E PADRE CASA?

Filho de família descendente de italianos, não se pode dizer "oriundi", mesmo porque não sabiam direito este significado. Filho que não era o único, eram mais 9, total 10. O pai, um baita de um italianão, não era muito chegado aos nomes. De início, quando nasceu o primeiro, tratou de batizá-lo como "Primo". Tempo passando e filho nascendo, Secondo, Terço, Quarto, Quinto, e aí o vigário achou que já estava demais. Demais fazer filho, seu padre? Non, respondeu o padre. Tens que colocar nome de santo. E assim, então os outros cinco filhos passaram a ser chamados pelo nome do santo do dia. Onomástico. Quem sabe, em homenagem ao santo de plantão. Ah! Até o nascimento do Quinto, todos eram homens. Depois começaram a nascer só meninas. E o italianão olhava pro padre e dizia: "Ma que brute robi, madona mia".

A vida era mais ou menos assim. De manhã, fogo alto e chapa quente. Polenta esquentando na chapa, mas sem antes passar banha de porco e colocar por cima da fatia da polenta uma grossa fatia de queijo. Enquanto uma filha preparava o café, outra arrumava a mesa, outra ainda entrava no quarto do casal, apanhava o pinico cheio de urina e jogava na "casinha" lá fora. Os moços tiravam leite, partiam a lenha e então todos sentavam à mesa e iniciavam o primeiro ritual da alimentação. O pai com uma faca e com o pão debaixo do braço ia cortando as fatias daquele pão branco e macio. Sovado que fora com muito trabalho e força. Pedaços de salame, manteiga fresca conservada na água com sal, polenta frita na chapa e café com leite. Mas antes faziam a primeira prece.

A lavoura esperava a família toda. Quase toda. A mãe com a filha mais nova e a mais velha se encarregava da casa e da comida. Os moços, nem todos iam para a roça. O mais velho, Primo, ficava em casa, vivia às voltas com livros que ganhara do padre. Era o único que sabia ler e escrever, por esta razão o velho e nem sempre letrado pai, entendia que era bom ter um filho que soubesse ler e escrever. Aos poucos todos cresceram, arrumaram namorados e namoradas. Mas o Primo nada. Vivia mais para a sacristia, ajudava a missa, arrumava o altar, limpava os santos e vez por outra "pedia emprestado" uns cobre da coleta da missa para poder comprar alguma coisa, como uma cinta nova, um canivete marca Corneta, um par de botinas, um pote de brilhantina Glostora e às vezes um presente para mãe.

Um belo dia, quando todos estavam celebrando o noivado da filha do meio, que por sinal chamava-se Fecundina Maria, foram surpreendidos com a comunicação em que Primo fazia à família. Ia ser padre. A mãe era um choro só. Tanta alegria. Fecundina Maria ia se casar, Primo ia ser padre. E aí então surgiu um impasse. O velho pai levantou-se e falou: "Tu pode casar, mas quem vai casar vocês dois é o Primo, depois que se formar padre". "Ma, Dio Cristo, tu tá tchuco?", perguntou a mãe. "Pro Primo se formar padre são mais que cinco anos. E até lá pode acontecer muita coisa, tu não tá lembrado o que aconteceu com nóis dois?" Pronto. Casamento tratado antes de o futuro padre ir para o Seminário.

Foi.

Alto, bem falante, raciocínio mais lógico para o que entendia ser lógico. Como por exemplo. Um dia nas instruções religiosas, falavam da aparição do Espírito Santo em forma de uma pomba que descia sobre a cabeça dos discípulos. Não podia entender esta situação. Na sua cabeça sempre vinha à lembrança de uma vez que estava tirando leite de uma vaca e uma pomba deu a maior cagada na sua cabeça. Mas o instrutor também falava que o Espírito Santo se apresentou com chamas sobre as cabeças dos seguidores de Cristo. Mas aí já era demais. E não queimava os cabelos? Mas assim foi a sua vida. E até que o dia chegou. Seria ordenado padre com mais uns 40. Naquele tempo chamavam de Seminário. Uns comunistas chamavam de fábrica de padre. Coisas de implicância presente, que iriam se amar no futuro, padres liberais e comunistas avançados. A família toda em festa. Ah!, Fecundina dera à luz a trigêmeos. Vá ser fecunda lá longe.

A primeira paróquia. Quanta esperança, quanta energia. De fato, fora designado para uma paróquia onde o titular, um velho e rabugento Padre Téschio, vivia com seu reumatismo e chás de unha de gato e chapéu de couro. A vida na paróquia resumia-se na realidade em uma constante mesmice. Missas todos os domingos, novenas e a reza do terço todas as tardes. A casa paroquial era cuidada pelas filhas das devotas matronas, que lavavam as roupas, cuidavam da alimentação, agora dos dois padres, assim como limpar e varrer a igreja, colocar flores nos altares, arrumar as camas. As camas. E aí então começa outra história, a que levou o Padre Primo à loucura.

Uma manhã friorenta, depois de rezado o oficio junto com o Padre Téschio, resolveu vestir uma blusa de lã tricotada pela saudosa mãe. Dirigiu-se ao seu quarto e quanto lá entrou o que viu? Uma das moças dedicadas à limpeza da casa paroquial estava deitada debruçada sobre a cama, com a saia levantada que permitia antever as coxas e quase as suas partes pudendas. Dormia um sono imaginário, quem sabe recheado de sonhos românticos. Não se permitia sonhar com algo pecaminoso. O padre Primo assustou-se com o que viu. Uma mulher na sua cama! E ainda por cima com as vergonhas quase aparecendo. Que susto, que vontade de..., mas e o Padre Téschio? E o pecado mortal? Quando estava para sair do quarto, a moça como que percebendo da presença de alguém, virou-se assustada e surpresa. Deparou-se com o jovem religioso, que mais assustado ainda, gaguejava algo incompreensível, como um pedido de desculpas ou algo assim. Apanhou a sua blusa, que a estas horas a vestia pelo avesso de tão atrapalhado e ficara.

No decorrer dos meses fora se acostumando com a presença recatada das dedicadas moçoilas, com suas saias abaixo dos joelhos, sem nenhum tipo de pintura, cabelos com fitas branca e azul, meias brancas meia canela e sapatos pretos. Coisas do padre Téschio. Aos poucos foi tomando gosto pela coisa. Uma das suas primeiras atividades foi com os jovens. Aconselhava-os sobre vários assuntos, como buscar uma nova vida, profissões, estudos, namoros, noivados e até casamentos. Promovia festas das padroeiras, novenas, e todas as semanas visitas as casas, levando a imagem de Nossa Senhora, onde rezava o terço e depois era aquela polenta com salame, queijo, "radicchi", vinho da casa e uma boa graspa. O jantar sempre acompanhado de cantorias da velha Itália, como: "Pater nostro pichinin, / Dala vera e dal dentin / Garesse visto me fiolo? / Lo go sentisto là / Su la piareta rossa / Che cantava messa? Par i vivi e par i morti / Par i santi, pater nostre / Par la luna e par el sole / La Madona senta dó / Che vardava su e dò / La vedea i angelin / Che rubava pan e vin / Maria meschina non stà ver paura / Ch' anderemo su queia pi scura / Che no canta ne galo ne galeto / Solo quel oseleto dela pena bruna" .

E então, como diz o ditado popular, a carne é fraca. Se bem que o espírito naquele momento não foi forte suficiente para segurar a tentação. Na flor dos seus 25 anos, alto, musculoso, queixo quadrado, cabelos negros ondulados, dentes brancos, braços longos cabeludos e fortes, mãos suaves e delicadas, isto tudo era o que ela contava dele. Não sou eu que estou predicando-o. Cabelos suaves, rosto angelical, lábios carnudos, seios fartos, cintura fina, anca larga, pernas altas e torneadas, olhos incrivelmente verdes. Uma tentação. Também não sou eu que estou predicando-a. Na volta de uma destas missões junto aos jovens na velha pick-up Wyllis, que ao passar sobre uma ponte, quebrou a ponta de eixo. Noite alta. Distante da casa onde estiveram e distante mais ainda da cidade. Solução? Dormir na pick-up. Noite fria, céu risonho, a poesia é quase um sonho... e não foi possível resistir. Um não disse não. O outro não disse também não. A somatória dos dois não foi sim. E pronto. Amaram-se como velhos amantes. Amaram-se como jovens sedentos de um pelo outro. Amaram-se tanto que não viram a noite passar. E nem quem por ali passasse não enxergaria nada. Vidros embaçados não permitiam ver dois jovens apertados, abraçados, suados, amados, realizados e caídos em pecado.

Pediu dispensa das funções de padre. Deixou meia paróquia de boca aberta. O padre Téschio foi chamado à Cúria Regional para explicações. Como bom italiano respondeu ao sisudo bispo: "No vanza carne in becaria. Che cane o gato la strassina via" . Aos poucos as coisas foram se acomodando. Nasceu então o fruto do amor religioso com a devota. Uma bela criança. Os sogros até então não queriam nem ver a filha. Fora morar com o ex-padre (?), o qual recebeu todo o apoio da comunidade. Era de fato querido, carismático, sensível e um líder nato. Exercia um fascínio incrível com os mais idosos e com a juventude. Uma manhã foi chamado à casa de uma velhinha, que estava se recuperando de uma operação. Lá chegando a velhinha toda solícita o recebeu e lhe ofereceu um café . E lhe perguntou então: O senhor quer "pon" com banha e sal? Non, respondeu o visitante. E "pon" com mel? Também "non". E "pon" com puína? Também "non". Ma Dio Cristo, o que tu qué enton? Eu quero pon sozinho. Traduzindo, pão sem nada, somente pão. Assim era a sua simplicidade.

E os anos passaram e ele foi sendo cada vez mais absorvido pela comunidade. Arrendou umas terras, plantou soja, plantou trigo, engordou bois, porcos, criou ovelhas. Comprou a terra arrendada. A mulher agora já em paz com os pais. Os sogros já aceitavam o então genro religioso. E assim caminhavam as coisas. Festa de aniversário do sogro. Família reunida. Cunhados, cunhadas, toda a parentagem reunida. Ele todo orgulhoso. Ela já com sete meses de gravidez. Barrigão exposto. Linda que só ela. E então todo solene o sogro, após uns copos de vinho, lhe pergunta: "E então, quando é que você vai casar com a milha filha?" Silêncio total. Até se escutava uma mosca voando. Vermelho, olhou para a mulher, para a barriga da mulher. Tomou um, dois, três goles de vinho e respondeu: "Acontece que o Papa ainda não me dispensou dos votos de padre". Silêncio maior ainda. O velho sogro não perdeu a compostura e pigarreou uma vez, mais outra e arremeteu: "Mas para fazer filho na minha filha o Papa lhe dispensou?". Foram segundos eternos de silêncio e minutos mais que eternos de risadas. E assim ele vivia.

Até que um dia ele enfermo, ou melhor, se recuperando de um acidente, me chamou para conversar um pouco. E lhe perguntei como estava a situação. Morava em um quarto de hotel, em cima de uma rodoviária do interior. A mulher e as crianças com os sogros. Resolvida a questão. Aluguei um apartamento. Comprei todos os móveis. Comprei roupa de cama, toalhas, pratos, geladeira, jogo de sala, enfim, mobiliei todo o apartamento. Pedi ao meu motorista que fosse buscar e ex-padre,a esposa e as crianças. Encontramos-nos no hotel (muquifa). Olhares que eram uma interrogação só. Entramos na camioneta e fomos. Para onde? Espera um pouco. Subimos dois lances de escada. Abri a porta, fiz com que entrassem. Ela pasma. Ele mais ainda. Quando estavam já na sala de estar, eu simplesmente fui saindo de mansinho. E antes de sair, gritei: "Felicidade, vocês merecem. Ah! As notas dos móveis estão em cima da mesa de jantar".

E vocês são felizes até hoje, não são?

Pensou que eu ia contar o seu nome, não é?

Vocês moram no meu coração eternamente.

ROMÃO MIRANDA VIDAL
Enviado por ROMÃO MIRANDA VIDAL em 04/05/2007
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