A terra é de quem a trabalha
«Deus o ajude!»
À saudação do vizinho, correspondia «e a si o acompanhe». Mas o que soltou foi um som entre dentes, indecifrável até para um ouvido apurado. A cada cavadela, vomitava uma praga, numa lengalenga rosnada, ora alto ora baixo, como se o tom aumentasse ou diminuísse conforme a rudeza da mesma. A vida a isto o transformara.
Anselmo, sempre agarrado à enxada, seu modo de vida, tornara-se irascível com a idade. Via os vizinhos que emigraram agora de regresso para as “vacances” com ar limpo e endinheirados, até no falar se notavam, arrastando palavras como se tivessem esquecido a pia onde comeram.
«“Rais” os partam, mais a tanta cagança. Fugiram da terra, a terra dos seus pais, onde cresceram de ranho no nariz e agora aparecem armados em doutores, esbanjando dinheiro que amealharam na estranja, vivendo miseravelmente, comendo arroz com arroz e dormindo nalgum barraco.»
«Mas tudo bem. Presunção e água benta, cada um toma a que quer. Agora virem dar cabo da paz de quem continua tirando da terra o sustento, isso é que não!»
Anselmo soergueu-se, apoiou a mão esquerda no cabo da enxada e com a direita sacou da algibeira um lenço aos quadrados vermelhos e brancos com que limpou a testa do suor. Deitou um olhar ao trabalho já feito e deixou espraiar os olhos pela propriedade, num misto de amor e orgulho.
Um ruído fez com que interrompesse os pensamentos e olhasse para trás alertado pelo som de passos.
- Olá monsieur Anselmo!
- Ai és tu?.
- Oui!... Sou o Carlos, o seu novo vizinho
- Vizinho?
- Oui, oui…fui eu que comprei este terreno encostado ao seu.
- Já me tinha constado. – Rosnou Anselmo com ar de enfado.- Mas diz-me, o que é que eu tenho com isso?
- Queria fazer-lhe uma proposta.
- Uma proposta?
- Oui!
- Oui?.. Mas tu já não sabes falar a língua dos teus pais, aquela que falaste, até há menos de dez anos, para vires para aqui fazer pouco de mim com esse linguajar da estranja.
- Desculpe-me senhor Anselmo, mas é a força de hábito.
- Ah sim? Mas diz lá o que queres que eu tenho mais que fazer.- Soltou entre dentes.
- Então é assim; queria que me vendesse este terreno para eu juntar ao que comprei e construir aqui uma maison de fazer inveja.
Anselmo empalideceu perante o motivo da visita do emigrante. Era preciso descaramento para lhe fazerem uma proposta destas, a ele. Ele que a recebeu do seu pai, era dali que tirava o sustento pra família e sendo por demais conhecido o seu amor por aquelas terras. Terra que esperava deixar como legado aos seus.
Agora vindo de sabe se lá de onde, este vagabundo, a querer aquilo que é seu. Um filho de um cão a quem matou a fome tantas vezes e agora aparece-lhe com este desplante. Nervoso, sentia todas a veias do seu corpo a latejar e uma raiva surda ameaçava um repente, de que ele próprio tinha medo.
- E tu achas que tinhas dinheiro para comprar estas belezas?- Ironizou Anselmo, tentando disfarçar o seu estado.
- Ora, ora! Belezas que só o matam! Terras são terras e nada mais do que isso.
- Ah, sim!... Diz-me cá uma coisa? De onde vens, como se chama a isto? – Pergunta Anselmo, apontando a enxada.
- Não sei bem…mas acho que é “houe”
- Pois é seu filho de um cão, cavo-te com a “houe” aqui mesmo se não sais já do meu terreno.- Gritou possesso.
- Mas… - tentou ainda balbuciar emigrante, porém, à vista da enxada no ar, fugiu a sete pés daquele de quem se falava à boca pequena que era autor de uma emboscada ao sacristão, só por uma questão de marcos e que o deixou à porta da morte.
Passado meio ano, uma placa a dizer “vende-se” estava colocada no terreno que o emigrante tinha comprado.
Anselmo regozijou-se com facto, comentando por entre dentes – «A terra é de quem a trabalha, pois então!».