A felicidade não tem boa alma
Eu já estava atrasado e sabia que, se não me apressasse, perderia o ônibus para a faculdade. Por isso penteei os cabelos com pressa diante do espelho e logo peguei a minha pasta para sair.
Mas quando meus dedos tocaram-na, meu olhar repentinamente desviou-se para a estante de livros ao lado. Eu, com a mão sobre a pasta, avistei o romance de Capitu.
Meu coração estremeceu e começou a pulsar forte. Aquele livro de Machado de Assis havia sido o motivador de todo o contato entre mim e Clarice. Lembrei-me de quando estava no primeiro semestre da faculdade. Eu conversava com o Carlos nas mesinhas que ficam no pátio do centro universitário. Era a hora do intervalo. E aquela menina, morena e de olhos verdes, aproximou-se de nós. Ela vinha com uma amiga. As duas pediram licença e sentaram nas cadeiras vazias da mesa que meu amigo e eu nos encontrávamos.
A nossa conversa era sobre política. Lembro-me que Carlos defendia o presidente, enquanto eu o fazia fortes críticas, devido às corrupções que o partido havia mergulhado. As duas meninas conversavam sobre Literatura. Mas precisamente sobre a obra machadiana. Ela, a Clarice, era apaixonada pelo autor e tencionava fazer um estudo aprofundado sobre a sua obra.
Embora nossos assuntos fossem diferentes, não me recordo como, mas logo estávamos os quatro falando sobre Literatura. Assim, Clarice e eu nos conhecemos e nos tornamos amigos, o que posteriormente resultaria em nosso namoro.
Da Literatura de Machado de Assis, eu havia lido todos os romances e nossas discussões foram profícuas sobre a estória enigmática de Bento e Capitolina. Clarice me presenteou, depois, com este romance para que eu o lesse mais uma vez. Ela não aceitava os argumentos de defesa que eu mantinha em relação à Capitu.
Em poucos dias, estávamos namorando sério e muitas cadeiras da faculdade cursamos juntos, embora ela tivesse um semestre à minha frente. Ao seu lado passei momentos inesquecíveis de estudos e de amor também. Tornamo-nos dois apaixonados, um pelo outro, e os dois pelas letras.
As disciplinas que cursei ao lado de Clarice foram repletas de conhecimento, amor e satisfação. Mas a felicidade não dura para sempre. Minha boa vida de apaixonado só me deixou perceber isto quando, de forma repentina, Clarice chegou para mim e disse que estava de viagem marcada para outro estado. Não era um passeio. A família mudaria-se em breve.
‘E a faculdade?’ O choque foi tão intenso que não perguntei por nós, e sim pelo curso. ‘Ah! Eu vou pedir transferência. Não quero pensar nisto agora. Preciso organizar outras coisas mais urgentes para a viagem.’
Naquele momento, desconheci Clarice. Era aquela a garota que eu havia conhecido no início da faculdade e mantinha um relacionamento amoroso que perdurava até o quarto semestre? E a importância que sempre dera aos estudos? ‘Preciso organizar outras coisas mais urgentes para a viagem.’ Eu estava perplexo. E fiquei mais ainda quando descobri que a viagem aconteceu dali a três dias. Clarice se foi e não mais se despediu de mim.
Ficaram as recordações, as lembranças, a tristeza, a solidão. Eu a amava e a tinha perdido de forma incompreensível. Buscava uma explicação para aquela perda tão brusca, fora uma rapidez de relâmpago.
Estes pensamentos impedem que o meu olhar seja desviado do livro e faz com que a minha mente recorde todos estes momentos traiçoeiros que vivi com Clarice. Apesar da pressa, vou até o livro e o abro numa página aleatória e leio: ‘A felicidade tem boa alma’. Era o título de um capítulo qualquer do romance.
Eu não pude deixar de sorrir. Para mim, a alma da felicidade não foi tão boa. Fechei, então, o livro. Com minha pasta, eu saí de casa e fui para o ponto do ônibus, que já apontava na esquina.
Quarta-feira, 02 de maio de 2007.
20h