Berlim

É inverno. As botas fazem barulho quando afundam na neve, como se estivessem quebrando um infinito de partículas de vidro debaixo das minhas solas de borracha. O vento bate nos casacos e atravessa as calças finas. Bagunça os cabelos e os deixa ruins, com as pontas ressecadas e arrepiadas. Eu sei que eu vou voltar pra casa com uma cor de cabelo diferente. Não sei se gosto disso.

A água do Rio Spree começou a congelar. Os prédios que vejo daqui, da ponte da Friedrichstrasse, ficam meio brancos, junto com a neve e a leve nebrina. Lá no fundo, eu sei que conseguiria ver a torre de TV se o tempo estivesse melhor. Pra mim, toda a orientação pela cidade é segundo a Alexanderplatz. Se eu não consigo vê-la, eu não sei onde estou direito.

Eu sigo em frente, até chegar na estação do S. Está muito frio, e eu vejo as pessoas andando encolhidas. Eu mesma estou com metade do meu rosto coberto por aquele cachecol alemão esquisito, que, ultimamente, é a peça de roupa que me mantém aquecida. Sem falar da cor. Um verde meio cinza, meio azul. Um terror.

Mas, pela primeira vez em anos, eu não me preocupo se minhas roupas combinam inteiramente ou não. E eu gosto disso, mais do que a cor estragada do meu cabelo.

Eu me perdi muitas vezes no metrô de Berlim antes de me achar e não precisar verificar quatro vezes o mapa antes de embarcar. Eu sento num banco e olho a placa que informa quando o trem chegará.

Tenho cinco minutos.

Encarando aquelas paredes semi-transparentes da estação, só consigo pensar no quanto eu sinto falta de São Paulo.

Não me leve a mal, não há nada de errado com a Alemanha, ou com os alemães. Muito pelo contrário. Eu sinto falta aqui de coisas que eu nunca teria em casa.

Quando o trem chega, eu lembro que, por exemplo, sinto falta do aperto dos trens e do atraso. Sinto falta do calor ao entrar na composição e das pessoas me olhando feio porque eu levo uma mochila nas costas.

Eu olhei bem para o trem alemão e decidi que não era bem isso que eu queria fazer. Eu não queria ir agora para casa, por mais que eu estivesse congelando.

Saí na neve de novo. E andei. Sempre que sentava na cama no final do dia, meus pés doíam. Eu mal conseguia encostá-los no piso de madeira ao acordar.

Eu andava muito. Andava. Andava. Eu continuei na Friedrichstrasse até dobrar a Unter den Linden. E continuei. Fiquei imaginando como seria aquela cidade na primavera, quando as árvores que davam o nome à avenida ficavam floridas e bonitas, e não apenas esqueletos escuros com pitadas de branco aonde deveria bater o sol.

Andei mais. Eu sempre andava na Unter den Linden com o pescoço esticado, pra ver desde onde eu conseguia ver o Portão de Brandemburgo. Ele começa a ser meio entediante depois da segunda vez que você o vê. Eu gosto de atravessá-lo, por algum motivo que ainda não compreendi muito bem. Eu o olho por longos minutos enquanto me aproximo. Aquelas figuras verdes ficam mais e mais perto, e as colunas ficam cada vez maiores, até que eu perco a escala diante dele. Conto pelo menos quarenta turistas tirando foto com aqueles casacos que parecem sacos, e dou risada comigo. As pessoas ganharam um costume muito estranho de memorizar o mundo através de lentes de uma câmera fotográfica - ou, o que é pior, através de um celular. É meio esquisito fazer isso quando temos 5 sentidos para conhecer o mundo, e não precisamos de uma invenção humana para fazê-lo, necessariamente. Eu sei exatamente que cor o Portão de Brandemburgo tem, e como as minhas mãos são pequeninas perto dele.

Não foi ele que vim ver, por isso passo direto e viro à direita.

Logo que você passa o Portão de Brandemburgo, o Tiergarten se estende infinito a sua frente. Um dia eu fiz a besteira de tentar atravessá-lo a pé. Foi bem difícil de acordar no dia seguinte e pisar no chão. As árvores do Tiergarten no inverno não são um conjunto assustador - é até agradável de encará-las sem folhas daquele jeito. Obviamente eu não sei como elas são com folhas, então acho que me obrigo a achá-las agradáveis.

Suspiro quando o avisto. Tenho um lugar preferido em Berlim, e ele é bem específico. Eu tento não olhar o prédio até chegar naquele ponto específico, então, finjo que uso aquelas viseiras de cavalo e que não tenho visão periférica. A tentação é grande, mas não o faço. Não até chegar ali.

Começo a pisar aonde sei que é grama, mas que agora está completamente encoberta pela neve. Ando mais, até achar aquele ponto bem no meio do gramado, de onde sei que terei uma visão estonteante.

É na mesma direção que algumas árvores no gramado, mas mais pro meio. Viro a cabeça quando junto meus pés ali. Prendo a respiração.

O Reichstag é alguma coisa entre o assustador e o deslumbrante. Um lugar ali bem no meio, que te faz ficar calado, mas com o grito na garganta. Suspiro e me deixo admirar por vários minutos, em pé. Cinco bandeiras da Alemanha e duas da União Européia é o que eu consigo ver de primeira, mas eu sei que há mais duas bandeiras nos fundos, porque eu já rodei o edifício pelo menos duas vezes desde que chegara a Berlim. Eu só conseguia encarar e encarar. Queria me deixar cair ali, como se minhas pernas tivessem cedido ao meu peso e ficar admirando para sempre.

Eu não entendia muito bem como tudo aquilo funcionava. Eu não sabia nem o que eu precisava entender exatamente. Na fachada está escrito "ao povo alemão", mas eu acho tudo aquilo um ultraje. Deveria estar escrito "ao povo da Terra". Eu me sentia estranhamente familiarizada com aquele monte de pedras. E ele queria me fazer sair correndo ao mesmo tempo. Era tão grande. Olhando para ele eu não precisava fingir que não tinha visão periférica: eu simplesmente a perdi. Ele preenchia toda a minha visão. E eu não me sentia vazia.

Céus, era só pra ser um prédio. Mas não era. Eram os meus olhos... E eu não podia me livrar deles.

Antes de mais nada eu queria deixar uma questão clara: Berlim não é igual ao Reichstag nesse sentido. Não era bonita, não era saudável, não te deixava de joelhos. A verdade é que, muitas vezes, eu quase não sentia saudades de casa.

Comparar Berlim a São Paulo parece um crime dos mais hediondos, mas, acredite em mim, não é. São Paulo é fétida, encardida e imunda. São Paulo é aquelas prostitutas da República, tão jovens e cansadas da vida, imundas e que perderam o brilho nos olhos. Sem um pedaço do dignidade restante. De um daqueles buracos sujos perto da estação do metrô mesmo, que você não consegue andar sem olhar paranoico para trás a cada dez segundos. Aí, você olha a sua direita e tem o Copan. E tá tudo tão feio e cinza e você não sabe onde está. São Paulo tem um ar sufocante, você está em lugar nenhum e em todos os lugares ao mesmo tempo. São Paulo é horrível, mas cada um dos vinte milhões de habitantes, nascidos em meio a sujeira ou não, se sente parte do Rio Tietê. E todos nós convivemos com palavras indígenas, espanholas e metade do vocabulário é em italiano, como se fosse normal. E ser paulistano significa tanta coisa e significa nada ao mesmo tempo.

Eu conheci pouquíssimos berlinenses. Não que eu não tenha conversado com ninguém, é que muitos deles eram de outros lugares. Ser berlinense parece que é ser de metade do mundo também. Eu sentia que eles todos eram tão sujos quanto eu. Eles tinham uma imundice quase tão honesta quanto a minha. Não vou comparar o Spree ao Tietê. No meu rio nós navegamos de carro, de olhos fechados e narizes tampados. Vi mais Renaut na rua que Volkswagen. As Mercedes eram dos taxistas. E tudo ali parecia tão... Estrangeiro.

É mentira se você disser que as diferenças moram no povo. Eu dizia que sentia falta do povo brasileiro, que nós sorríamos mais. Mas é mentira. Conte quantos sorrisos você vê no metrô de São Paulo e veremos quem é mais germânico: os paulistanos ou os berlinenses. A melancolia e a angústia que nós compartilhamos é quase umbilical entre nós: eu achei engraçado o quanto somos parecidos na fachada. A diferença está mesmo quando você tenta falar com um alemão: eles são tão simpáticos. Paulistanos são mesquinhos e nojentos, como se quiséssemos ser uma prostituta de alto nível. "Nós temos dinheiro". Claro, nos vendemos o dia inteiro e fazemos hora extra quando acaba o expediente.

Berlim é feia. Sabe aquele ditado brasileiro "pra inglês ver"? Pois é, os alemães com sua eficiência fizeram isso tão bem. E no pedaço que tem o muro? Eu me senti tão em São Paulo. Tão absolutamente em São Paulo. Acho que só quem andou a pé no Morumbi consegue entender o que eu estou dizendo. Em Berlim você ta andando e, de repente, fica vazio. Tem um terreno gigantesco do nada, e você consegue enxergar a quadra seguinte. Igual ao Jardim Europa, mas bem mais digno.

Eu não consegui evitar olhar por cima do ombro por tantas vezes. E Berlim é tão pichada. Berlim é tão quieta. Berlim parece que quer te trair. Berlim tem tanta história pra contar, mas ninguém quer escutar. Berlim grita e é silenciada. Berlim é um bêbado prussiano na calçada, esperando o próximo litro de cerveja semi-acordado. Berlim fede a óleo no inverno. Berlim é gelada e não te acolhe: parece que ela te expulsa. Berlim é tão criminosa e é tão repleta de culpa por todos os cantos... Como se os europeus falando francês, do outro lado, fossemos tão inocentes. Como se só Berlim tivesse derramado sangue. Berlim é uma merda. Berlim... Eu queria não amar a Berlim turística e poder andar na Berlim de verdade sem ver São Paulo me encarando ali, parada, me chamando para caminhar pelo Largo São Bento sem olhar pro topo dos prédios. Sem procurar a Sé por entre as vielas lotadas de gente cansada. Eu não capturei Berlim, e eu tenho medo de ela se perder em um dos congestionamentos que eu pegar em São Paulo.

São Paulo é uma prostituta suja e nova. Ela tem muito o que aprender com Berlim.

Débora Dias
Enviado por Débora Dias em 23/03/2014
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