semana não. Tinha aprendido a fazer o sabão com a mãe, que lhe ensinou um conhecimento tradicional na família. Mas o marido era exigente e depois que aprendeu a tomar banho com sabonete, não quis mais saber do sabão de pedra.
— Ara, Alzira, manda comprar o sabonete. Deixa o sabão de pedra pra lavar as panelas. A gente fica mais lisinho. Você fica tão cheirosa !
Por economia, mandava comprar o Salus, que não era o mais cheiroso, mas era mais durável, alem de ser um pouquinho maior. Agora, chega o Silvinho com o Palmolive, que é o mesmo preço, sim, mas de certo vai derreter na saboneteira.
Silvinho manda a cinta para um endereço em S. Paulo. Uma semana depois, recebe, entregue pelo carteiro João do Nero, um envelope verde-oliva, gordo de papéis.
— Manhê, chegou o jornalzinho do Zorro!
— Que foi, Silvinho, que berreiro é esse?
— Olha só, mãe! Veio o distintivo do clube, a senha secreta e o jornalzinho do Zorro. — Silvinho esparrama sobre a mesa da sala de jantar o conteúdo do envelope verde-oliva.
— Mas... isto tudo é de graça? — Ela desconfia da propaganda do sabonete.
— Claro, mãe. Foi só mandar a tirinha do sabonete. Agora, todos os meses vem novo jornal e outra senha. A gente só tem de mandar duas tirinhas por mês.
— Ah! Sabia que tinha coisa. Tem de comprar dois sabonetes por mês.
Silvinho ficou radiante. Na escola e entre seus amigos, foi sucesso total. O pequeno jornal, de quatro páginas com histórias do Zorro, de seu cavalo Silver e do amigo Calunga, foi manuseado com interesse. As aventuras do herói das histórias em quadrinhos eram narradas em textos fáceis, e alguns desenhos coloridos ilustravam as peripécias do famoso caubói.
A mania de colecionar figurinhas, marcas de cigarros e caixas de fósforos era geral entre os colegas de Silvinho. Não demorou muito e surgiram propostas de trocas.
— Quer trocar por figurinhas de artistas de cinema? — Luiz Antonio tinha mais de uma centena de figurinhas de artistas do cinema americano, que vinham nos pacotes de três sabonetes da marca Lever. Fotografias em branco-e-preto que não agradavam a Silvinho. Josué ofereceu estampas do sabonete Eucalol. Silvinho se interessava por elas: coloridas, eram maiores, do tamanho de um cartão postal. Atrás de cada estampa, havia uma nota informativa a respeito do desenho, que representava um local pitoresco ou uma curiosidade de qualquer parte do mundo. Tal como as figurinhas de artistas do sabonete Lever, os cartões vinham dentro das caixas com três sabonetes da marca Eucalol. O irmão de Josué era balconista na loja do seu Elias e abria as caixas para a venda avulsa dos sabonetes. Ficava com as estampas, que dava a Josué, cuja coleção constava de mais de cinqüenta. Mas o interesse pelos cartões Eucalol não foi maior do que o apego pelo jornal do Zorro.
— Quando receber outro jornal, troco com você. — Prometeu a Josué.
Havia uma verdadeira guerra de brindes oferecidos pelas diversas marcas de sabonetes. Imediatamente após o término da Segunda Guerra Mundial, as fábricas, liberadas do esforço bélico, começavam a inundar o mercado de todas as conveniências já usuais na América do Norte e na Europa. As fábricas de sabonetes e pasta dental partiram na frente com propaganda agressiva e brindes de todos os tipos.
O sabonete Carnaval disparou na oferta de brindes. Aleatoriamente, moedas de dois cruzeiros eram encontradas dentro do sabonete. Era o preço do sabonete, que, desta forma, ficava de graça para quem achasse a moeda. É o sabonete que mais vendo aqui na loja, afirmava o dono da elegante Loja das Novidades. Apareceu em seguida o Salus, exótico na cor alaranjada e de tamanho maior que, além do preço mais camaradinha, oferecia delicado brinde. Quem ajuntasse dez caixas (vinha numa caixa de papelão) vazias trocava por uma miniatura do próprio sabonete.Ofertas assim tão simples entusiasmavam os consumidores.
Algumas marcas não distribuíam brindes, mas anunciavam com empolgação as suas vantagens: o Vale-Quanto-Pesa, sabonete bem maior do que os demais; o sabonete Dorly, que anunciava nas páginas do Gibi Mensal: É o melhor e não é o mais caro. O Lifebuoy, cujo nome difícil vinha explicado nos anúncios: “Diga laifebuói”.
À saída da classe, Silvinho e Renato caminham juntos e seguem pela mesma rua, pois são vizinhos. São os únicos sócios do Clube do Calunga, em todo o grupo escolar, e conversavam sobre as histórias nos pequenos jornais. Renato tinha uma coleção de mais de dez exemplares, que emprestava a Silvinho.
— Puxa vida, esta aventura do Zorro é mesmo sensacional! — Silvinho está entusiasmado com sua adesão ao Clube do Calunga.
— Acho tudo muito legal. O jornalzinho, o distintivo, a senha secreta. — Renato fala com autoridade de antigo sócio. — Você sabe que a senha secreta que a gente deve usar quando se encontra, muda todo mês? Este mês, por exemplo, é ...
— Gun-la-ca ! — Diz Silvinho, ansioso para mostrar que está por dentro das regras do clube.
— Gun-la-ca ! — Responde Renato.
Sem que se dessem conta, foram envolvidos por um grupo de uns dez colegas que gritavam em coro, acompanhando uma garota:
— Êh, Salus! Sabonete de lavar cavalos. Êh, Salus! Sabonete de lavar cavalos.
Os dois garotos se encostam no muro e deixam a pequena turba passar.
— Coitada da Zélia!
Silvinho fala da brincadeira de mau gosto que os garotos do grupo fazem com a colega. Poucos sabem o porquê dessa história. Filha do seu Emídio Boiadeiro, negociante de gado, ela se destaca por diversos motivos: é muito gorda e bastante atrasada nos estudos. Gosta de cavalos e tem um, presente de seu pai. Ela mesma cuida do seu magnífico corcel negro e foi vista por alguns colegas quando lavava o animal de estimação. Daí a ser objeto do mote, foi um pulo. Mas a garota não se irritava nem um pouco: lá vai ela, na frente do grupinho, sem se incomodar com a gritaria. E os meninos não se cansam de apupá-la.
Nessa manhã, a brincadeira teria um final. Ao cruzarem a avenida, eis que surge de uma rua lateral, montado no mesmo cavalo baio de Zélia, o pai da menina. Trajava uma roupa escura e um chapéu preto completava a indumentária. Sem dizer lá vai chicote, seu Emídio cavalgou sobre a criançada. Foi menino correndo para todo lado, enquanto o cavaleiro dava chicotadas no ar. Assustados, Renato e Silvinho ouviram o barulho dos cascos — pocotó, pocotó, pocotó — e do chicote — slapt! slapt! slapt!
— Chiiiiií! Olha lá, tá parecendo o Zorro!
Ao chegar perto de Zélia, seu Emídio grita: “Sobe, menina!”. A garota pula, muito ágil, apesar de gorda, e o cavalo dispara, rumo ao alto da cidade.
Para os dois garotos, que assistiam de longe à cavalgada, o ataque e o resgate, tudo aconteceu como se fosse uma intervenção do Zorro.
— Só faltou a máscara... — Começou Silvinho.
— E as esporas de prata. — Completou Renato.
E concluiu:
— Eu pensava que o Zorro só defendia quem usasse o sabonete Palmolive.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE, 23 DE MAIO DE 2001
CONTO # 92 DA Série Milistórias