UM DIA, UM CONTO
— Você não está escrevendo tão bem, ultimamente. Está cansado. Precisa de umas férias.
— Escrevo como sempre escrevi. Você é que está ficando mais exigente. Por acaso a venda dos meus livros está caindo?
— Você não entende de marketing. Deixe isso por minha conta. O que estou tentando dizer é que você deve ficar mais atual, escrever mais sobre fatos de hoje, dos nossos tempos. Deixe um pouco suas reminiscências de lado. Veja quanta coisa está acontecendo na política, no mundo das ciências. São coisas que merecem ser registradas literariamente. E você tem o estilo certo para tratar desses assuntos. Seus contos são vendáveis, mas você precisa dar mais atenção aos tempos atuais.
Dênis Guimarães sentia-se à vontade no escritório do seu editor. Há mais de dez anos seus livros são editados por Edmar Chiarello e exigências descabidas, como essa de atualizar os temas de seus contos, aconteciam constantemente.
— Se for escrever sobre os temas muito atuais corro o risco de produzir contos fedorentos e repugnantes.
— Como assim?
— Do tipo dos escritos por Rubem Fonseca no seu último livro “Excrementos, Secreções e Desatinos”.
— É isso mesmo. Está na hora de você se atrever, escrever sobre o insólito, surpreender o leitor.
— Olha, Edmar, vou continuar escrevendo meus contos singelos. Quando não tiver mais leitores, você deixa de editar. Tenho centenas de trabalhos que não foram publicados e continuarei escrevendo assim. Como gosto, a meu modo.
A conversa continuou por aí. Quando saiu do escritório, a manhã já se fora, não havia mais tempo para sentar-se ao computador e escrever o conto do dia.
Dênis gosta de rememorar. Sua literatura constitui-se quase que totalmente de contos que lembram sua infância, meninice e juventude. Lembra-se de seus primeiros escritos, as composições de português, escritas nas classes da escola primária, sobre temas propostos pela gentil mestra dona Amélia. As anotações “Muito bom!” ou “Excelente”, mais as palavras animadoras da professora levaram-no a escrever em casa e sobre outros assuntos além daquelas idéias singelas sugeridas em classe. Gostava de anotar diálogos, palavras pitorescas, expressões dos velhos italianos que freqüentavam a casa do avô Genaro Colascarpe. Inseria tudo nos seus trabalhos, que iam tomando feições de contos, com personagens de sua imaginação substituindo as pessoas reais.
— Dênis, sai um pouco dessa escrivaninha, vai brincar lá fora. — Sua mãe espantava-o todos os dias, na hora de fazer a limpeza de seu quarto. Ele saía, sim, mas ia com um livro debaixo do braço. Sob a imensa e sombria copa da jabuticabeira, lia com avidez o volume mais recente, tomado por empréstimo da biblioteca escolar.
— Você precisa melhorar suas notas de matemática, Dênis. — A recomendação era de dona Amélia. — Vou lhe dar aulas de reforço. — Inutilmente. Detestava contas, aritmética, frações. Aprendia o suficiente para passar de ano.
— Está bom, bem escrito. Mas não dá pra publicar, não, mocinho. — Foi a resposta do Aníbal Ribeiro, dono da única tipografia da cidade e diretor do jornal “Nossa Terra”, que saía aos domingos. Dênis tinha entregue ao jornalista um caderno com uma novela completa, de aventuras nas selvas da Amazônia.
— Por quê?
— É porque, meu querido escritorzinho, você escreve sobre caçadas de tigres na floresta amazônica e lá não existem tigres. O máximo que tem por lá são as onças, e não tem caçador inglês interessado em exterminar nossas onças. Mesmo porque elas vivem sem perturbar ninguém, embrenhadas nas selvas.
Foi a primeira decepção literária da sua vida. Outras vieram. Quando teve de ganhar a vida, por necessidade, deixou de escrever. Ao voltar, aposentado, à redação de pequenos escritos, não usou a caneta ou o lápis nem a máquina de escrever, que usara por muitos anos no escritório. Entrou direto na era da eletrônica e o computador facilitou de verdade sua atividade literária.
No cinema, à tarde, deliciou-se com a história de William Forrester, escritor que ficou famoso com apenas um livro, ganhando o Prêmio Pulitzer. Pura ficção, claro. A interpretação magnífica de Sean Connery dá uma dimensão de gigante ao personagem, que se fechou num apartamento do Bronx e permaneceu escrevendo apenas para sua própria satisfação. Riu demais na parte em que Forrester debocha dos críticos literários, completamente dispensáveis. Inúteis e, muitas vezes, nocivos. Fazendo o jogo de editores e escritores famosos.
Sai pensativo do cinema. É preciso muita personalidade para sonegar ao mundo tamanho talento. O que se vê, ultimamente, é justamente o contrário: a falta de talento se exibindo sob os mais vistosos disfarces e usando de todos os meios para vender, vender, vender.
Ao chegar ao apartamento, de volta da rua, pretendia sentar-se na frente do computador e escrever algumas páginas do conto do dia. A mulher o esperava assistindo à televisão. Deixou-se seduzir pelas notícias de Brasília que davam conta do mais recente escândalo político: a violação do painel de votação do senado federal.
— O ACM está chiando e o Arruda está chorando. Coitadinhos, que pena dos dois. — O comentário irônico de Arlete desperta sua atenção. Deixa-se ficar. Pensa em como poderia escrever um conto sobre tanta sujeira, sacanagem, politicagem, bandalheira, enfim. Não, não era sua seara, jamais escreveria sobre políticos e a política. Principalmente do que acontecia em Brasília.
Deixou a televisão e foi aprontar-se para a entrevista marcada para aquela noite.
— Sou um grande pecador, meu pecado é a gula. Gula literária. Leio tudo o que me cai sob os olhos, desde os jornais do dia a bulas de remédios, passando por cartapácios, best-sellers e releitura de clássicos. — A confissão viera espontânea, numa entrevista do tipo mesa-redonda em programa de televisão. — Como escritor, também sou guloso. Quero escrever, escrever sem parar. Quando começo, é difícil abandonar o computador. Sou viciado, totalmente dependente de ler e escrever.
— O senhor é metódico, tem horário certo para escrever?
— Não, não tenho método nenhum. Os horários que tenho são impostos pelas necessidades fisiológicas, sociais e econômicas.
— E como faz para equilibrar essa gula de escrever com seu relacionamento familiar?
— Minha mulher me entende, me deixa à vontade e geralmente entro pelas madrugadas escrevendo. Devido a essa compreensão é que estamos casados há cinqüenta anos.
Ao sair do gigantesco edifício que ocupava todo o quarteirão no centro da cidade, algumas pessoas o esperavam para autógrafos, um bate-papo, essas coisas do mundo literário. Acedeu com prazer aos pedidos, que não lhe tomaram muito tempo. Os leitores de contos são poucos e sinceros, não se deixam influenciar por modismos nem por críticos. Aliás, poucos críticos dedicavam atenção a autores de contos, o que, para Dênis Guimarães, era ótimo.
Estava exausto ao apertar o botão do elevador, de volta ao lar. Que dia cheio! O que mais incomodava Dênis eram os momentos de esperas. Fila do cinema. Aguardar o momento de “entrar no ar”, no estúdio da TV. Alta ansiedade. Espera do elevador. Somados todos os momentos perdidos em esperar, a gente percebe quanto tempo perde todos os dias.
— Querido, tem alguns recados na secretária eletrônica para você. — Arlete espera-o acordada, embora seja mais de meia noite. — Se quiser, preparo um chá.
— Quero sim. — Vai ouvir os recados no aparelhinho eletrônico.
Depois do chá, Arlete vai para o quarto. Dênis ainda quer escrever. Vai para o escritório que é ao mesmo tempo biblioteca. As quatro paredes forradas de estantes repletas de livros. Senta-se defronte ao computador, executa a rotina de entrada no programa de digitação, espera a tela se iluminar e apresentar a página em branco.
Esfrega as mãos no rosto, num gesto de quem se refaz da lassidão e do cansaço. Pensa. Que vou escrever? Estou completamente sem inspiração. Lembra-se do filme que vira no cinema do shopping center. “Encontrando Ferrester”. Recorda dos detalhes. O pensamento vai para Edmar Chiarello, seu editor. Lembra-se do pedido. Para escrever sobre temas atuais. Pois sim! Temas atuais. Mas, por que não? Decidido, começa a digitar:
“— Você não está escrevendo tão bem, ultimamente. Está cansado. Precisa de umas férias.”
ANTONIO ROQUE GOBBO –
Belo Horizonte, 3 de maio de 2001.
Conto # 89 da Série Milistórias .