A FESTA DA CUMEEIRA
= A FESTA DA CUMEEIRA =
Era um profissional competente, marceneiro de mão cheia. Mais do que um bom profissional, era um artista. Sabia tratar a madeira que usava para todos os fins. Na sua pequena marcenaria, no fundo do quintal, passava os dias confeccionando móveis, objetos decorativos, cortando e recortando as peças com o carinho de um amante. Os móveis que construía mereciam acabamento especial : frontões e colunas entalhados, trabalho que só o delicado marceneiro, em toda a região, sabia fazer com tamanha perfeição.
Seu Renato vivia realizado, enfurnado sete dias por semana na sua oficina. Os fregueses vinham até ele, trazendo peças antigas para serem reformadas ou para combinarem novas mobílias ou peças avulsas. As madames traziam fotos recortadas de revistas americanas e pediam-lhe para fazer cópias autênticas. Seu Renato não apenas fazia igual, mas, muitas vezes, até incrementava nos acabamentos. A encomenda ficava melhor do que era de se esperar.
As freguesas – e os respectivos maridos, noivos, etc. — se entusiasmavam com o esmero do serviço.
— O senhor é um verdadeiro artista ! Nunca vi um trabalho tão fino ! — Dona Zulmira Sanches podia falar de cátedra: elegante madrilena, viajara por todo o mundo, tinha apurado bom gosto. .
— Que nada, dona Zulmira. — Modesto, Seu Renato tinha uma resposta amena para cada comentário. — São as ferramentas. Quando a gente trabalha com boas ferramentas a metade do trabalho já está feita,
Algumas noites voltava à oficina, para desenhar em papel grosso as volutas, as folhas de acanto, frisos e rosáceas. Desenhos feitos sob medida, transpostos para as peças de jacarandá ou imbuia e que no dia seguinte eram entalhados com seus formões e goivas super-afiados.
Era competente e orgulhoso de suas habilidades, nas quais se incluíam os conhecimentos de carpintaria. Embora não praticasse há muitos anos, sabia como erguer telhados, fazia portas e janelas com o mesmo esmero dedicado aos móveis. Muitas tulhas nas fazendas da região tinham sido feitas por Seu Renato . Mas isto já fazia tempo, há mais de 20 anos.
O doutor Mário Menezes tinha na sua fazenda, além da tulha, uma capela cuja carpintaria tinha sido executada pelo Seu Renato . Na orada, todos os serviços de madeira foram de sua lavra: engradamento para telhado, portas e janelas, o altar (bem simples), o confessionário, os bancos.
Portanto, não foi surpresa para Seu Renato quando o mesmo doutor Mário o visitou na sua oficina acanhada e quente : coberta de folhas de zinco, era um verdadeiro forno no verão.
— Vou construir uma nova casa ao lado do Clube Social. E quero que você faça todo o trabalho de madeira. Tudo, desde o engradamento do telhado, os armários embutidos, os móveis, tudo.
— Faz tempo que não mexo com engradamento, portas e janelas. Nem tenho máquinas apropriadas para aparelhar peças tão grandes. — Seu Renato mostrou-se relutante, a princípio, e com razão. Sua oficina estava toda preparada para os finos móveis, não tinha máquinas para aparelhar grossas tábuas, caibros ou montantes pesados.
— Pois compre as máquinas, homem! Faço-lhe um adiantamento para você comprar o que precisa. Mas Marluce e eu fazemos questão: você vai fazer todo o serviço de madeira.
Quem realmente convenceu seu Renato a pegar a empreitada foi Dona Marluce, simpática esposa do doutor Mário. Seu Renato já tinha trabalhado para o casal, pouca coisa. Conhecia a conversa enfeitada de sorrisos da elegante senhora e foi vencido por ela.
A construção da nova casa do doutor Mário Menezes foi a principal obra na pequena cidade naquele ano. O projeto era de uma verdadeira mansão , a ser construída num enorme terreno central, bem ao lado do Clube Social. Doutor Mário e sua esposa eram grã-finos, exigentes, tinham dinheiro e bom gosto. Os pedreiros também foram escolhidos a dedo: os irmãos Fabrini tiveram de cancelar outros serviços para trabalhar com exclusividade na obra, que levaria pelo menos um ano para ser concluída .
Quem não gostou nada da contratação foi o Caetano Silveira , o mais importante carpinteiro da cidade. Trabalhador e competente, era o responsável por quase todos os serviços de carpintaria da região. Orgulhava-se de trabalhar para a paróquia, seus melhores projetos estavam na abside da Igreja Matriz e no grande e complicado telhado do orfanato paroquial. Por isso, não ficou nem um pouco alegre ao saber que um marceneiro iria se encarregar da carpintaria da nova casa do doutor Mário.
— Qual, o Renato não dá conta do recado, não senhor ! Há quanto anos não trabalha como carpinteiro, vive enfurnado na sua oficininha, fazendo aqueles delicados trabalhinhos. Não vai dar nem pro começo.
Seu Renato soube do comentário desairoso de Caetano. Encheu-se de brios e de responsabilidade. “Ele pensa o quê? Acha que é o maior, que só ele é que sabe fazer engradamento? “ Seu Renato encarou o desafio. Combinou a empreitada com doutor Mário, aceitou o adiantamento com o qual comprou uma máquina de fazer janelas do tipo veneziana, entregou as últimas encomendas e passou a trabalhar em tempo integral na construção. As paredes nem bem foram levantadas e as portas e janelas, portais e batentes já estavam prontas. Os caixilhos e as portas francesas foram colocados imediatamente. E quando as paredes já estavam na altura de receber o engradamento do telhado, seu Renato não perdeu tempo.
Selecionou as madeiras, escolheu as peças mais fortes, secas, sem empenos. Atacou com serrote, plaina, enxó. Instalou uma serra circular no amplo salão que seria sala de visitas. Fez encaixes, recortou as pontas dos caibros, serrou as ripas tudo no muque, ali mesmo no local da construção. Foi armando o quebra-cabeça: primeiro as peças mais pesadas, constituindo o arcabouço, o suporte para os caibros e as ripas. Fez tudo sozinho, só ajustou um ajudante para levantar as peças com roldana e cordas.
—Vai devagar, Renato. Desse jeito você se estropia. — A mulher aconselhava, quando ele chegava à tardinha, cansado, suado, o velho chapéu de feltro amassado na cabeça, os braços e o rosto queimados do sol forte de novembro.
— Ara, mulher, comigo é assim. Ou vai ou racha, ou rebenta a tampa da caixa. O serviço tá quase no fim. A gente tem de aproveitar o tempo sem chuva, pra cobrir logo a casa.
Foi o ritmo frenético do carpinteiro que determinou a rapidez com que a mansão do abastado médico fosse sendo construída em tempo recorde. Os pedreiros, o eletricista Humberto Cearense, o encanador Benedito Bentoni, todos se esforçavam para acompanhá-lo . Doutor Mário não se cansava de elogiar o trabalho de todos,mas gostava mesmo era de ver o afã de seu Renato.
— Está uma beleza, serviço de primeira. Estou gostando de ver.
E lançou um repto:
— Se a cumeeira ficar pronta antes do Natal, vamos ter a melhor festa de cumeeira de todos os tempos. Vai rolar chope pra todo mundo.
Abstêmio de cerveja e de chope, seu Renato pouca importância deu ao desafio. Ele gostava mesmo era de vinho. Continuou no mesmo batente, chegava cedo e trabalhava até escurecer, aproveitando a luz do sol das longas tardes de novembro e dezembro.
A festa da cumeeira era uma celebração usual entre os construtores de casas. Marcava uma etapa importante na construção, significava que mais da metade da construção estava feita. Era marcada com uma festa, principalmente com a abertura de um barril de chope e salgadinhos. Tinha festa da cumeeira que corria até churrasquinho feito pelo Tião da Zinha. A conclusão da cumeeira era, assim, um fato tão importante quanto a finalização do edifício.
Aconteceu que a cumeeira da grande casa ficou pronta na primeira quinzena de dezembro. E doutor Mário marcou a data para a chopada.
— Está bom para vocês no próximo sábado?
Estava ótimo, todos concordaram. No sábado, trabalharam até pelas duas horas da tarde, quando chegou a charrete do Serafim com três barris de chope, barras de gelo e as bombas com torneiras. Logo foram chegando alguns amigos da turma, uns penetras (como correm ligeiras as notícias de qualquer comemoração ! ) e até Caetano Silveira apareceu, mais interessado em ver o serviço feito do que em beber do chope geladinho.
— Parabéns, Renato ! Pensei que você ia precisar da minha ajuda, mas vejo que conseguiu levar tudo no peito, sozinho. — O comentário era franco e foi acompanhado de risadas de todos. A satisfação era geral, nada iria estragar a alegria da turma de construtores.
Seu Renato não era afeito ao chope. Logo ficou alegre. E na alegria, não recusava nenhuma rodada, tomava com vigor, queria matar a sede e celebrar a obra da qual se orgulhava. A chopada acompanhada de alguns poucos salgadinhos, seguiu tarde afora. Já principiava a escurecer quando terminaram com o terceiro barril. Todos ficaram alegres, cantaram, contaram piadas, enfim, confraternização geral. Antes de se despedir, Seu Renato lavou sua garrafa térmica, jogando fora o restante do café, e encheu-a com o chope. Ia levar para tomá-la tomar em casa, junto com a mulher, que já devia estar aflita.
Estava visivelmente embriagado. Balançava o corpo, o caminhar trôpego, foi fazendo ziguezague pela calçada. Mas conseguiu chegar são e salvo em casa, a térmica com chope debaixo do braço.
Como era habitual, dona Carmélia já mostrava sinais de ansiedade.
— Como demorou ! Finalmente, terminou o bendito engradamento ?
Seu Renato nada disse. Colocou a térmica sobre a mesa e tirou da cabeça o chapéu deformado. Encaminhou-se para o local onde dependurava o chapéu, um prego no alto da parede da sala de visitas. Inutilmente. Tentou uma, duas vezes, não conseguiu o desiderato. Tonto, nem enxergava direito o prego. Ou talvez visse dois pregos, e não encontrava nenhum.
— Puxa vida, além de chegar tarde, ainda vem tonto! Ai, Jesus, que desgraça !
Seu Renato não prestou atenção na reprimenda da mulher. Ainda tinha o que fazer, antes que escurecesse de todo.
— Cadê os meninos? Já regaram a horta?
— Tão no fundo do quintal. E a horta ainda não foi regada, não senhor !
— Jair ! Sérgio ! Venham logo, vamos regar a horta ! — Seu Renato sai gritando pelo quintal afora. Está com uma zoeira que não deixa ver direito a coisas , tudo embaralhado.
Antes que os meninos cheguem para ajudá-lo na tarefa diária de regar os canteiros de verduras e legumes , já carrega um regador na mão direita e um balde na esquerda, cheios d’água até à borda. E lá vai, ainda cambaleando, pelos estreitos caminhos entre os canteiros. De repente, topa com algo à sua frente. Uma sombra, algo ali no chão, escarrapachado. Leva um susto. No lusco-fusco do entardecer, não dá pra ver se é bicho ou outra coisa qualquer. Não pensa duas vezes: mete um pontapé na coisa. Ouve um barulho distante de algo estilhaçando-se, enquanto vê o estranho objeto fazer um arco e cair bem longe, de encontro ao muro.
Os garotos assistem a tudo e não entendem nada. Nunca viram o pai daquele jeito, caminhando sem segurança, deixando a água do balde cair pra todos os lados. Nem tiveram tempo de advertir o pai do brinquedo que Sérgio esquecera ali, bem no meio do caminho. O pequeno caminhão de madeira, feito pelo próprio pai, voou como um avião. Agora, nada mais era que uns cacos.
Ajudaram o pai silenciosamente, carregando água em baldes menores. Ninguém falou nada naquele triste entardecer. Nem era preciso falar.
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ANTONIO ROQUE GOBBO (ARGOS) – BELO HORIZONTE, 13-OUT-2000
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