UM DIA NA VIDA DO PROFESSOR HERALDO
UM DIA NA VIDA DO PROFESSOR HERALDO
O vulto surgiu do nada. Apareceu de repente, na frente do carro. A sombra materializou-se ao chocar contra o farol e o capô do motor do lado direito. Assustado com o impacto, o motorista não teve tempo sequer de desviar o carro. Pisou no freio com força, num ato reflexo. Destravou de imediato o cinto de segurança, saiu depressa do carro e correu para a calçada. Agachou-se para examinar a vítima. No chão, encolhido em posição fetal, o corpo ensangüentado ainda dava sinal de vida.
— Chamem uma ambulância, por favor! – Gritou para os transeuntes que se aproximavam, curiosos.
Ninguém se mexeu para ajudar o motorista ou o atropelado. O motorista observou o corpo: um garoto negro, muito magro, cabeça raspada. Talvez doze, treze anos. Os olhos revirados mostravam apenas o fundo cor de leite. A camiseta branca ia se empapando de sangue que vinha do ferimento no tórax.
Aquilo era um pesadelo, não podia ser realidade, pensou o motorista, agachado, vendo a vida de esvair do frágil corpo. Naquela manhã clara, como não viu o garoto? Desviou a vista para a praia: o sol reverberava sobre a areia branca de Copacabana, uma névoa brilhante chegava até a avenida. Com tanta luz, como não ver o garoto? Não, aquilo não era real, estava num pesadelo, logo iria acordar e...
— Chega pra lá, deixa comigo, não mexa no corpo. — A série de ordens chegou aos ouvidos do motorista como uma benção, pois vinha de um decidido policial. Agachando-se ao lado do motorista, abriu a camisa do atropelado, pegou o seu pulso, colocou o ouvido sobre o peito. O corpo estava imóvel.
— Já morreu. – Secamente, o policial falou em voz baixa, audível apenas pelo motorista e duas ou três pessoas que estavam mais próximas, as quais, de pronto, passaram a notícia para a pequena multidão de curiosos aglomerados na calçada.
— Fica frio, eu vi tudo, vi quando o garoto atravessou a rua, não foi culpa sua. — A voz calma e até suave não combinava com a estatura e a corpulência do policial. — Sou o Sargento Cabral. O senhor está legal?
— Sim, não estou ferido. Sou Heraldo Rezende, professor. Dirigia-me para o Colégio de Copacabana, que fica ali no Posto 3.
— Fica aqui, vou chamar a Unidade da Patrulha que faz a ronda do bairro.
O professor levanta-se, permanece de pé ao lado do corpo. Ainda bem que o policial viu que o acidente não foi por minha culpa, pensa. Lembra-se de avisar o colégio, cancelando suas aulas daquela manhã. E a seguradora do veículo. Puxa vida, o Escort novo, tinha rodado apenas mil quilômetros. Mas o estrago não foi muito. O pior mesmo era a situação do garoto, ali no chão, já sem vida. Teria uns doze anos, podia bem ser seu aluno no colégio. Que desperdício de energia, um jovem com a vida pela frente, de repente tudo termina.
Enquanto fala no celular, Heraldo observa mais gente chegando. Transeuntes, curiosos. Ciclistas param por perto. Perguntas, comentários. A notícia do atropelamento se espalha rapidamente. Da Avenida Atlântica chega muito depressa até a favela do Cantagalo, onde morava o rapaz atropelado. Um grupo mais compacto se aproxima. São mais ou menos cem pessoas, homens, mulheres que chegam gritando.
— Assassino! Vagabundo ! Bandido!
— O garoto era surdo! E você aí, sem fazer nada !
— Branquelo babaca ! Vai pagar pelo que fez !
— Corria que nem doido! Agora, corre, desgraçado !
O bando rompe caminho entre os curiosos, que, surpresos e temerosos, afastam-se. Da turba destaca-se um homem vestindo apenas um calção branco encardido, largo e frouxo na cintura, escorregando-se e expondo partes da nádegas e do baixo ventre. Seria cômico não fora sua catadura ameaçadora e a pá que erguia com a mão direita. Caminhou em passos curtos rumo ao Escort. O professor guarda o celular e tenta impedir o homem que avança sem se deter. Heraldo sente a fúria assassina nos olhos do camarada, corre para a rua, esconde-se atrás do veículo. Por pouco não é abalroado por uma camioneta. Ouve o barulho de vidro estilhaçado: lá se foi o vidro do pára-brisa traseiro. A turba cerca o carro, que fica ilhado, juntamente com o motorista e o corpo atropelado. As ameaças se transformam em atos de vandalismo: o preto, com a pá, continua quebrando os vidros, outros começam a balançar o carro.
O professor sente um puxão no seu braço esquerdo, que repele com um safanão. Atinge uma mulher, que revida, agarrando e rasgando sua camisa. Uma pedra resvala pelo ombro, queimando ao cortar a carne. Gritos, confusão, terror.
Com o canto dos olhos, o professor vê o Sargento Cabral, já de volta, abrindo caminho pela multidão, caminhando na sua direção, jogando, com seus braços fortes, pessoas para um lado e para o outro. Ao mesmo tempo, ouve a sirene de um carro policial, cuja intensidade aumenta velozmente. A multidão se mexe, espalha-se, o grupo compacto se desfaz, há correria e algumas pessoas caem, são pisoteadas. Um caos.
Uma nuvem tolda a vista do professor que, cambaleante , é amparado pelo Sargento.
— Calma, doutor, tá tudo bem. O pessoal já dispersou.
Chegam outros policiais e a ambulância . A situação fica sob controle.
— Graças a Deus, escapei por pouco ! Mas que droga, porque estavam tão violentos?
— São moradores da favela do Cantagalo, logo ali em cima, onde morava o menino atropelado. Era surdo, estava distraído , por isso não ouviu quando seu carro se aproximava.
Enquanto conversavam, uma pedra atingiu o carro da ambulância . Os quatro policiais da viatura correram, brandindo seus cacetes, na direção do grupelho, do outro lado da avenida. Os favelados dispersaram-se pela praia, misturaram-se aos banhistas. Os policiais voltaram, arfando.
— Melhor a gente sair daqui imediatamente, sugeriu o chefe do grupo. — Deixa o carro aí mesmo, vamos para a Delegacia, a gente faz a ocorrência lá .
O Sargento Cabral foi substituído por um dos colegas recém-chegados. Seguiu com o professor na viatura para a delegacia de polícia.
Nem bem haviam encerrado os trâmites legais do registro da ocorrência policial, o professor já se preparava para deixar a delegacia, quando chegam notícias de nova confusão no local do atropelamento.
— Atacaram de novo seu carro, doutor. — O sargento Cabral, com sua aparente serenidade, escondia a tensão de todos os policiais — A turma da favela voltou e botou fogo no seu Escort. Vamos pra lá de novo. Quer vir com a gente?
O professor Heraldo estava cansado. Consultou o relógio, eram dez horas. Respondeu cordialmente ao convite:
— Não, muito obrigado. Daqui vou para o colégio, tenho que justificar minha ausência. Pra mim, chega de violência .
Enganava-se redondamente o Professor Heraldo. Seu dia estava apenas no começo.
* * * * * *
Naquela luminosa manhã, a violência corria solta na Cidade Maravilhosa. Nas proximidades da Central do Brasil, um assalto estava ocorrendo por volta das 10 horas. Coisa de rotina da grande metrópole.
— Atenção, viaturas d do 50 . Batalhão da Policia Militar, assaltantes em ação no Mercado Olandino, na Rua Barão de São Felix. Três meliantes armados. Dirijam-se para o local.
Uma equipe de policiais que rondava pela Avenida Presidente Vargas se dirigiu ao local do assalto. Quando chegou, os bandidos já tinham fugido.
— São três morenos. Estavam com lenços no rosto. Levaram todo o dinheiro do caixa, quase quinhentos reais, os desgraçados. Fugiram num Fiat Uno verde escuro.
As pistas fornecidas pelo proprietário do estabelecimento assaltado não davam muita margem para a ação policial. O local já fora assaltado outras vezes, era a terceira vez que os meliantes agiam no mesmo quarteirão. Escapavam com facilidade, pelos becos do Morro da Providência ou do Morro do Pinto, todos bem próximos.
Cerca de hora e meia após o assalto, a mesma equipe de policiais localizou o carro indicado. Estacionado na Rua Barão de Gamboa, do outro lado do morro, entre os bairros de Santo Cristo e Gamboa. Dentro do Fiat, tranqüilamente, os três bandidos conversavam. Sem dizer “lá vai chumbo”, a polícia disparou contra o carro. Os bandidos revidaram. Houve um tiroteio. Do alto do morro da Providência vieram também disparos. Encurralados, os policiais pediram reforço, que chegou por volta do meio-dia. Os assaltantes conseguiram fugir morro acima, mas uma bala perdida atingiu um homem que foi socorrido pelos PMs.
Deitado no chão, entre embrulhos e papéis, o ferido jazia gemendo. Ao seu lado, uma pistola de 9 milímetros e muitas trouxinhas de maconha.
— Tenente, é o Ariano! — Informou o policial Severino .
Traficante conhecidíssimo no morro, valente e cruel , Ariano era responsável por diversas baixas entre policiais.
— Chama a ambulância, leva esse bandido embora. — As ordens do Tenente Vilar foram prontamente obedecidas. Mas, apesar da presteza no atendimento, Ariano morreu dentro da ambulância, antes mesmo de chegar ao Hospital Souza Aguiar.
* * * * * *
— Nunca queira passar por um sufoco deste. Houve um momento em que pensei que ia ser linchado. — O professor Heraldo relatava para Marilda, a secretária do Colégio de Copacabana, os particulares da confusão em que se vira envolvido naquela manhã. — Depois desta, quero mais é ir pro meu apartamento, relaxar, descansar.
Foi o que fez. Saiu do colégio por volta das duas horas, e tomou um táxi. Desejava chegar depressa em casa.
— Pra onde, doutor? — pergunta o taxista.
— Rua Barão de São Félix, nas imediações da Central do Brasil. .
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Incitados pelos três assaltantes e no intuito de vingar a prisão e morte de Ariano, os moradores da favela da Providência desceram o morro e interditaram as ruas mais próximas: a Barão de São Félix e a Rua da América, que dá acesso ao viaduto São Sebastião. Levaram pneus velhos, caixas de papelão e pedaços de madeiras, aos quais atearam fogo. Começaram a apedrejar os carros que transitavam pela rua Barão de Gamboa, onde os assaltantes tinham sido localizados.
A notícia se espalha rapidamente pelas imediações. Dos morros da Providência e do Pinto chegam mais favelados, em outros três locais estouram confusões. Um ônibus que transitava no local, rumo à zona Sul, foi incendiado. Outro, teve os vidros quebrados.
A ação da polícia foi rápida: mais de cem policiais de diversas unidades foram para a região conflagrada. A chegada dos PMs aumentou a fúria dos moradores. O Viaduto São Sebastião, importante via de acesso ao Túnel Santa Bárbara e à Zona Sul, também foi bloqueado.
* * * * * * .
— Doutor, estão avisando pelo rádio que o trânsito pelo Túnel de Santa Bárbara está engarrafado. Não dá pra passar pelo Viaduto de São Sebastião.
— Vamos pelo centro. Mas o que está acontecendo?
— Parece que tem confusão na área pra onde vamos: Morro do Pinto, Morro da Providência, Santo Cristo.
— Que droga ! Hoje estou vivendo um dia de cão ! — Contou para o taxista suas atribulações naquela manhã.
— Calma, doutor, a gente chega lá.
Passaram pelo centro da cidade: os engarrafamentos já atingiam a Av. Rio Branco. O carro entrou pela Avenida Presidente Vargas. Antes de chegar à Central do Brasil, o taxista virou à direita, e entrou na Rua Barão de São Félix.
De repente, estavam no meio do tiroteio.
Com habilidade e experiência de quem já tinha passado por situações parecidas, o taxista fez o carro entrar no pátio de uma oficina mecânica.
— Daqui não dá pra passar. — Avisou o motorista.
— Está bem, estou perto do meu apartamento.
Pagou o motorista, desceu do carro e tentou sair para rua. Uma bala bateu numa janela da casa no outro lado da rua.
—Volta, cara. Os bandidos tão lá em cima, não tem como sair ! — A advertência veio do pessoal da oficina mecânica, todos abrigados debaixo do barracão, entre os carros.
Rápido, o professor Heraldo se junta ao grupo de mecânicos.
— Que droga! Parece que o Rio tá pegando fogo.—Murmura para si mesmo.
Espera cinco, dez minutos. A fuzilaria diminui. Quando só se ouvem tiros à distância, o professor se anima e sai correndo, abaixado de encontro às paredes, procurando proteção. Está a três quarteirões de seu apartamento. A rua está deserta. Ao cruzar a primeira esquina, encontra com um policial, correndo na direção oposta.
— Cuidado aí, cidadão. Os bandidos tão atirando pra tudo quanto é lado !
Heraldo não se intimida. Continua correndo, abaixado, é uma dificuldade, não está acostumado a esse tipo de exercício. Na terceira esquina, um carro incendiado queima as chamas comem-no com violência. Lembra-se de seu Escort. Deve ter sido queimado como esse aí, pensa. Ofegante, corre até o meio do quarteirão, chega à porta do edifício de seu apartamento.
Mete a mão no bolso, procura as chaves, escolhe a da porta do edifício. Freneticamente enfia a chave na fechadura, abre a porta, entra rápido no corredor escuro e fecha a porta. Sobe os dois lances de escadas, chega ao seu apartamento. Graças a Deus, suspira, aliviado, ao entrar na sala escura e fresca. . Olha o relógio: passam vinte minutos das duas horas. Dá alguns passos e desaba sobre a poltrona, quase desmaiando.
* * * * * *
Acordou perto das seis horas, a tarde estava ainda clara. Abriu as janelas, observou a paisagem que se estendia: a Cidade Maravilhosa tingida de laranja pela cor do sol-poente. A vista era interceptada por inúmeros edifícios mais altos, pela grande torre da Central do Brasil, podia ver a encosta do Morro de Santa Tereza. Na direção do centro, alguns edifícios já estavam com as luzes acesas. Por entre os edifícios, pode ver fumaça em dois locais próximos, provavelmente ali mesmo no bairro.
O Professor Heraldo era metódico e organizado. Um dia de tantas surpresas e emoções, de medo e até mesmo de terror deixou-o intranqüilo. Estava esgotado. Ligou a televisão quase que automaticamente, estava na hora do noticiário local.
— Hoje foi um dia cheio para a polícia do Rio. — A voz cheia e vibrante do apresentador chamou a atenção do professor. — Desde a manhã diversos atos de violência aconteceram na cidade. De manhã, em Copacabana, um carro foi incendiado, depois que o motorista atropelou e matou um garoto. — Na tela, cenas do carro – do seu carro – incendiado.
— Na região da Estação Central do Brasil, policiais militares subiram o Morro da Providência e forem repelidos à bala. Os favelados desceram para as ruas e interditaram diversas ruas. O trânsito ficou engarrafado na Avenida Getúlio Vargas, no Viaduto São Sebastião e até na Avenida Rio Branco os carros pararam. — A voz em off do apresentador acompanhava cenas de policiais correndo, atirando, helicópteros da polícia sobrevoando a região do “seu” bairro, fazendo vôos rasantes sobre “seu” edifício. — A confusão prosseguiu até perto das dezessete horas. Um cabo da Polícia foi ferido por pedrada e dois favelados atingidos por balas. — Finalizou o locutor, as cenas desaparecendo da tela.
Batem à porta. Heraldo se assusta, mas vai atender.
— Quem é?
— É a polícia. Abra já. – Uma voz feminina em falsete, distorcida, disfarçada.
O professor treme nas bases. E agora? Será que seu dia de terror ainda não havia terminado? Abro ou não? Deve ser mesmo a polícia, quem mais entraria no edifício sem se anunciar no interfone? Que chato, deve estar relacionado com o meu carro.
Abre de supetão a porta. Surpreso, vê um grupo de pessoas amontoando-se no corredor, defronte à sua porta. Lucinha, a deliciosa vizinha que há muito vinha paquerando, joga-se em seus braços, tirando-lhe o equilíbrio, enlaçando-o num abraço forte, beijando-o na boca.
— Parabéns, professor ! — gritam os demais. E logo se põem a cantar:
Parabéns pra você, nesta data querida...
Muitas felicidades, muitos anos de vida !
O professor Heraldo tinha se esquecido de que aquele dia de cão era, também, o dia do seu aniversário.
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ANTONIO ROQUE GOBBO ( ARGOS) – Belo Horizonte, 26-outubro-2000