A MISSA DO PRIMO BENÍCIO

— Será mais um dinheirinho para nos ajudar nas despesas da casa. — Mariana mostra a carta ao marido, recebida há três dias, voltando ao assunto que já tinham discutido, sem sucesso.

— Mas vai aumentar seu serviço. E a gente não conhece direito esse seu primo. Sem falar no racionamento de sal, açúcar, fica difícil até para fazer uma boa comida.

— Já lhe falei, é o filho mais velho da tia Rosária, que mora no Paraná. Está com problema de saúde, tem de mudar-se para o interior, o clima de São Paulo não é bom.

Benício chegou à pequena cidade numa tarde do verão de ’44. Desembarcou na estação da estrada de ferro e tomou um carro de praça que o levou à casa da prima, que ele nem conhecia direito. No bolso, o envelope com a carta do casal, concordando em recebê-lo em sua casa por alguns meses. Mediante módico pagamento de uma pensão, claro, que os tempos eram bicudos e o custo de vida subia a cada dia.

Funcionário do Banco da Lavoura, trabalhava na grande cidade há anos. Conseguiu transferência para o interior por motivo de saúde: o clima úmido da capital não lhe fazia bem, tinha constantes ataques de asma. O melhor tratamento era ir morar num lugar de ares favoráveis. São Roque da Serra era ideal, encravada nas montanhas de Minas, na altitude de quase mil metros, com ar seco e puro.

— Este é o seu quarto: recebe sol de manhã, é fresco à tarde. Fica perto da porta de entrada, o senhor fica à vontade para entrar e sair. — Mariana recebe o primo, esforçando-se por agradar. — A comida é caseira, mas tenho certeza de que o senhor vai gostar.

— Por favor, não me chame de senhor.

— Desculpe, é o costume. Fique à vontade, estou preparando o jantar — esfrega as mãos no avental, num sestro que denotava respeito e humildade, e afasta-se na direção da cozinha.

O primo fica encantado com a simplicidade da família. A prima se desdobra para agradar-lhe.O marido Salvador é calado, meio desconfiado, vive para o trabalho na sua oficina de conserto de móveis. Têm um casal de filhos: Zilda, uma mocinha de 15 ou 16 anos, e Jaime, irrequieto moleque de 12 anos.

Benício tinha mais de trinta anos, era solteiro, jamais falou em namoradas. Alto, magro, cultivava um bigodinho de Clark Gable, cabelos lisos bem penteados sempre. Vestia-se muito bem, mesmo porque no serviço exigia-se trabalhar de terno completo, paletó e gravata, sapatos sempre muito limpos. Passava o dia inteiro no trabalho e saía todas as noites, para encontrar com os amigos. Fez logo muitas amizades e ia ao cinema todas as noites. Depois, ficava conversando ou jogando sinuca no Bar do Ponto até perto da meia noite. Era o que dizia para Mariana e Salvador.

Mariana não se acostumava com os hábitos do primo.

— Benício, você deixou São Paulo justamente por causa da saúde, agora fica aí na friagem da noite, vem dormir tarde, isso não é bom pra você.

—Não se preocupe, Mariana. Afinal, aqui não tem muita distração, fico com os amigos. Não bebo nem fumo, você já notou. O único vício que tenho é ficar de conversa com os amigos. — O primo desconversava, estava sempre de bom humor, mudava todo assunto sério em brincadeira.

Salvador não gostava desse tipo de comportamento.

— É muito folgado, não dá satisfação pra ninguém.

Mas a pensão que primo Benício pagava era uma quantia boa, ajudava muito nas compras no empório do Nenelo, de forma que, enquanto fosse pagando, ia ocupando o seu quarto e levando a vida como era de seu feitio.

Aos domingos, dormia até tarde, levantava-se na hora do almoço. Depois da macarronada e do vinho, que Salvador fazia questão de tomar no dia de descanso, Benício saía de novo e só voltava à tardinha. Mariana ficava implicada, mas ia aceitando.

Houve um domingo em que o primo levantou-se cedo, antes das oito, vestiu-se com o aprumo usual e já ia saindo, quando topou com a prima.

— Onde vai ser a festa hoje?

— Não é festa não, prima. — Pego de surpresa, deu uma explicação. — Hoje vou à missa.

Mariana ficou surpresa. O rapaz nunca ia à igreja, nunca falara em religião, agora ia à missa. Enfim, pensou ela, pra tudo tem uma primeira vez.

O primo Benício não apareceu para o almoço.

— Estou preocupada. Ele nunca vai à missa, já é meio dia e ainda não voltou. Você podia ir ver onde ele anda. — Pediu ao marido.

— Ara, Mariana, deixa de se preocupar. Ele é homem feito, tem juízo.

Pelas quatro da tarde, sem que o primo tivesse voltado, ela insistiu.

— Vai ver onde está esse moço, Salvador. Vai que aconteceu alguma coisa.

— Tá bom, vou até o centro ver se acho esse seu primo.

Com indisfarçável má vontade, Salvador sai à procura de Benício. Na Praça da Matriz, encontrou um colega do rapaz.

— Ele tá na zona.

Salvador hesitou antes de se decidir a ir à rua do meretrício. Mas, já que estava a fim de achar o primo, lá foi.

O primo estava efetivamente na zona. Mais precisamente, na casa de Mercedes Sanches.

— Benicinho do Banco? Tá aqui, sim senhor. Lá no quintal. Tão fazendo uma festa de aniversário pra dona Mercedes. Quer entrar?

— Não, obrigado. Só queria saber onde ele está.

— O churrasco começou cedo e pelo visto vai entrar pela noite adentro. Vamos lá, vem! — Continuou a mulher, muito solícita para o gosto de Salvador.

Sem jeito, esquivou-se da sedução e voltou dali mesmo.

Em casa, contou à mulher, com poucas palavras, a procura e a localização de Benício. Mariana também se desgostou com a falsidade do primo.

— Se ele mente com essa facilidade, sabe-se lá quando está dizendo a verdade.

— A gente não pode brincar com pessoas assim. Vai ver, mente o tempo todo. — Salvador era severo, debaixo do seu mutismo. — Depois, tem a Zildinha e o Jaime. Isto não é bom pra eles.

No dia seguinte, Salvador foi curto e grosso com o primo da mulher:

— Pois é, seu Benício, aqui em casa não dá mais pro senhor ficar. É melhor procurar uma pensão ou um hotel.

— Mas, o que aconteceu? Pensei que podia ficar até o fim do ano, conforme combinamos.

Discretos e querendo evitar desculpas e explicações, falaram das necessidades de seus filhos.

— Precisamos do seu quarto. Vamos separar as crianças que dormem no mesmo quartinho dos fundos da casa. A Zildinha já está uma moça, precisa de um quarto só para ela.

Se soube que Salvador o procurara na casa de Mercedes Sanches, nada falou a respeito. No fim da semana, o primo Benício mudou-se para o Hotel dos Viajantes, localizado na Praça da Estação da Estrada de Ferro.

Na gaveta do criado-mudo, deixou – ou esqueceu – uma fotografia 3 x 4 que, alguns anos depois, Izildinha achou. Foi quando o fato foi contado aos filhos, e ficou fazendo parte do folclore da família como a “missa do primo Benício”.

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ANTONIO ROQUE GOBBO (ARGOS)

Belo Horizonte, 2 de novembro de 2000

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 14/03/2014
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