Telegrama 


Chegou aquele telegrama inoportuno, numa manhã iluminada, quando o noticiário alardeava ensolarado fim-de-semana. Se pudesse não teria aberto a porta e atendido ao solícito carteiro. Ele, ávido, estendeu-me o braço com o naco de papel a ventilar-me nas fuças. Desde cedo me informaram, os parentes em polvorosa, que aquele papel marrom continha notícias funestas. Exceções ocorreriam por motivo de enlace matrimonial ou no júbilo da contagem de mais uma primavera. Nenhuma dessas opções cabia no dia de hoje.

Sexta-feira e uma mensagem soa-me ao raiar das primeiras horas matutinas. Devia ter saído logo para a praia ou me apressado em correr à biblioteca. Os professores nos dispensaram para que estudássemos tendo em vista as provas finais. Não fiz um ou outro. Fiquei em casa e aquela nota, possivelmente triste, rondava-me como se ronda a uma presa.

Não tive escolha ou opção. O carteiro pedindo que assinasse o recibo. Será que ele aceitaria uma gorjeta para dizer que não me localizou? Conferi o nome e o endereço. Era para mim. Não havia a menor sombra de dúvida. Encontraram-me afinal. Devo justificar meu desapego. Meus pais não mais se encontram neste mundo, e nem os meus avós. Sendo filho único, os parentes mais próximos são meus primos e três tios caducos. Não havia como sofrer uma perda que me dilacerasse o coração.

O namoro era recente, com uma colega de estudos, de tal sorte que o aborrecimento não poderia me afetar as entranhas do ser. No entanto, caso alguém realmente tivesse falecido, o advento obrigar-me-ia ao comparecimento formal ao enterro. Foi pedido de minha mãe: não abandone a família, preste auxílio espiritual sempre que te pedirem. Jura? Jurei no leito de morte. Apesar da falta de fortuna, éramos um ramo tradicional.

Cada geração afrouxava os nós carnais que nos mantinham unidos, eu, em particular, era um dos mais avessos aos ritualismos hereditários. Mas o leito de morte possui uma força terrível. Como quebrar uma promessa daquela?

Assinei o recibo e dispensei o carteiro. Em meu pequeno quarto e sala de solteiro que se mantinha organizado graças ao bom zelo de uma faxineira e à minha ascendência em Virgem, caminhei em direção à poltrona. Acomodei-me e bati por três vezes o pequeno volume contra o joelho.

Quem teria morrido?

Os meus velhos tios eram os mais prováveis. Margeando os 80 anos, disputavam quem possuía o maior número de doenças da última idade. Por que o desenlace humano do corpo em carne precisa ser tão difícil? As funções falham. A graça aos poucos abandona o físico. Os cabelos brancos a surgir esporadicamente em uma ciranda macabra. As rugas a sulcar o rosto lentamente cavando erosões na pele. A virilidade declinante a cada ano. A falta de disposição de andar, de respirar, de viver. Não seria melhor viver 40 ou 50 anos apenas e partir no auge da juventude?

Eu novamente solitário tentando mudar o mundo à minha maneira. Tolo. Queres desafiar milhões de anos de evolução? Caso exista mesmo um Deus, prefiro crer que Ele sabe o que faz.

O envelope me convidava a abri-lo. E se eu não o fizesse? Poderia simplesmente pegar a toalha, vestir o calção, municiar-me de um livro, cuja resenha devo entregar na segunda, e ir para a praia. Abriria o lacre ao meu retorno. Isso. Somente ao final do dia, bronzeado e satisfeito poderia deixar a nota triste para o entardecer, ocasião muito mais oportuna. Lancei o envelope contra a escrivaninha. Ele deslizou e bateu de encontro ao porta-lápis. Levantei-me de um salto.

Procurei meu calção. Vesti em um segundo. Preparei o protetor solar. Câncer de pele mata que é uma beleza. Eu estava decidido. Compromisso familiar que espere. Vou à praia. E se fosse uma solicitação importante? Alguém à beira do leito de morte precisando de auxílio, o aviso de um primo dizendo que me visitaria? A nota de uma herança. Herança? Meus tios possuíam poucas propriedades, que seriam doadas aos filhos. E se uma tragédia houvesse ocorrido matando a todos em uma casa de um golpe só.

Família, filho. Família é tudo o que a gente tem. Era como se minha mãe me soprasse aos ouvidos. Larguei a toalha. Deixei de lado o protetor solar.

Em pé, seminu, com meu calção nas cores rubro-negras, apanhei o envelope e abri em um único rasgo. Fosse o que fosse, era melhor dar logo um cabo à toda aquela aflição.

“Basílio passou p/ Medicina UFMG”.

O velho e bom primo Basílio seria médico. Às vezes dou graças por não ter telefone ou por meus parentes não usarem o email. Também sabem que não tenho micro em casa e que não gosto de celular. Está sempre desligado e nunca checo a caixa de mensagens. Deverão fazer a maior festa.

O sol ruge lá fora. A praia me espera. Lanço o papel ao cesto. Sem morte, velório, visita chata. Que Basílio seja um bom médico, o fim-de-semana promete...