TR~ES CORTES DE CASEMIRA
— É, seu Randolfo, o senhor tem de parar de trabalhar. Seu coração não agüenta tanto esforço.
— Como, doutor? Não posso fechar minha alfaiataria assim de uma hora pra outra. Se eu ficar à-toa, aí sim, é morte na certa.
Seu Randolfo estava certo, tão certo como o conselho de seu médico. O coração estava fraco, não agüentava tanto esforço. A alfaiataria era grande. Randolfo Giardini tinha dezoito empregados, pessoas que não podiam ser despedidas assim de uma hora para outra. Sem falar na clientela, constituída pelos homens mais elegantes da capital, que faziam questão de serem atendidos pelo famoso e caprichoso mestre da agulha e da tesoura.
— Bem, se não pode parar, o jeito é diminuir um pouco sua atividade. O senhor é quem decide. Quem sabe, alguns meses de descanso, de repouso em uma dessas cidades do sul de Minas?
O alfaiate ponderou os prós e os contras. Estava com quarenta e nove anos, a família criada. Atualmente, apenas ele e a esposa Berenice viviam na grande casa que ele construíra na década de 30. O casal, de hábitos simples, não tinha grandes gastos. Nem grandes pretensões.
Agora, aposentar, nem pensar! — Era um tempo em que a aposentadoria funcionava como uma sentença de morte para as pessoas.
Embora contrariado, Randolfo moderou sua atividade. Após algumas semanas numa estação de águas, voltou decidido. Negociou, com seus próprios empregados, o ponto e as instalações de sua magnífica alfaiataria, num negócio de pai para filhos. Conservou para si apenas três máquinas de costura, um balcão, e alguns armários. Sua casa assobradada foi adaptada para abrigar, nas duas salas do térreo, uma pequena oficina, onde ele e mais dois ajudantes prosseguiram atendendo alguns clientes que haviam se tornado amigos especiais.
Assim, atendo a recomendação do médico e permaneço na ativa. Sem muita responsabilidade, trabalho quando e como quero.
A idéia vingou e Randolfo já estava há alguns anos na nova rotina de moderação, quando um incidente veio agitar o tranqüilo lago, que era sua vida.
Aconteceu certa manhã, quando, ao descer do segundo pavimento, abrindo a alfaiataria, notou algo estranho na sala principal.
— Geraldo, você viu que algumas coisas estão fora do lugar?
— Vi não senhor. — O ajudante de confiança não tinha o olhar arguto do dono do negócio. — Por que o senhor tá perguntando?
— Olha, a tesoura grande está em cima do balcão. Tenho o cuidado de guardá-la todas as tardes naquela gaveta grande. A sua máquina também está com as gavetas abertas, notou? Aquele armário está destrancado, veja.
— Ih! Agora que o senhor falou, tou reparando sim. Será possível que eu esqueci de fechar as gavetinhas?
— Acho que teve ladrão aqui, esta noite. Vamos verificar tudo.
Laudelino, o outro oficial da alfaiataria chegou e foi logo colocado a par das desconfianças do sr. Giardini.
Procura daqui, procura dali, verificaram que três cortes de casimira haviam sumido do armário onde eram guardados os tecidos para confeccionar os ternos.
— Que maçada! Justamente tecidos de clientes para os quais tenho de fazer os ternos. Eles haviam me entregue na semana passada e já tinha até tirado as medidas.
Randolfo aborreceu-se demais. Ficou preocupado. Como é que vou sair desta? Se falo com os clientes que os cortes foram roubados, perco a confiança. Se não falo... Não sei, não sei. Comprar outros cortes, nem pensar, não sei onde foram adquiridos. Eram cortes de casimira importada, nem sei se encontro coisa igual nas lojas da cidade.
A desconfiança também achou seu lugar e instalou-se na cabeça do alfaiate. E se foi serviço de um de meus empregados? Não havia sinal de arrombamento, as portas estavam fechadas. Nada quebrado. Nada ouvi durante a noite. Tenho o sono leve, qualquer barulho na rua me acorda. Esta noite nada escutei de anormal.
Ocorreu-lhe dar parte na delegacia de polícia, pensamento que logo abandonou. De nada adianta. Eles vêm aqui com mil perguntas, tomam nota e não descobrem o ladrão. Fica tudo na mesma.
Muito chateado e sem saber o que fazer, avisa aos empregados:
— Vou dar uma volta, refrescar a cabeça.
Sai no rumo do nariz. Desce na direção do centro da cidade, mas em seguida pára num ponto do bonde. Tomo o primeiro que passar.
Passa o “Centro-Concórdia”. Giardini sobe, senta-se no banco e procura esquecer, por alguns momentos, a situação embaraçosa em que se encontra. Distrai-se vendo o movimento da rua, os pedestres, observando as frondosas árvores e examinando, como se pela primeira vez, a decadência dos edifícios, manchados pela poeira de muitos anos, pela ação do sol e da chuva.
Após muitos quarteirões, dá-se conta de que passa por lugar conhecido. — Opa! Mas estou na rua onde mora o compadre Leôncio. — Lembra-se do velho amigo, que fora seu empregado e tinha se estabelecido com uma pequena alfaiataria naquela rua. — Vou ver como é que ele está passando.
Desce do bonde nas proximidades da casa de Leôncio. É quase o fim da linha, as casas estão intercaladas por terrenos baldios, entulhados de lixo, o mato alto avançando pelas calçadas e chegando até à rua.
Encontra o compadre debruçado sobre a máquina de costura, que pedala com a rapidez adquirida após muitos anos de experiência. É recebido com alegria. Continuam amigos, mas mesmo assim, Giardini reluta em contar a Leandro o furto na sua alfaiataria.
— Compadre, está na hora do almoço. Vamos lá pra dentro, que onde comem três, comem quatro. — Leandro não espera a resposta de Giardini e já vai fechando a única porta de seu estabelecimento.
Giardini aceita o convite. Dona Laura sente-se satisfeita em receber o compadre, que há tantos anos não via. Claudionor, filho do casal, chega da rua. Cumprimenta com respeito o padrinho e todos se sentam à mesa. A conversa continua enquanto comem, e finalmente Randolfo conta para o casal o seu aborrecimento.
— O pior, compadre, é que estou sem jeito de falar com os clientes. São ótimas pessoas, mas tenho certeza de que minha freguesia vai ficar sabendo e desaparecer.
Leandro pede detalhes dos cortes. Depois, chama Claudionor de lado e lhe dá alguma instrução. Quando o rapaz sai, Leandro lhe explica.
— Claudionor me disse hoje cedinho que tinha visto uns retalhos, panos, sei lá o quê, abandonados num terreno aqui perto. Quando ele me disse, falei com ele: Deixa isso pra lá, pode ser mandinga, coisa feita. Me promete que não volta lá. Mas agora que o compadre me contou essa história, mandei o garoto de volta no terreno, quem sabe tem alguma coisa a ver com seus cortes de casimira.
Apenas tinha terminado de falar, o esperto moleque chega, trazendo uma braçada de tecido de diversas cores. Giardini dá um salto da cadeira. Reconhece imediatamente os cortes de casimira furtados de sua alfaiataria.
ANTONIO ROQUE GOBBO–
Conto # 82 da Série Milistórias
Belo Horizonte, 21-março-2001