ENTARDECER

Cansado, Luís abre a porta do apartamento, entra e senta-se no sofá da sala. Tira o paletó, afrouxa a gravata e descalça os sapatos.

Como faz todas as tardes, liga a televisão, ao mesmo tempo em que grita para o interior do apartamento, sem se dirigir especificamente a ninguém.

— Tem alguém em casa?

Ninguém responde, mas ele sabe que tanto Marta , a mulher, quanto Carminha, a filha, estão no apartamento. Procura, com o controle remoto, um programa, passando por meia dúzia de canais antes de se fixar em um. No canal Discovery está sendo exibido, pela enésima vez, um documentário sobre o Grand Canyon, que Luís já viu, mas deixa ficar.

— Pombas, não tem nada que preste neste horário. — Fala consigo mesmo, aborrecido e exausto demais para ficar procurando outro canal.

O sol entra na sala, tangenciando pela janela e infiltrando-se pelas cortinas: intensos tons alaranjados iluminam o ambiente. Há uma nostalgia no ar, que Luís, os olhos presos à tela da televisão, não percebe.

Levanta-se e dirige-se à cozinha, na busca de uma cerveja na geladeira. Esbarra com Marta .

— Oi, querida! — Trocam beijinhos ligeiros nas faces.

— Oi, amor! Tudo bem? Estou preparando uns sanduíches, logo ficam prontos.

— Vou esperar na sala. — Luís abre a geladeira, retira uma Summerdraft¸ que abre sem esforço e toma um longo gole na boca da garrafa.

— Oi, pai! — Carminha chega, não beija nem toca no pai. Luís não se incomoda, mas Marta percebe a frieza do cumprimento. Esfuziante e alegre, a jovem morena também procura na geladeira e acha uma lata de Coca Light. — E o lanche, tá pronto?

— Já-já. Espera só um momento. — Marta roça seu corpo nos braços do marido e nas ancas da filha, que a cozinha é diminuta e nela mal cabe uma pessoa. O instantâneo contato dos corpos não é agradável a nenhum deles. Luís volta para a sala e Carminha para seu quarto.

Enquanto corta fatias de pepino e tomate, ajeitando-as sobre o pão, Marta ouve os ruídos do apartamento: os sons de televisão, as vozes distorcidas das dublagens mal feitas, vêm da sala e do quarto de Carminha, que tem seu próprio aparelho.

As luzes da tarde cambiam para tons violáceos, pois o dia se entrega à noite. Uma onda de nostalgia toma conta de Marta. Lembranças soltas e pensamentos fugidios vagueiam por sua cabeça. Pensa em Luís, que se mostra mais distraído e cansado a cada dia que passa.

— Se não me aposentar, tenho de tirar uma licença de pelo menos uns três meses para descansar. — Luís está estressado e sabe disso.

Está com a firme intenção de se aposentar, sim. Tem 54 anos e no próximo ano completará trinta anos de trabalho, com carteira assinada e contribuições em dia. Não pretende trabalhar nem um dia a mais que o necessário.

Marta pensa na mudança pela qual Luís tem passado nos últimos anos. Ficou completamente desinteressado pela família, por distrações e pela sua própria vida. Com Marta só troca cumprimentos formais, perdeu o tesão, não a beija com amor nem a procura mais para usufruírem momentos de amor a dois. Só sabe trabalhar, oito horas por dias, cinco dias por semana, e quando chega em casa, liga a TV, devora automaticamente os sanduíches e bebe duas ou três cervejas todas as noites. Permanece sentado no sofá, defronte da tela, até a hora de ir para a cama.

Onde está o homem alegre, sensível, sedutor e elegante, gentil, com o qual me casei? Agora é este robô, que fica aí, em frente à televisão, assistindo a tudo quanto é porcaria de programa: novelas idiotas, noticiários de violência, programas de entrevistas de baixo nível, coisas assim.

A filha freqüenta a faculdade, um curso muito fraco. Faz o curso só para constar, para dizer que está estudando.

Na verdade, nem ela mesma sabe pra que serve o curso de letras. Estuda para não ficar à toa. Diz que vai ser professora de inglês, após se formar. Que tipo de professora vai ser... nem é bom imaginar!

Carminha também é viciada na televisão, passa as tardes trancadas no quarto, vendo e copiando todos os modismos, trejeitos e maneiras de falar dos artistas e apresentadores de programas medíocres. Uma corja de lindos mal-educados que influenciam não só minha filha, mas todas as gerações de jovens, adolescentes e crianças. De noite, sai com as amigas e os colegas de faculdade, vão para espeluncas tomar refrigerantes ou aos cinemas, ver filmes de categoria duvidosa.

A tarde se alonga devido ao horário de verão. Nenhuma nuvem no céu que, pelo lado oriental, já está escuro.

Marta se demora na feitura dos sanduíches. Encontra uma satisfação mórbida em examinar a estreiteza de sua vida atual, a rotina devorando todos os seus momentos. Tenho de encontrar uma maneira de me libertar. Se ficar encerrada neste apartamento, acabo louca.

Claro que nem sempre foi assim. Este sufoco se limita aos últimos anos. Marta foi — e continua sendo — uma pessoa interessante. Elegante e bonita, havia até concorrido ao concurso de Miss Cidade 1958 e chegado ao desfile final, só perdendo para Verinha Drumond por questão de um centímetro nas medidas. Lecionou e foi secretária da própria escola onde se formara. Ao se casar, continuou trabalhando até que aconteceu a primeira gravidez e teve de deixar o trabalho. Passou a viver em função da família. Teve cinco filhos e virou dona-de-casa.

Nos anos mais recentes, também ela sofrera transformações notáveis. Com os filhos criados (Zé Antonio, formado, mora em Floripa), tem agora bastante tempo livre. Procura preencher suas horas vagas: lê muito, principalmente assuntos da atualidade e romances modernos. Não tem muitas amizades e raramente sai para visitar. O círculo de amizades do marido é restrito e eles não freqüentam nenhum clube, social ou esportivo. Marta, que era uma jovem alegre, vivaz, ligada nos problemas dos filhos, sofre agora de um vazio intenso. Carminha vive com eles, mas é como se vivesse na Lua. Trocam apenas cumprimentos, a moça não fala de sua vida, de seus estudos, de seus amigos. O marido, muito menos. São três mudos. Nem mesmo os programas de televisão, mania do marido e da filha, são objetos de conversas entre eles .

Odeia a televisão, que está lhe roubando o marido e a filha. É o pior dos vícios, que mexe diretamente com as cabeças das pessoas, pois nada exige de quem está assistindo. Lembra-se de ter lido, recentemente, que tanto a televisão como o cinema ativam poucas áreas do cérebro, enquanto a leitura exercita os neurônios e os conserva sempre ativos, jovens. Gosta de política, mas não consegue estabelecer um diálogo com o marido. Com Carminha, nem pensar. A garota responde com monossílabos e palavras de gíria às perguntas da mãe.

Já é noite. Marta acende as luzes da cozinha, da copa. Retorna aos sanduíches.

— Ui! — Marta larga a faca e o pepino meio fatiado, lava na água da torneira o pequeno corte no dedo. — Luís! — Chama o marido, inutilmente: ele está cochilando defronte ao aparelho de tevê.

Vai ao banheiro, encontra um band-aid , ajeita-o sobre o corte. De volta à cozinha, termina o preparo dos sanduíches. Pega os pratos, coloca-os sobre a mesa da copa e chama a filha e o marido. Carminha atende logo, os olhos muito abertos, uma expressão de euforia na face ruborizada.

— O programa tá no finalzinho, não posso perder o desfecho. — Pega o prato com o sanduíche e volta ao quarto. Luís chega com uma expressão de cansaço na face e, tal como a filha, toma o prato e leva-o para comer em frente à televisão.

Pela janela, Marta observa o finalizar do dia. Vênus brilha e as luzes de uma aeronave cortam silenciosamente o azul cor de anil já instalado no céu.

Senta-se sozinha à mesa para o lanche. Enquanto mastiga seu sanduíche, automaticamente e sem saboreá-lo, uma tristeza imensa toma posse de todo seu coração até que uma lágrima solitária desce suavemente por sua face.

ANTONIO ROQUE GOBBO–

Belo Horizonte – 21- março – 2001

Conto # 80 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 21/03/2014
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