SOB AS VELHAS PARREIRAS
As manhãs se prolongam preguiçosamente enquanto o velho italiano permanece sentado, à sombra do caramanchão de parreira. É verão, os dias são quentes desde o amanhecer, mas Giordano Múrcio não se importa com o calor. Fica horas e horas , observando o movimento das pessoas dentro de casa e no quintal. Dormita muito e às vezes fica pensando, recordando.
A sombra é fresca e convida ao repouso. O velho não é incomodado por ninguém. Há constante movimento de pessoas, dentro da casa e pelo quintal. As mulheres fazem a limpeza , trazem tapetes até o quintal para batê-los , em seguida preparam o almoço. São suas duas sobrinhas, Carmina e Mariucha, que atacam com vontade todo o serviço de casa. Estão sempre juntas, conversando, às vezes discutindo sobre assuntos comezinhos. Não sabem trabalhar cada uma por si. Petrarco tem sua oficina nos fundos do quintal, é marceneiro, fica enfurnado o dia inteiro, trabalha com entusiasmo. O quintal é enorme, de tal forma que o barulho da sua atividade não é percebido pelo patriarca.
As meninas de Mariucha estão ocupadas com os deveres da escola. São muito quietas, puxaram ao pai, tranqüilas, de vez em quando aparecem no pátio onde Giordano descansa, para trazer-lhe algo.
— Tio, está na hora do seu remédio. — Anita é a mais gentil, tem nove anos, chega com uma garrafa d’água e um comprimido.
— Ma che remédio! Me porta una garrafa de vino.
— Na hora do almoço, tio. Está muito cedo para tomar vinho.
Sobre a mesinha defronte estão alguns jornais. Anita arreda os papéis para colocar a garrafa e entrega o comprido na mão do tio. Na verdade, do tio-avô, pois o velho é irmão da avó Rosina.
Uma brisa fresca passa por sobre a densa folhagem da parreira. Toma o comprido, afaga o ombro da menina. Está crescendo questa bambina, pensa.
— Onde está Zelinha?
— No quarto, brincando de boneca.
Anita volta pra dentro da casa, ajunta-se à irmã na brincadeira de bonecas. A avó Rosina também está no quarto, sentada na cadeira de balanço, fazendo crochê.
A casa é enorme, salas e quartos grandes. Moram ali, além do velho Giordano, sua irmã Rosina, Carmina e Mariucha, filhas de Rosina, Petrarco, marido de Mariucha, as duas filhas do casal, e Atílio. Carmina e Atílio são filhos de Rosina (que teve nove filhos), permaneceram solteiros e vivem com a mãe e o tio Giordano. E as duas filhas de Mariucha e Petrarco.
O velho Giordano passa as manhãs entre cochilos e leituras de jornais. Com momentos de devaneios e recordações. Seu lugar preferido para as manhãs é naquele canto, onde não atrapalha ninguém e de onde pode observar tudo o que se passa. Aos 88 anos, está lúcido, sabe de tudo, nada lhe escapa à atenção. Durante as refeições, todos falam muito, as notícias e novidades têm livre curso. Após o almoço, o velho cochila na sala de visitas. Ao entardecer, antes do jantar, senta-se à calçada, e logo chegam os amigos, outros velhos italianos, vizinhos, que ficam em animado bate-papo até que as luzes nos postes se acendem e eles se recolhem, cada qual para sua casa.
Petrarco passa por perto, dirigindo-se ao chamado da mulher. Giordano se interpõe:
— Eh, Petro, se fa necessario reforçar questa madeira della parreira. — E mostra uma ripa que está podre. — A parreira está pesada, produziu muita uva nesse ano. Pode cair.
— Sim, senhor Múrcio, vou trocar à tardinha.
Petrarca é marceneiro até as cinco horas; depois, limpa sua pequena oficina e dedica-se à pequena horta que cultiva no imenso quintal, ou à poda das árvores, ao cuidado com as parreiras. Tranqüilo, calado, gosta do que faz, e vive inventando coisas: porta-retratos de bambu, abajures de chifres de boi aos quais dá a forma de estranhos pássaros negros; para as filhas, faz delicadas peças de mobília, miniaturas bem detalhadas. Para os sobrinhos faz piões e pequenos caminhões. Mesmo caladão, é muito querido dos sobrinhos. Há sempre um ou outro garoto na sua oficina, mexendo com as ferramentas, e, se fosse por ele, ensinava a profissão para todos os sobrinhos.
— Petro, leva a mesa pra fora, vamos almoçar debaixo da parreira. — Pede Mariucha ao marido.
Petrarco e Mariucha retiram a mesa da cozinha e a colocam no quintal, à sombra da parreira. O caramanchão é grande, e o chão é forrado com tijolos quadrados. Carmina vem em seguida, trazendo cadeiras e a toalha, que estende sobre a mesa. As meninas aparecem, trazendo pratos, facas, garfos, colheres.
As refeições servidas no quintal constituem uma quebra da rotina da casa. Acontecem principalmente no verão. A frescura do caramanchão é convidativa e Mariucha é animada, está sempre fazendo coisas diferentes.
Giordano assiste com satisfação à azáfama do serviço. Até a nonna ajuda, passando um pano sobre as cadeiras, limpando o pó. A comida está pronta, a mesa posta, mas ninguém se assenta. Esperam.
Chega Atílio, assobiando.
— Opa! Hoje estamos almoçando fora! — Sua chegada e seu comentário são recebidos com alegria por todos. É um tipo extrovertido que espalha alegria ao seu redor. Dirigindo-se ao tio: — Eh, tio, che cosa se mangia oggi? — E para a mãe, passando um embrulho da Padaria do seu Enrico Medramis: Mamma, trouxe os biscoitos de amêndoa.
Atílio é alfaiate e trabalha na oficina da “Alfaiataria Elegante”. Almoça em casa, pois a oficina dista apenas três quarteirões. Sempre traz alguma coisa da rua, é gentil e carinhoso com todos. As crianças têm por ele verdadeira adoração. Alto, muito loiro, a tez clara, mais parece descendente de alemães que de italianos. Faz sucesso com a moças, mas não pensa em casar-se.
É notável a harmoniosa convivência da família: dois velhos, quatro adultos e duas garotas morando sob um mesmo teto, vivendo sem confusões, ajudando-se mutuamente e na maior felicidade. Respeitando-se. Ajuntando as economias, repartindo os gastos. É o desiderato da vida do velho Giordano, que se coloca à cabeceira da mesa, donde conduz a refeição com a maestria de quem sabe conduzir a vida.
O calor do verão seguiu outono adentro. As parreiras carregaram-se. Espalhadas pelo quintal havia seis caramanchões de uvas, brancas e pretas, e todas haviam produzido demais naquele ano, último da década de 1940. No dia de Natal, como em todos os anos, Giordano Múrcio mandava entregar a todos os vizinhos um prato cheio de uvas. Uma tradição gentil e amigável do velho italiano. A produção daquele ano foi tão grande que deu até para fazer vinho. O velho italiano sabia como fazer um bom vinho, e, com ajuda de Petrarco, produziu o que foi considerado por diversos apreciadores, “o melhor vinho da região”.
Giordano saboreia o seu vinho. Ainda sentado sob a velha parreira, agora seus momentos de devaneio são mais longos, quase não lê o jornal. Está mais introspectivo, saudoso. Pediu à sobrinha Carmina:
— Me porta “La Domenica”.
Ela lhe trouxe a coleção de “La Domenica Del Corriere”, que o tio guardava desde 1929, ano em que estivera na Itália e quando assinou o semanário. Múrcio folheia os jornais de vinte anos atrás, com a mesma sofreguidão com que os lera pela primeira vez. Mas logo deixa o jornal e cai em meditação ou lembrança.
Rosina, a irmã, vem juntar-se a ele. Carmina trouxe a cadeira, que colocou ao lado do Tio. Os dois ficam por alguns momentos calados, como que usufruindo o prazer e a compreensão do silêncio. É como se o silêncio comunicasse mais do que todas as palavras possíveis de serem faladas.
— Alfredo sumiu novamente.
— Ma Che cosa c’è?
— Alfredo foi embora. Outra vez. Amélia me disse ontem.
Ela falava de seu filho Alfredo e da nora Amélia.
— É um descabeçado, sem juízo. Não pensa na mulher nem nas 5 crianças, quando dá vontade de ir embora, vai e não fala nada pra ninguém.
— Che cosa facemo?
— Amélia tá passando necessidade. Precisa de comprar comida, a dispensa tá vazia. Sem falar nos remédios do Paulinho, que sofre de asma.
— Quanto precisa?
— Qualquer coisa.
Novo silêncio. A velha senhora, com mais de oitenta anos, ainda é o suporte para filhas e noras em dificuldades. Sempre fora assim, até mesmo quando o marido era vivo. Escutava a todas com muita atenção. Quando podia resolver por si, ela mesmo acertava as coisas. Quando envolvia problema de dinheiro, ia ao irmão, falava francamente e Giordano ajudava sempre.
Os dois irmãos vieram juntos da Itália, e juntos permaneceram através dos anos. Ela se casara, ele não. Ela sofrera demais, o marido era irascível, encrenqueiro. Nunca viveram bem, mesmo assim, tivera nove filhos, sete dos quais ainda vivos. Dois morreram jovens, cinco se casaram, Atílio e Carmina eram solteirões.
Giordano, atilado e trabalhador, fez a América, ficou rico. Sem herdeiros diretos, doou o patrimônio aos sobrinhos, com equanimidade. Os que souberam administrar o quinhão, aumentaram ainda mais o patrimônio. Eram a maioria, felizmente. Mas Alfredo, esse não conseguia nada na vida. Sem profissão, vivia de biscates e empregos sem futuro. Não parava em trabalho algum. Já por diversas vezes saíra de casa, abandonando mulher e filhos, em busca de trabalho. Usualmente, voltava meses depois, uma mão na frente e outra atrás, mais magro, sem dinheiro, sem nada. Recomeçava com a família.
Giordano ajudava sempre. Amélia, trabalhadeira, costurava para viver. Dia e noite. Mais de noite que de dia, pois cuidar das crianças tomava-lhe muito tempo durante o dia . Magra, era pele e osso. Lutadora. Os filhos pequenos. Paulinho sofria de asma, exigia cuidados e remédios
— Quanto precisa?
— Dez, vinte mil réis.
Giordano levanta-se e dirige-se ao seu quarto. Abre uma das pesadas gavetas da cômoda, tira uma caixa de madeira. Dentro, diversos pacotinhos de notas de diferentes valores. Retira duas notas de dez cruzeiros e recoloca a caixa na gaveta, fechando-a. Volta ao quintal onde Rosina espera-o tranqüilamente. Entrega o dinheiro à irmã.
— Entrega para Amélia, mas não diz que eu lhe dei, capice?
O dia do outono estava fresco. Nuvens gordas de chuva ameaçavam cair a qualquer momento. Giordano, terminado o almoço, dirige-se ao quintal. Vai admirar as outras parreiras. O terreno é íngreme, tem até alguns degraus cavados no barranco, que permitem descer à parte mais baixa. Calmamente, como é do seu feitio, o velho italiano desce, por entre canteiros de alface e leiras de tomates. Permanece por bom tempo sob a jabuticabeira, vai em seguida às parreiras mais distantes. Delicia-se com a frescura do local. A colheita feita, as folhas se avermelham, muitas já caíram, as videiras preparam-se para o inverno.
— Tio! Eh, tio! Volta, sobe, vem chuva! — Ouve alguém gritar lá de cima, da casa.
O temporal cai sem avisar. Lufadas de vento levam-lhe o chapéu, as gotas grossas se transformam rapidamente em um lençol d’água, que lhe fustiga a cabeça, o rosto, os braços. Caminha para a casa. A pouca agilidade é prejudicada pela chuva grossa, que lhe atrapalha a visão. Mas vê Petrarco com um guarda-chuva, no topo do barranco. Tenta subir pela escada. Está que é pura lama. Estende a mão para Petrarco, escorrega e cai. Está ensopado e sente a lama no rosto, o gosto de barro que lhe entra pela boca.
Petrarco desce, escorregando pelo barranco. Tenta levantar o velho, mas não agüenta. A muito custo, ambos engatinhando e chafurdando pela lama, conseguem arrastar-se barranco acima. Mariucha e Carmina esperam, com inúteis guarda-chuvas abertos ao vento. Com muito custo, conseguem trazer o velho tio para dentro de casa.
Naquela tarde e noite a dentro Giordano teve febre, vomitou a lama que engolira e tossiu muito. O médico que o atendeu na manhã recomendou-lhe repouso.
Giordano não teve ânimo para se levantar nem se alimentar na semana que se seguiu. E, nos três meses de vida que lhe restaram, nunca mais voltou a sentar-se sob as velhas parreiras
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 28.fev.2001
Conto # 75 da Série Milistórias