CATECISMOS PROIBIDOS

— Hei, Rodolfo, vamos enforcar a aula de trabalho manual hoje à tarde e dar umas braçadas no poço do Godinho?

—Tá louco? No fim do mês o Irmão Franco desconta nas notas de Geografia e História. Fica ruim. Além disso, tenho muito que estudar. Você não viu quantos exercícios de Matemática o professor Geraldo passou para a gente fazer em casa?

Rodolfo e Piaça desciam pela longa avenida que liga o ginásio diretamente ao centro da pequena cidade de Serra Alta. Terminado o turno da manhã, têm de voltar para a aula de trabalho manual, à tarde.

— Essa aula é uma chateação. O Irmão Franco está é explorando a gente. — Piaça tenta convencer Rodolfo.

— É, mas se a gente não for capinar o pomar, a nota diminui. — Rodolfo não quer perder a média, apesar de concordar com Piaça.

Trabalho Manual é o nome da matéria, com aulas marcadas para cada quinta-feira, às três da tarde. Na prática, é um verdadeiro trabalho de limpeza das áreas do Ginásio Altoserrano. Capinas do pomar, irrigação da horta, tosa da grama dos dois campos de futebol. O astuto Irmão Franco usa descaradamente a mão-de-obra dos alunos. Como não pode dar nota em cima do trabalho braçal, compensa os alunos que participam elevando as notas de Geografia e História, matérias que o próprio Irmão Franco leciona. E também castiga os alunos que não comparecem às “aulas” diminuindo as notas naquelas matérias.

— Sabe, tou com uma fome danada, e depois do almoço não é bom a gente nadar. Faz mal, estupora, num sabe?

— Besteira. Puxa, Rodolfo, você tem medo de tudo, hein?

— Não conhece o Artur da Madalena? Estuporou, é aquele monstro, porque nadou de barriga cheia.

— Tá bom, então vai puxar o saco do Irmão Franco. Eu vou nadar sozinho, você não é de nada.

Separam-se perto da Praça da Matriz. Piaça era mesmo um moleque, não gostava de estudar, detestava os professores. Vivia flanando, enforcando as aulas, para nadar ou para incomodar os garotos menores que tentavam pescar lambaris na Lagoinha. Por isso estava repetindo a terceira série, já tinha repetido a segunda. Desse modo, levaria oito anos para fazer as quatro séries do curso ginasial. Sua independência e rebeldia talvez devessem à falta de pai. Sua mãe se esforçava, trabalhando o dia inteiro no salão de beleza de Dona Graziela, fazendo unhas e penteados das madames. Coitada, por conta da vadiação do filho, quase todos os meses tinha de ir até ao ginásio, conversar com o diretor, das explicações e ouvir reprimendas.

Rodolfo não gostava de acompanhar Piaça nas suas escapadas para nadar, ou espreitar o pátio do recreio das meninas do colégio das freiras ou jogar canudinhos de papel nas caixas de marimbondos. Para cada molecagem o maroto tinha seus segredos, que compartilhava com poucos colegas. Rodolfo não ia com o colega, mas não evitava conversar com ele. Mais velho do que Rodolfo, Piaça sabia de coisas que os demais alunos não conheciam, sempre trazia novidades e boatos que contava como se fossem segredos supersecretos para os colegas mais chegados.

— Amanhã vou trazer mais revistinhas. Se você quiser comprar, tem que trazer dinheiro trocado. Um pila cada revistinha.

Este era o vínculo mais forte entre Piaça e Rodolfo: as revistinhas de quadrinhos de sacanagem. Proibidíssimas. Onde Piaça as obtinha, era um mistério. Fazia um bom comércio com elas: trazia de tempos em tempos cerca de dez revistinhas que vendia aos colegas. Nada aceitava em troca, nem pião, nem uma camiseta que o Rafael lhe oferecera, nem livros. Quem quisesse tinha de trazer dinheiro contado.

— Quero duas. — Reservou o Zé Darimatéia.

— Eu quero só uma, não tenho dinheiro pra mais. — Rodolfo comprava uma sempre que podia. Depois, todos faziam um troca-troca intenso das revistinhas. Eram em quadrinhos, mal desenhadas, cada qual com uma história de sacanagem, ou seja, historinhas eróticas. O “artista” se assinava Carlos Zéfiro.

— Quem é esse desenhista? — Rodolfo perguntou ao Piaça.

— Sei lá. É de São Paulo, é lá que as revistinhas são feitas. — Era limitada a informação de Piaça. — Eles falam que são “Catecismos de Carlos Zéfiro”.

Rodolfo é estudioso. Tem de ser. Sem recursos para arcar com a mensalidade no ginásio, o pai acertara com o Irmão Guilherme uma maneira de pagar os estudos do filho: faria a reforma das carteiras e bancos e outros serviços de marceneiro que surgissem. Um escambo, única maneira que teve de mandar o filho para o ginásio. Uma despesa impensável frente aos seus minguados ganhos.

— Você vai pro ginásio, mas se não tiver notas boas, se tomar uma “bomba” ou mesmo se ficar de segunda época, sai do ginásio e vai trabalhar. — Essa foi a condição imposta e que permanecia como ameaça sobre sua cabeça.

Ainda que aplicado, usa de sua esperteza para burlar a estrita vigilância do pai e da mãe. Para deliciar-se com os desenhos e histórias pornográficas das revistinhas de Carlos Zéfiro, faz de conta que está estudando, com o livro aberto sobre sua mesa de estudo. Mas no meio do livro está escondida a revistinha safada. Delicia-se com os desenhos, aprende coisas que jamais lhe serão ensinadas pelos pais ou professores: o sexo, as relações, como dar uma cantada numa garota, coisas assim.

Se a mãe chega perto, passa rapidamente as páginas do livro, como que procurando outra lição, e despista o enlevo pelas historinhas. São fáceis de esconder, precisa ter cuidado de não esquecer nos bolsos das calças, onde sua mãe inevitavelmente encontrará, ao lavar a roupa. Todo cuidado é pouco. Certa vez foi denunciado por um primo, despeitado, que não quis comprar, mas queria ver a revistinha. Quando Rodolfo negou-lhe o empréstimo, Zé Carlos bateu direto nos ouvidos da tia, mãe de Rodolfo:

— Ele passa o tempo todo vendo revistinha de quadrinhos. De sacanagem.

A mãe de Rodolfo não entendeu bem o que era revistinha de quadrinhos de sacanagem. Já tinha proibido Rodolfo de ler os gibis, que eram revistas em quadrinhos com bandidos e mocinhos, muito violentas, faziam muito mal às crianças. Rodolfo obedeceu, deixou de ler os gibis.

“Mas, pensou a mãe, o que vinha a ser revistinha de sacanagem?”.

Passou a vigiar de perto Rodolfo. Entretanto, ou porque percebera a vigilância da mãe ou porque era ocasião de provas e tinha mesmo era de estudar, o fato é que ela jamais veio a saber o que seriam as tais revistinhas de sacanagem. O tempo passou sem que o assunto fosse esclarecido. Quanto ao pai, passava o dia inteiro trabalhando, pouco conversava com a mulher ou o filho.

Rodolfo chegou a ter mais de vinte catecismos, que escondia entre os livros ginasiais e na caixa de escovas e graxas para sapatos, que só ele manipulava. Até que uma tragédia reduziu drasticamente seu estoque de pornografia.

No começo de cada ano, vendia os livros usados, porém bem conservados, aos alunos da série anterior. E comprava dos alunos promovidos e cuidadosos os livros indicados para a série que ia cursar. Uma prática usual e que diminuía muito as despesas com a aquisição dos livros de estudo.

Foi numa dessas vendas que perdeu a maior parte dos seus catecismos, escondidos nos livros.Esqueceu-se lamentavelmente de retirar os catecismos dos livros, que foram parar nas mãos de Calimério. Quando se deu conta da perda, Rodolfo procurou Calimério.

— Calimério, naqueles livros que você comprou na minha casa, tinha no meio uns bloquinhos com desenhos, quero eles de volta.

— Não vi não. De que jeito eram esses bloquinhos? – O astuto garoto fingia-se de desentendido, mas bem que já folheara todos, e com que prazer!

— São umas revistinhas de desenhos, pequenas, deste tamanho. São do Piaça, tenho que devolver pra ele. — Inventou uma mentira na hora, a fim de reaver os folhetos sacanas.

— Ah, comigo não estão não. Você quer ver os livros?

Na casa de Calimério, Rodolfo constata que dentro dos livros não tem mesmo nada de seu. Deu por perdida parte considerável de sua coleção de catecismos.

Nem bem começaram as aulas, lá vem de novo Piaça com suas malandragens, entre elas a venda das tais revistas. Aumentou o preço para dois cruzeiros, os colegas chiaram.

— Que é isso, Piaça? Neste preço num compro mais.

— Se quiser, é assim. — E Piaça vendia todas as que trazia.

Quando começaram a fazer o troca-troca de revistas, Calimério entrou no grupo. Apareceu com um monte delas para trocar.

— Uai, Calimério, estou conhecendo essas aí. — Rodolfo descobriu logo que tinha sido enganado pelo colega menor. — Essas são minhas, foram dentro dos livros que te vendi.

— Não foram não!

Rodolfo não teve com quem reclamar. Ficou com o prejuízo. Embora ambos fizessem parte do restrito grupo de consumidores de livrinhos de Carlos Zéfiro, nunca mais trocou uma palavra com o safado do Calimério.

No final daquele, ano Piaça tomou bomba e saiu do ginásio. Sua mãe mudou-se e levou o filho. Cortada a fonte de fornecimento, as revistinhas ficaram raras. O troca-troca tornou-se desinteressante, não tinha nada de novo no circuito. De tanto manuseio, foram ficando sujas, ensebadas, perdendo as folhas e, no final, eram uns molambos. Dava até nojo folheá-las.

Acabaram-se os catecismos proibidos. Acabou também o interesse dos pequenos leitores, transformados em rapazotes, partindo para a prática dos ensinamentos dos Catecismos de Carlos Zéfiro.

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ANTONIO ROQUE GOBBO / BELO HORIZONTE / 12.DEZEMBRO.2000

Argos

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 15/03/2014
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